A pane geral provocada pela falta de combustível, que foi determinante para a queda do avião com a delegação da Chapecoense em novembro de 2016, com a morte de 71 pessoas, é apenas a ponta de uma sequência de erros anteriores à tragédia. Meses antes do acidente, a companhia boliviana LaMia já ignorava protocolos de segurança e fazia voos sob o risco de ficar desabastecida em pleno ar. Investigação da Aeronáutica Civil da Colômbia, concluída e divulgada em relatório no final de abril, revela a imprudência da empresa e o despreparo da tripulação para agir em situações críticas.
O documento destaca que testes realizados com o piloto e o copiloto alertavam a necessidade de haver melhor coordenação na cabine, além de recomendar ajustes na comunicação e no preparo da aeronave em emergências. Todas as observações foram identificadas a tempo, diz o relatório, mas não foram aprimoradas, corrigidas ou supervisionadas.
Falhas de planejamento e de procedimento também foram constatadas em práticas antes e durante o voo final da companhia. A exemplo do que ocorreu na viagem fretada pelo clube, a LaMia rotineiramente pulava escalas e alterava destinos previstos em roteiro para poupar tempo e combustível. Mesmo nas horas que antecederam a tragédia, a tripulação abriu mão de reabastecer com segurança em Bogotá e decidiu manter voo quando já sabia dos riscos. O piloto também só comunicou situação de emergência à torre de controle minutos antes da colisão, quando aguardava autorização para aterrissagem com outros três aviões.
Embora a investigação seja voltada à prevenção de novos acidentes e não aponte culpados, os detalhes apurados no relatório são a prova dos erros da companhia aérea, avalia o engenheiro aeronáutico ouvido pela reportagem Shailon Ian, com formação pelo Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA). No entendimento do especialista, o histórico de voos com pouco combustível e as reações do piloto antes da colisão indicam que ele não agiu como se estivesse em emergência.
– O piloto perde o primeiro motor e configura a aeronave para pouso como se tivesse com os motores funcionando, sequer deixa a aeronave em configuração para planar mais. Ou seja, ele não estava mais raciocinando, perdeu completamente a percepção situacional. Se as pessoas tivessem se preparado, o número de sobreviventes poderia ser maior – afirma Ian, que também observa o despreparo do copiloto no procedimento.
MP não vê culpa da Chapecoense
Em inquérito paralelo, o Ministério Público Federal em Chapecó divulgou, em outubro do ano passado, a conclusão de sua investigação, em que aponta “que não se identificou qualquer evidência de que algum brasileiro possa ter dado causa ou tenha contribuído para o trágico acidente”. Na avaliação do MPF, a Chapecoense obedeceu parâmetros para a contratação da empresa. Assim, o órgão afirmou que não encontrou irregularidades na contratação entre o clube e a empresa.
Diretor jurídico da Chapecoense, o advogado Marcelo Zolet afirma que o relatório final pouco muda as ações que já vinham sendo tomadas pelo clube.
– Já foi protocolada uma ação contra a LaMia e outra contra o governo boliviano. Nós entendemos que a Chapecoense não teve culpa. Foi uma falha da empresa – argumenta.
CONFIRA REVELAÇÕES DO RELATÓRIO:
ERROS DA TRIPULAÇÃO
Relatório aponta falhas de procedimentos dentro da cabine
PILOTO
Miguel Quiroga, 36 anos (6.692 horas de voo)
Observações em teste com simulador:
"Melhorar a coordenação na cabine"
"Tomar o tempo necessário para preparar o avião em emergência".
COPILOTO
Ovar Goytia, 47 anos (6.923 horas de voo)
Observações em teste com simulador:
"Configurações em aproximação devem ser mais precisas"
"Comunicação com o controle de tráfego aéreo deve ser pontual"
A investigação aponta que em nenhum momento a tripulação declarou “Mayday” no rádio para ter prioridade absoluta na permissão de pouso, mesmo tendo recebido alerta de falta de combustível cerca de 40 minutos antes da tragédia. A aeronave da LaMia inclusive entrou numa fila de espera com outros três aviões que se aproximavam do aeroporto de Rionegro, quando a situação já era crítica. Conforme o relatório, “esta situação pode estar relacionada diretamente com uma descoberta previamente identificada durante as verificações de proficiência com a tripulação”, ocorridas em 2016 na Suíça:
- O piloto recebeu observações de que deveria “melhorar a coordenação na cabine”, “definir claramente o controle do avião e das comunicações, quem faz o quê”, “tomar o tempo necessário para preparar o avião em emergência”.
- O copiloto recebeu observações de que “as configurações em aproximação devem ser mais precisas” e a “comunicação com o controle de tráfego aéreo deve ser pontual (alertas de PAN PAN ou Mayday), segundo o caso”.
Conclui o relatório: “Todas as observações dadas nas verificações anuais de proficiência (supervisão) foram detectadas a tempo, mas foi evidente que não foram melhoradas, corrigidas, nem supervisionadas, o que levou a uma permissividade durante a operação em condições críticas de combustível, à falta de uma comunicação que não foi pontual, e a não prever o tempo necessário para preparar o avião em caso de emergência”.
MANOBRA INCORRETA
A tripulação “configurou prematuramente a aeronave” antes de os motores apagarem, diz o relatório, com trem de pouso acionado e flaps posicionados a 33º. “Esta situação operacional afetou em grande proporção a aerodinâmica e penalizou criticamente a planagem ao existir um incremento aerodinâmico da resistência ao avanço, que contribuiu para a perda abrupta de altitude”.
FALTA DE ALERTA A PASSAGEIROS
Declarações de sobreviventes revelaram que os pilotos não informaram aos passageiros sobre o que estava acontecendo e quais seriam os procedimentos de segurança que deveriam ser seguidos, conforme normas da aviação.
ALERTA IGNORADO
O relatório revela ainda que a aeronave voou durante aproximadamente 40 minutos em condições de baixo nível de combustível e que havia tempo de se buscar um aeroporto alternativo para fazer o reabastecimento, o que não aconteceu. “A indicação de baixo nível de combustível se apresentou à tripulação antes de sobrevoar as proximidades do aeroporto Eldorado (Bogotá), aeródromo alternativo em rota que era viável no momento do anúncio”, diz o documento.
COMPETÊNCIA LINGUÍSTICA VENCIDA
O relatório indica que o piloto “mantinha sua competência linguística vencida” e o copiloto “não tinha vigente sua competência linguística (inglês)”, que seria um requisito indispensável para voos internacionais, pois sobrevoaram um espaço aéreo que não lida com o idioma espanhol (Brasil).
FALHAS NO PLANEJAMENTO
Investigação indica série de equívocos operacionais
Como já havia sido divulgado após o acidente, o relatório confirma que a LaMia planejou um voo direto de Santa Cruz de La Sierra, na Bolívia, até Rionegro, na Colômbia, sem escalas e sem cumprir os requisitos para garantir a quantidade mínima de combustível necessária para um voo internacional.
Na prática, a autonomia de voo era igual ao tempo previsto na rota. A apuração aponta que não foi considerado o combustível necessário para se voar até um aeroporto alternativo, além do combustível de contingência, o combustível de reserva e nem o combustível mínimo de aterrissagem.
TROCA DE PROGRAMAÇÃO
Um sobrevivente da equipe técnica declarou à investigação que a companhia LaMia “era indecisa na programação de voos, já que mudava frequentemente as programações”.
PROBLEMAS DE GESTÃO
O relatório indica que a situação econômica da LaMia era deficiente, como consequência da ausência de voos regulares, e isto se percebia na “falta de organização completa e pagamentos atrasados aos empregados”.
Ainda conforme o documento, não havia gestão de riscos e ferramentas que permitissem uma adequada tomada de decisões para o equilíbrio adequado entre produtividade e segurança de tripulação e passageiros.
DESCONTO NO ABASTECIMENTO
O documento ainda aponta que no último voo, quando estava em Santa Cruz de La Sierra, na Bolívia, a LaMia propositadamente informou como destino o aeroporto boliviano de Cobija, apesar de toda a tripulação ter conhecimento que seguiria direto a Rionegro, na Colômbia. Conforme a apuração, isto aconteceu porque o avião foi abastecido com 2.050 litros de combustível antes da decolagem e o governo boliviano dá subsídio sobre o valor de abastecimento somente para voos nacionais.
Segundo a investigação, a LaMia não teria desconto se informasse como destino verdadeiro a Colômbia.
HISTÓRICO E DIVERGÊNCIAS
Documento revela falhas e erros cometidos no passado
EXCESSO DE PESO
O manifesto de peso e balanceamento do voo não foi localizado pela investigação, mas informações levantadas na apuração estimam que o peso no momento da decolagem era de 42,148 kg, enquanto máximo permitido pelo manual de voo é 41,800 kg.
OUTRO CASO
A investigação lembra que “a falta de cumprimento das políticas de combustível por parte da empresa e a má administração por parte das tripulações não se evidenciou só com o acidente”. O relatório destaca que em setembro de 2015 o Safa, programa de avaliação da segurança de aeronaves estrangeiras, inspecionou a LaMia em um voo da Inglaterra até a Espanha, “anotando várias deficiências operacionais que incluíam a inadequada gestão do combustível”. Segundo o relatório, a rotina “não foi corrigida nem supervisionada a tempo, fazendo da prática um risco latente dentro da operação”.
ROTAS DIFERENTES
Outra constatação é de que em pelo menos três voos anteriores saindo do aeroporto de Rionegro, na Colômbia, a LaMia já não cumpria com a norma de combustível mínimo. Isto porque a companhia informava como destino o aeroporto boliviano de Cobija, mas nas três ocasiões a aterrissagem não aconteceu em Cobija e sim na cidade boliviana de Santa Cruz de La Sierra, que deveria constar apenas como rota alternativa. “Ao decidir a tripulação prosseguir ao aeroporto de alternativa é provável que não estivesse cumprindo com o combustível mínimo obrigatório”.
PROBLEMA NO GRAVADOR DE VOZ
A gravação de voz da cabine parou de funcionar antes da queda do avião, o que impediu a apuração de mais detalhes sobre as decisões da tripulação. Não foi confirmada a origem da falha. Conforme o relatório, o fabricante do equipamento informou que o aparelho foi devolvido à fábrica em 2011, após ter funcionado por apenas 15 minutos até apresentar problema em outro avião. Devolvido, o aparelho passou por testes e foi considerado “apto a operar”, mais tarde sendo repassado à LaMia.
TRIPULANTE INFORMAL
A investigação diz que na cabine havia “uma pessoa que não fazia parte dos passageiros e tampouco da tripulação”, identificada como piloto, mas que não trabalhava para a companhia. Também é mencionado que não se descobriu a razão pela qual estava a bordo e as funções que exercia, embora estivesse listado como copiloto. Gravação da cabine confirma que ele, inclusive, pergunta sobre o status do combustível em determinado momento.