
No apartamento onde mora, no 39º andar de um prédio de Hong Kong, o gaúcho José Ricardo Rambo, 46 anos, tem de improvisar para fazer o churrasco da família. Esqueça a sacada com churrasqueira ou o espaço gourmet. O jeito é assar a carne na própria cozinha, em uma grelha elétrica. O resultado pode não ser o ideal, mas com certeza é bem mais saboroso do que um dos pratos típicos do território chinês, a sopa de cobra.
— Dizem que a sopa é fortificante para o corpo, mas não gostei muito não — sorri o treinador.
No entanto, Rambo (o sobrenome nada tem a ver com o personagem icônico de Sylvester Stallone) está em casa em Hong Kong. Afinal, reside lá desde 1998.
Jogador revelado pelo Novo Hamburgo, o zagueiro teve passagem rápida pelo Santos. Também jogou no Inter, nas temporadas 1993 e 1994. Na verdade, atuou mais pelo Rolinho, uma espécie de time B. Depois, rodou por Brasil de Farroupilha, 15 de Novembro, de Campo Bom, e Náutico. Quando estava no time nordestino, recebeu a proposta asiática.
A questão financeira, de receber em dólar, foi o que mais pesou, além do fato de jogar fora, abrir um mercado novo.
RICARDO RAMBO
Gaúcho que vive há 19 anos em Hong Kong
— Foi bastante estranho, pois na época não vinha muito jogador para a China. Daí fui atrás para ver como funcionava. Conversei com familiares e acabei topando. A questão financeira, de receber em dólar, foi o que mais pesou, além do fato de jogar fora, abrir um mercado novo. Mas pensava que fosse China. Quando cheguei aqui, vi que era diferente — recorda.
Essa é uma situação importante de se destacar. No futebol, China e Hong Kong estão separados. Ou seja, têm campeonatos e seleções distintas. O poderio econômico também é muito desigual. A liga chinesa paga altos salários e conta com jogadores e técnicos de renome, como Felipão, Tevez, Hulk, Oscar e Alexandre Pato. Em Hong Kong, não há celebridades, e os jogadores "de fora" recebem em média US$ 10 mil (cerca de R$ 30 mil).

Rambo conta que quando chegou, em 1998, o campeonato era mais competitivo. A queda técnica foi ocasionada pela falta de renovação dos atletas. Os jogadores foram ficando velhos e não veio uma safra nova para substituí-los. Para a seleção, a saída foi naturalizar muitos atletas, a maioria brasileiros e espanhóis — somente dois ou três são nativos. A característica de jogo também mudou. Na década de 1990, devido à colonização, a influência era britânica, de bola longa. Se a qualidade dos atletas diminuiu, o oposto ocorreu com as competições, que ficaram mais organizadas.
O gaúcho de São Leopoldo foi zagueiro até 2006, quando recebeu o convite para ser auxiliar técnico do clube em que atuava. E não demorou para se tornar treinador. Em Hong Kong, trabalhou em cinco clubes — em um deles ficou por três temporadas —, e também comandou uma equipe da Segunda Divisão da China.
Uma vez, passamos para o treino e tinha uma jaulinha com gato e cachorro. Quando voltamos, não tinha mais os bichinhos. E tínhamos de almoçar, daí não sei o que comi.
RICARDO RAMBO
Falando sobre os hábitos alimentares do país
Há 19 anos na Ásia, enfatiza que muita coisa mudou. Destaca que no começo sofreu um baque para se adaptar à alimentação — a comida adocicada e com pimenta não agradou. E também à língua, já que não falava inglês.
— O McDonald's foi a primeira salvação. Depois, a gente vai experimentando uma coisa ou outra, vai se acostumando. Agora, está mais tranquilo, existem lojas com produtos brasileiros — comenta Rambo, enfatizando que, por ter sido uma colônia britânica, o território é avançado em termos de abertura para outros países.
Para superar a barreira da língua, muitos brasileiros se utilizam da mímica. O treinador diz que já viu jogadores pedindo leite como se estivessem ordenhando uma vaca ou imitando uma galinha para pedir frango em restaurante. Ainda sobre alimentação, o mais exótico que provou foi mesmo a sopa de cobra. Porém, na China, viveu situação inesperada:
— Uma vez, passamos para o treino e tinha uma jaulinha com gato e cachorro. Quando voltamos, não tinha mais os bichinhos. E tínhamos de almoçar, daí não sei o que comi.
No primeiro ano de Hong Kong, também foi apresentado aos tufões, e justamente ao mais forte das últimas décadas, de categoria 10. O então zagueiro morava perto de uma marina e viu os barcos virarem pela força do vento. Afirma, contudo, que há muita precaução. A previsão de tufões chega com um dia de antecedência. Assim, a população pode ficar protegida em casa,
—E a gente vai se acostumando. Depois, parece o nosso vento norte aí do Rio Grande do Sul (risos).
Casado com Denise, o técnico tem duas filhas, Nicole, 17 anos, e Natalia, oito. A mais nova nasceu em Hong Kong. As meninas, revela Rambo, estão bem ambientadas e não pensam em voltar ao Brasil. Na casa, é o treinador quem mais sente falta do país natal. Tanto que, em 2013, tentou uma imersão no mercado gaúcho. Por quatro meses, trabalhou com o sub-20 do Novo Hamburgo, mas não se adaptou. A estabilidade na Ásia falou mais alto.

—Aqui, ficamos uma ou até duas temporadas no clube. Essa tranquilidade é fator principal para não voltar ao Brasil — salienta.
Em Hong Kong, o treinador, que fez curso na Inglaterra e tem a licença da Uefa para trabalhar na Europa, foi duas vezes campeão nacional e conquistou algumas copas. Com os triunfos, ficou conhecido e passou a ter contato com os donos dos clubes. Sim, no território chinês, os times têm donos e, às vezes, mudam até de nome. Uma das equipes comandadas por Rambo tinha como maior acionista o ator Jackie Chan. Ele nunca esteve no dia a dia do clube, mas quando o time ganhou um torneio, garantindo vaga na Copa da Ásia, a estrela do cinema apareceu na festa do título e foi tietado pelos jogadores.

Por duas vezes, o gaúcho treinou a seleção de Hong Kong em jogos festivos. E, agora, assumiu um novo desafio, a seleção feminina.
—É um projeto para melhorar, dar suporte à categoria. Hoje, ela ainda é um pouco amadora, as meninas precisam trabalhar. Mas estamos estruturado as categorias sub-12, sub-15 e sub-18 para no futuro ter mais opções.
Comparadas com equipes brasileiras, a estrutura dos clubes de Hong Kong é menor. Alguns precisam até alugar campos para treinamento. O trabalho dos técnicos também é diferente. Nem imagine uma comissão numerosa, como é praxe por aqui. Lá, os profissionais acumulam funções. Muitas vezes, os dirigentes não permitem nem mesmo a contratação de um preparador físico. Quem dirá, analistas de desempenho.
— treinador faz tudo: a parte física, tática e psicológica. Também analisa os adversários, edita vídeos — explica.

Outra peculiaridade de Hong Kong é que o futebol não é o esporte número 1. Perde para as corridas de cavalo, que ocorrem às quartas e sábados. Nesses dias, não há rodada. O turfe é uma atração que reúne grande público. O treinador e outros brasileiros costumam ir aos páreos torcer pelo compatriota Moreira, jóquei de sucesso no território chinês. A colônia brasileira, por sinal, é expressiva em Hong Kong. Além dos profissionais ligados ao futebol, há muitos pilotos que escolheram o local para morar depois do fechamento das companhias Vasp e Varig e também trabalhadores ligados ao setor coureiro.
Adaptada e feliz em terras asiáticas, a família Rambo não pensa em trocar de endereço.
—Sempre tive vontade de assumir um clube no Brasil, mas no momento é difícil. Em princípio, vou ficar aqui e tentar alguma coisa também na China, que teve um crescimento estrondoso. Em termos de futebol, não é o primeiro patamar, mas a qualidade de vida é bem melhor. A segurança, a educação que posso oferecer às minhas filhas e a questão financeira pesam bastante — conclui o gaúcho que faz sucesso no outro lado do planeta.
