No mundo dividido em extremos, em que se espera que cada um opte pelo preto ou o branco, Eduardo Gonçalves de Andrade, o Tostão, 69 anos, é destes personagens necessários que navegam pelas diferentes tonalidades de cinza.
Uma das estrelas do tricampeonato mundial da Seleção Brasileira, em 1970, colunista da Folha de S. Paulo e do jornal O Tempo, ele exalta a importância daquele time sem desmerecer o momento atual do futebol. Tem alertado para o que vê como uma euforia exagerada que cerca Tite após seus primeiros jogos no comando da Seleção. Mas diz se empolgar aos poucos com a evolução da equipe e brinca, nesta entrevista a Zero Hora, que tem medo de se "juntar à turma do oba-oba".
As análises ponderadas e precisas de Tostão são destaque de seu livro Tempos vividos, sonhados e perdidos, lançado em outubro. Além de brindar o leitor com sua análise precisa da evolução do esporte, conta histórias deliciosas de uma trajetória pouco comum para quem fez a fama dentro das quatro linhas.
Tostão teve a carreira brilhante no Cruzeiro e na Seleção abreviada por problemas de descolamento da retina em seu olho esquerdo. Aos 26 anos, quando precisou abandonar os campos, mergulhou nos livros, cursou Medicina e, por 20 anos, esteve afastado do esporte, praticando o novo ofício. Nos anos 1990, deixou de ser médico e voltou ao futebol como comentarista e colunista.
Nenhum desses movimentos parece ter sido traumático para o mineiro de fala mansa, que descreve suas idas e vindas do futebol como "renascimentos". Assim como parece acreditar que o futebol brasileiro começa a renascer após o baque do 7 a 1. Bem ao seu estilo, sem ignorar os enormes problemas que levaram ao fracasso na Copa de 2014, Tostão quer que o país, aos poucos, deixe de se torturar pela goleada imposta pela Alemanha.
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Como surgiu a ideia de escrever o livro Tempos vividos, sonhados e perdidos?
Depois que acabou a Copa, tive a ideia de fazer uma síntese da evolução do futebol, na Europa e no Brasil. Mas aí achei que ia ficar muito chato falar só de problemas técnicos e táticos. Passei a escrever a partir da minha visão do futebol desde menino. Ia contando as coisas do futebol, falava coisas minhas. Acabou sendo um livro de memórias, em forma de diário. Começa desde os meus sete anos e vai até agora. Pegou o período em que eu fiquei longe do futebol, de quase 20 anos. Conto como eu me relacionava com o esporte enquanto era médico. Fui escrevendo quase por associação de ideias. Demorou um ano, um ano e meio para escrever. No final, ficou uma síntese de 50, 60 anos e a minha visão do futebol, contada de uma forma concisa, do jeito que eu sei escrever. Ao mesmo tempo, vou fazendo uma análise da evolução do futebol do ponto de vista técnico e tático.
Que reação você teve ao revisitar sua trajetória, que é tão incomum para um jogador de futebol?
As coisas foram acontecendo. Em uma parte do livro, eu digo que tive muitos "quases" na vida. Por detalhes, minha vida ia por um caminho e, de repente, foi por outro. Se eu não tivesse levado a bolada e me machucado, eu não teria sido médico. Talvez, se não fosse o João Saldanha o técnico da Seleção, com o problema que eu estava perto da Copa, outro treinador não apostaria em mim. Talvez eu não jogasse a Copa. No jogo contra a Inglaterra, o Roberto ia entrar no meu lugar. Quando ele ia entrar, fiz aquela jogada que resultou no gol da vitória. Se o Roberto tivesse entrado e feito um gol, eu poderia ter ido para a reserva. E assim vai. Na medicina também. Por pouco eu não voltei a jogar futebol. Quando eu fui para a Itália em 1971, jogar a despedida do Yashin, estava para sair a liberação para jogadores brasileiros atuarem lá. O Milan queria me contratar. Quase eu fui. Depois, não saiu a liberação, demorou muitos anos.
Desde criança você já tinha esta tendência a analisar o futebol?
Desde menino eu prestava atenção. Acho que fui um pouco precoce em tudo, não só para jogar. O próprio apelido Tostão surgiu porque o tostão era a menor moeda na época. Como eu era muito pequeno e jogava no meio dos maiores, ficou o apelido. Eu tinha uma característica de antecipar, de vivenciar logo as coisas. Já tinha uma visão mais de adolescente e de adulto. O meu sonho de menino era estudar, ter uma profissão. O futebol foi acontecendo junto. Quando cheguei aos 16 anos, já era titular do Cruzeiro, e tive de tomar uma decisão. Ou eu parava de jogar ou de estudar. Como já era destaque do Cruzeiro, estava sendo convocado para a Seleção, parei de estudar e fui jogar futebol. Como fui obrigado a jogar pouco tempo, dos 16 aos 26 anos, tive de parar de jogar e me senti ainda em condições de voltar à faculdade. Estudei e entrei na faculdade de Medicina. Se tivesse parado aos 35, certamente não voltaria a estudar.
Como você avalia esse processo de evolução do futebol que é retratado no livro?
Eu divido o livro em três períodos. Do ponto de vista técnico, eu chamei o primeiro período de encantamento. Assim como com a música brasileira dos anos 1960, foi um período de encantamento com o futebol. Era muita gente jogando demais. Pelé, Garrincha, tanta gente. Não só no Brasil, no mundo todo. Grandes times e seleções. Foi uma época de 15, 20 anos. Depois houve um conflito, que eu chamo de "intermezzo", entre a ciência e o esporte. Foi o momento em que o esporte começou a virar ciência, e se estabeleceu um antagonismo, como se uma coisa anulasse a outra. E aí o período atual, de 20 anos para cá, que eu digo que é de conciliação entre os dois. Percebemos que futebol é ciência, mas também improvisação, magia, fantasia. Eu acho o período dos últimos 10 anos muito bom. Melhorou muito em relação ao futebol que era jogado nos anos 1980 e 90. Acompanhei essa parte como comentarista e analista, e tenho de enxergar isso. A saudade é um sentimento delicioso, mas achar que tudo antes era melhor é um saudosismo sem sentido. Não há como jogar futebol hoje como antes. É um outro futebol, o que não significa que o passado tenha de ser esquecido.
O Brasil ficou para trás nessa evolução?
Eu chamo muito a atenção para isso. No período da década de 1990 e no início dos anos 2000, apesar de o Brasil ter ganho a Copa de 2002, o futebol no mundo estava muito ruim. Nas Copas de 1986, 90 e 94, houve um retrocesso. Desde então, houve um crescimento grande do futebol europeu. Os times de lá começaram a jogar de outra maneira, mais agradável. Muita coisa nova que hoje está sendo incorporada ao futebol brasileiro começou na Europa. O Brasil ficou estagnado. Predominaram bolas longas, chutões, jogo amarrado, muitas faltas, bola aérea, defesa separada do ataque e lances individuais esporádicos. Foi um atraso. Hoje você vê quase todos os times brasileiros tentando jogar outro futebol, principalmente depois da Copa de 2014, em que os técnicos enxergaram essa evolução. Começou, aliás, com o Tite, antes da Copa. O Corinthians era um time extremamente organizado e diferente do que se jogava no Brasil. Os times brasileiros, apesar dos vícios, hoje tentam aplicar esses conceitos. Há uma reformulação na forma de jogar, com bola no chão, volantes que têm bom passe, triangulações, trocas de passes. O discurso mudou. Estamos recuperando o tempo perdido.
Você critica o que vê como supervalorização dos treinadores. Quanto dessa evolução do futebol é de responsabilidade deles?
Esse período que eu falei de estagnação foi, paradoxalmente, o de supervalorização dos técnicos. Eles ganharam uma importância fora do controle. Tudo o que acontecia no jogo era por decisão deles. Como o futebol começou a ficar muito científico, passou a se achar que tudo poderia ser decidido no planejamento. Acho que isso diminuiu nos últimos anos. O que aconteceu na Europa é o seguinte: em primeiro lugar, eles contrataram os melhores jogadores do mundo. Não existe bom futebol sem bons jogadores. Também evoluiu na maneira de jogar. O Barcelona, a seleção da Espanha, depois a Alemanha, foram importantes nisso. Quando o Guardiola chegou ao Barcelona, o Xavi e o Iniesta eram considerados jogadores de segunda categoria. Os grandes meio-campistas eram fortes, altos, entravam na área para cabecear. Gerrard e Ballack, por exemplo. O Barcelona trouxe uma coisa nova, de um futebol de muita troca de passe, domínio, infiltração. Não que o futebol seja só isso. O Barça sempre pecou por, por exemplo, não fazer gol de jogada aérea. É importante. Mas o Barcelona exportou, com a seleção da Espanha, essa importância da troca de passes. Hoje há uma associação entre esse modelo e um jogo mais rápido. Há um equilíbrio nos grandes times. A Alemanha mostrou isso na última Copa. A mistura entre a troca de passes curtos e as jogadas rápidas de contra-ataque. O próprio Barcelona de hoje, pelo Neymar, o Suárez, e até por uma mudança de mentalidade, é um time que associa as duas coisas. Não é mais aquele time do Guardiola. Esse futebol dinâmico, intenso, de troca de passes, todo mundo quer jogar assim. Mas o time com mais craques tem mais chances de vencer. Não vencem em uma equipe desorganizada. Só que, em um confronto de dois times organizados, vai vencer quem tiver os melhores jogadores.
Em 1970, a Seleção já não tinha alguns desses conceitos?
A Seleção de 1970 foi revolucionária. O futebol que se jogava no Brasil e no mundo não era igual ao que a Seleção jogou na Copa. Era um futebol mais lento, com uma separação muito grande entre defesa, meio-campo e ataque. A Seleção passou a ter o que hoje é a base do futebol moderno, mas, claro, sem a mesma velocidade. Hoje os jogadores correm mais, e os jogos são mais intensos. Os conceitos, no entanto, eram os mesmos. O Zagallo, baseado no Botafogo que ele treinava, pedia para o time todo voltar quando perdia a bola, reduzindo os espaços na defesa. Depois de tomar a bola, troca de passes, ou então toques rápidos procurando, geralmente, o Jairzinho, que era superveloz. Uma equipe moderna para a época. O Brasil sempre tinha três jogadores protegendo os quatro da defesa: Clodoaldo, Gérson e Rivellino. Foram questões incorporadas progressivamente. No quarto gol da final, do Carlos Alberto, quem toma a bola no início do lance, lá na defesa, sou eu. O time foi trocando passes e eu fui para frente. Na hora em que o Carlos Alberto recebe a bola, eu era o jogador de frente, inclusive indicando para o Pelé que o Carlos Alberto estava livre. Nem precisava: o Pelé enxergava tanto que ele já tinha percebido. Para a época, era algo revolucionário. (A entrevista foi feita em 13 de outubro, 12 dias antes da morte de Carlos Alberto.)
Isso é cíclico?
Em parte, sim, mas não totalmente. As pessoas gostam de dizer que a Alemanha foi campeã por conta do planejamento. Claro que houve, não estou diminuindo a importância disso. Mas por mais que houvesse esse planejamento, a Alemanha nunca teria a certeza de que, na Copa, contaria com seis ou sete jogadores entre os melhores de sua posição no mundo. Kroos, Schweinsteiger, Muller, Neuer, Hummels...
Há, então, um pouco de acaso no sucesso?
Claro que tem. Eu duvido que a próxima geração da Alemanha seja tão boa. O mesmo acontece na Espanha, no Brasil. Mas a questão do planejamento também influi. Por que o Brasil, nos últimos 10, 15 anos, só teve um supercraque, o Neymar? Porque houve uma alteração na formação dos jogadores. Há 20 anos não temos um grande craque no meio-campo, como já tivemos Falcão, Gérson, Rivellino, Cerezo. A causa mais evidente é de que houve uma divisão no meio-campo, que não aconteceu na Europa. Volantes, do meio para trás, para marcar. Dois ou três. Meias de ligação, ofensivos, para entrar na área e fazer gol. E onde estão os jogadores tipo Gérson, ou, hoje, como Kroos ou Modric? Os meio-campistas clássicos, que atuam de uma área à outra? Acabou. Eu tenho ficado abismado com o Renato Augusto. Nunca imaginei que ele fosse jogar tanto quanto tem jogado. Era um jogador mediano na Europa, depois foi para a China. Claro que não está no nível dos melhores meio-campistas do mundo, mas tem jogado muito. Será que vai conseguir jogar assim em 2018?
Mas ainda hoje é difícil imaginar que o Gérson e o Rivellino tinham a função de proteger a zaga.
Pois é. O Gérson e o Rivellino, se tivessem surgido há 10, 15 anos, iam jogar lá na frente, perto da área. Teriam a função de receber a bola na intermediária e tentar um passe ou um chute para o gol. Não seriam os meio-campistas que foram. Se o Kroos aparecesse no Brasil, onde seria colocado para jogar? Primeiro iam falar que ele é muito lento para jogar futebol. O Kroos nem tem posição definida porque não é um volante de contenção, nem um meia ofensivo. É um armador, organizador de jogo. Isso está voltando na Seleção com o Renato Augusto. É o único que nós temos. No Brasileirão, isso está começando a aparecer. Todos estão preocupados e pedindo jogadores de meio-campo com essa característica. Imagino que daqui a cinco, 10 anos, vai surgir um grande jogador com essa função.
Você tem criticado o que vê como euforia demasiada com o momento da Seleção a partir da chegada de Tite. Que avaliação você faz do novo trabalho?
Em uma das minhas colunas, eu fui até um pouco contraditório. Acho que existe uma supervalorização, já que foram poucos jogos e estou cansado de ver times e seleções que têm grandes momentos e depois desaparecem. O próprio Dunga ficou 10 jogos sem perder logo que pegou a Seleção. E ganhou jogando bem. Ganhou da França, na França. Temos de ter cuidado para não tirar conclusões depois de quatro jogos. Mas o Tite é um técnico muito competente. Em pouco tempo, a Seleção se organizou do jeito que era o Corinthians. Você olha a Seleção e é o mesmo modelo, só que a Seleção tem jogadores muito melhores. Está começando a melhorar, também, a qualidade individual. Não tínhamos centroavante e apareceu o Gabriel Jesus, que é uma grande promessa. O Renato Augusto. De zagueiros e laterais, estamos bem. Nesses quatro jogos, ao mesmo tempo em que fico entusiasmado, já que isso pode se manter e melhorar ainda mais, tenho um pé atrás. Acho a imprensa brasileira extremamente precipitada. Vai do delírio à depressão rapidamente.
Mas a evolução com o Tite não parece ser mais sustentável?
O Tite é que faz ser sustentável. Se fosse com Dunga, ou outro técnico, a gente ia ficar mais preocupado. Mas como é o Tite, que é uma pessoa organizada, centrada, dá para ter mais confiança. Estou ficando entusiasmado. Até brinquei nessa coluna que estava me tornando otimista demais (risos). Precisava me conter para não entrar na turma do oba-oba. Eu até questiono se não está na hora de terminar o luto e a depressão do 7 a 1. Fazer o enterro do 7 a 1. Parar de falar nisso. Pensar daqui para frente. Não apagar ou esquecer o que aconteceu, mas também não ficar corroendo o tempo todo. Se o Brasil ganhar da Argentina jogando bem (no dia 10, pelas Eliminatórias), ainda mais no Mineirão, onde foi o 7 a 1, pode ser um marco de uma nova era. Uma volta de grandes atuações e títulos. Há um conceito no futebol, que é correto, de que é preciso tempo para formar um grupo. Mas a Seleção, já no primeiro jogo, parecia um time que jogava junto há cinco, 10 anos. Uma razão disso é que, além do Renato Augusto e o Paulinho já conhecerem o Tite, os jogadores que vêm da Europa percebem que os conceitos do Tite, o que ele quer no campo, são os mesmos dos grandes times da Europa. Eu vi uma entrevista do Daniel Alves em que ele dizia que, quando voltava para o Brasil, ficava meio perdido. O que o Dunga ou o Felipão pensavam e queriam era bem diferente do que o que ele estava acostumado a fazer.
Como você vê a administração do futebol?
É outra questão que começa a melhorar. Depois de tanta desorganização, tanta promiscuidade, denúncias de corrupção, presidente da CBF na cadeia, isso tem de melhorar. Os clubes estão se organizando mais. Há essa perspectiva, mas ainda está longe do ideal. Acho um absurdo o que os clubes gastam, jogam dinheiro fora. Fazem uma confusão, pagam três, quatro técnicos de uma vez só. Ficam com uma dívida gigantesca. Mas parece haver uma melhora. A própria CBF, que é a principal culpada dessa promiscuidade, com a prisão do Marin, processos contra o Ricardo Teixeira e o Marco Polo del Nero, já sofre com as empresas patrocinadoras que ameaçam deixar de patrocinar. A CBF está tentando mudar. Chegou à conclusão de que, se não mudar, não tem como se sustentar.
Como foi sua atividade como médico? Sente saudade?
Estudei e trabalhei muito como médico. Em 1975, entrei na faculdade e me formei em 1981. Dali até 1998, trabalhei duro. Me dediquei, era professor de Medicina. Parei no final dos anos 1990. Sinto saudade. Trabalhava muito com os alunos, o que me dava muito prazer. O trabalho médico foi todo ligado ao hospital da faculdade. Disso eu sinto falta. Às vezes me encontro com ex-alunos, o que mexe um pouco comigo. Mas também gosto do futebol. Eu até cito no livro a frase do Falcão, que diz que o jogador de futebol morre duas vezes, uma quando para de jogar e a outra quando morre mesmo (risos). Eu digo que, quando parei de jogar, eu morri e renasci. Um dia depois de o médico dar o veredito de que eu não poderia mais jogar, já estava pensando o que eu ia estudar para fazer o vestibular. Depois, fiz o caminho inverso. Morri largando a Medicina e renasci com o futebol. A oportunidade de ter várias atividades foi muito boa.
Como você tem acompanhado a crise política no país?
Tenho acompanhado como qualquer cidadão, com atenção e alguma preocupação. Posso dizer, hoje, que dou apoio total à Lava-Jato. Torço para que a operação siga apurando as denúncias de corrupção e para que as 10 medidas contra a corrupção sejam aprovadas.
O que lhe parecem as críticas que falam em um suposto partidarismo da Lava-Jato?
Discordo totalmente dessa crítica. Me parece absurdo dizer que a operação é partidária.