No estádio gremista, encontra-se com facilidade vodca, cachaça, uísque, vinho e até lata de cerveja. A cocaína, cheirada sem discrição, também está no cardápio. No lado colorado, vendedores autorizados ingressam no campo com bebida para, depois, negociá-la no mercado negro. O uso de maconha é recorrente.
Por mais de três meses, o jornal Zero Hora frequentou a Arena e o Beira-Rio para verificar a circulação de drogas lícitas e ilícitas entre os torcedores na parte interna dos estádios. O resultado da incursão é uma série de flagrantes de desrespeito à lei, documentados em áudio e vídeo, acrescidos de diálogos com alguns dos infratores, em maioria jovens.
Na casa gremista, torcedores se valem da frágil revista, em que os seguranças basicamente se limitam a deslizar as mãos pela cintura, para ingressar com sacolés de vodca, cachaça e uísque. São saquinhos roliços e compridos carregados nas meias, cuecas e mochilas. Uma vez no interior da Arena, os líquidos são misturados ao refrigerante ou mesmo à cerveja sem álcool. Alguns ingerem puro. Também foram registrados casos de sacos de maior porte, sacolas de mercado e até garrafas de vodca com rótulo. Todos preenchidos com bebida alcoólica.
Na maioria dos flagrantes, os torcedores sacaram os seus recipientes de bebida em frente aos bares, que costumam fornecer copos vazios ou cheios de gelo, utilizados na elaboração das bebidas. E ali mesmo, por vezes no balcão, preparam o drink. É uma área por onde circulam funcionários da Arena e, distante poucos metros, há um portão em que ficam, eventualmente, policiais militares.
No dia 20 de junho, em jogo do Brasileirão contra o Palmeiras, a reportagem foi ao bar e pediu uma cerveja sem álcool. Ao lado, um torcedor ensinou:
– Tu tens de entrar com uma bebida – disse, para logo depois sacar do bolso, com cuidado, um saco tomado pelo líquido incolor.
– O que é isso aí?
– Vodca.
– Me dá a dica, aí.
– Eu trago no saco – explicou o rapaz, indicando colocava o produto na cueca.
A reportagem perguntou se não havia riscos e, como resposta, obteve um deboche.
– Tu tá viajando, já deveria estar fazendo. Tá aí gastando dinheiro com cerveja sem álcool.
Especialista defende liberação do álcool
Somente no jogo contra o Cruzeiro, também pelo Brasileirão, em 2 de julho, foram registrados 10 flagrantes, a maioria de torcedores misturando bebida alcoólica com refrigerante. Mas há casos distintos: um homem tomou o corredor de acesso da arquibancada norte e, no caminho, sacou do bolso do seu casaco uma lata de cerveja.
Ele brandiu o recipiente junto ao movimento do corpo, sem se preocupar com a possibilidade de virar o líquido. A clareza da imagem captada mostra que era uma cerveja Heineken fechada. Além de levar bebida para dentro do estádio, o homem também portava na arquibancada uma lata, que, assim como as garrafas, são proibidas. Tudo deve ser servido em copos plásticos.
Existe uma situação peculiar na Arena que facilita a burla à regra e o ingresso com cerveja. A revista ocorre nas rampas de acesso à esplanada, área de circulação onde são instalados, em dias de jogos, quiosques que vendem a marca Heineken. Do lado de fora, o consumo é permitido. O problema é que, junto às catracas da Arena, não há mais revista. Basta passar o ingresso no leitor óptico. O estratagema dos adeptos da prática é passar pela checagem dos seguranças na rampa, comprar cerveja nos quiosques da esplanada, agasalhar a lata em alguma parte do corpo e aproveitar que, na catraca, ninguém vai lhe importunar. Por isso, foi fácil para esse homem entrar com cerveja na Arena.
As garrafas plásticas são vistas com facilidade no estádio gremista. Os rótulos são de água, mas os líquidos têm cor amarelada, de uísque. Um rapaz, também contra o Cruzeiro, empinou o destilado durante o intervalo e, depois, em meio a amigos que pulavam e cantavam, ergueu o trago como um troféu. Os mais ousados entram com garrafas próprias da bebida alcoólica: no jogo contra o Joinville, em 16 de agosto, um homem segurava um copo e uma garrafa plástica amassada da marca Vodka Walesa, com rótulo intacto e o destilado já consumido.
Ainda que os sacolés e garrafas sejam os preferidos, há exemplos de outros receptáculos, no mínimo, curiosos. Durante o jogo entre Grêmio e Figueirense, no dia 23 de maio, um grupo de quatro torcedores se reuniu em frente ao bar. Um deles segurava uma luva cirúrgica cheia de um líquido transparente que foi despejado nos copos dos amigos. Eles deixaram o local rumo à arquibancada norte com suas bebidas já batizadas.
Não há dia ou horário para a ingestão de álcool no estádio. Na estreia do Brasileirão, contra a Ponte Preta, às 11h de um domingo, dia 10 de maio, um trio se servia de vodca em garrafa. Outro torcedor retirou um sacolé de uísque da mochila e o entregou para uma segunda pessoa, que saiu andando e sumiu entre o público.
As infrações à lei ocorrem também no Beira-Rio. Dentro do estádio, há vendedores ambulantes – autorizados pelo próprio clube para ofertar refrigerante, água, cerveja sem álcool e alimentos – que ingressam irregularmente com bebidas alcoólicas para repassar aos torcedores durante as partidas. As transações ocorrem na arquibancada ou nos corredores. O máximo que se ouve são conselhos do tipo “não te vendi nada”.
Faltavam poucos minutos para o intervalo do jogo entre Inter e Atlético-PR, no dia 23 de agosto, pelo Brasileirão. Entre dois lances de uma das escadas que dá acesso à arquibancada inferior sul do Beira-Rio, a reportagem encontrou um vendedor ambulante identificado com o uniforme de um dos bares do Beira-Rio.
– Eu tenho vinho – disse o homem após discreta abordagem.
– Tem vinho? Tu vende?
– Vendo. Tem que ser escondido.
UMA GARRAFINHA DE VINHO POR 15 PILAS
De uma sacola plástica, dentro da bolsa térmica, o ambulante tirou uma garrafa de 250ml com rótulo de refrigerante, mas pela cor violeta ficou evidente que o conteúdo era outro. Colocou a garrafa dentro de um copo plástico, e com outro cobriu a tampa. O ambulante passou à etapa da cobrança. No mercado negro, o que é proibido ou escasso pode sair caro.
– É 15 pila. Só não deixa ninguém ver essa garrafinha.
O ambulante ainda deu a última recomendação:
– Tu não sabe de quem comprou, hein?
Os ambulantes costumam protagonizar outras infrações no Beira-Rio. Em uma das partidas, um deles pediu a um torcedor um baseado de maconha. O rapaz tirou o produto do boné e entregou ao vendedor, que saiu apressado por entre as pessoas.
No confronto entre Inter e Atlético-MG, válido pela Libertadores, em 13 de maio, uma dupla estava no último degrau da arquibancada inferior sul. O estádio estava lotado, e um deles portava um garrafa plástica. Misturou o seu conteúdo com a cerveja sem álcool que estava nos copos. Um terceiro recipiente somente com gelo ainda foi virado sobre o drink.
Nesse mesmo dia, um homem ficou por mais de sete minutos esmurrugando uma pedrinha da erva, intercalando a iniciativa com alentadas, cantorias e sucessivas vezes em que tirava um chapéu estilizado do Inter da cabeça para sacolejá-lo no ar.
Feita a mão, ele se deslocou alguns metros para o lado, encontrou outros dois parceiros e, subitamente, apareceu com o baseado fechado. Depois, acendeu e fumou. Logo atrás dele, em um nível pouco mais de um metro acima, estava um segurança do clube na área de camarotes. Mas o rapaz nem sequer foi notado.
Se no Beira-Rio a presença de bebida alcoólica não é tão escancarada, o uso de maconha ocorre livremente. Impressiona a quantidade de torcedores que fumam a poucos metros de seguranças que fazem vistas grossas.
Uma das imagens flagradas mostra como é disseminado o consumo. Uma menina vira-se de costas para o campo para dar três tragadas. Apenas dois degraus acima dela, um jovem de capuz também fuma, enquanto um terceiro fecha o baseado e passa ao amigo, que está ao lado de outro colorado com cigarro de maconha na mão.
CORRIDA AO BANHEIRO PARA CHEIRAR COCAÍNA
Dentre os flagrantes colhidos em mais de três meses de assiduidade nos estádios de Grêmio e Inter, um deles impressiona pela naturalidade com que agia um grupo de quase uma dezena que se reuniu em um dos banheiros da arquibancada norte da Arena no intervalo do jogo entre Grêmio e Cruzeiro, em 2 de julho, pelo Brasileirão, para cheirar cocaína. O caso é um indicativo de que não apenas a bebida alcoólica e a maconha habitam os estádios, mas também drogas mais pesadas.
No início, eram pelo menos sete gremistas que tomaram todo o espaço de cabines dos sanitários. Dentro de uma delas, estavam dois homens. Um deles batia no forro do casaco, sacolejava insistentemente. O outro aparava o pozinho branco que caía com a tela avantajada de um moderno smartphone.
A operação se estendeu por vários minutos, enquanto centenas de outros torcedores circulavam por ali, com a possibilidade de ver o que acontecia. Mas isso não os intimidava.
Celular serve de base para carreiras de pó
Depois de apanhada a droga, começou a preparação. Linhas foram formadas sobre o aparelho celular, que passava de mão em mão, chegando ao corredor do banheiro. Com notas de dinheiro estreitamente enroladas, formavam canudinhos usados para aspirar o pó, enquanto o segundo tempo do jogo já rolava no gramado. Eles cheiraram sem serem importunados.
Em dado momento, chegaram a dizer que mais porções da droga poderiam ser obtidas “lá no outro banheiro, os guris estão lá”, sem detalhar a quem exatamente estavam se referindo.
A cocaína não é incomum. Neste mesmo dia, a reportagem estava em um dos corredores de acesso à arquibancada quando um homem se aproximou. Perguntou se havia a droga para vender. E completou: “Me disseram que era aqui”, indicando que há o conhecimento de lugares do setor norte onde podem ser encontrados determinados produtos. Depois de receber uma negativa, passou a abordar diversos torcedores que passavam pelo local para pedir pó.