Por meio corpo, o Inter teve que frear o êxtase do gol marcado por Edenilson diante do Corinthians aos 51 minutos do segundo tempo, no Beira-Rio, que dava ao clube um título brasileiro não conquistado há mais de quatro décadas. O impedimento assinalado pela arbitragem àquela altura era mais um ponto simbólico de uma noite em que o sonho de ser campeão bateu na trave outra vez.
Ao recuar alguns meses no tempo, no entanto, era bem improvável projetar um dia como o 25 de fevereiro de 2021. Como um time, fora do G-4 do Brasileirão e eliminado da Copa do Brasil e da Libertadores, voltaria a ser protagonista em um campeonato liderado com folga pelo São Paulo, mas que também tinha outros concorrentes pesados como o todo poderoso Flamengo e ainda o Atlético-MG, exclusivamente focado na competição por um semestre inteiro?
Se muitos jogadores provaram em campo seu valor naquela caminhada, como Edenilson, Patrick, Víctor Cuesta e Yuri Alberto, ninguém mais teve os holofotes direcionados para si como Abel Braga. Em entrevista exclusive ao programa Paredão do Guerrinha, da Rádio Gaúcha, o treinador recordista de jogos na história do Inter, revelou detalhes e contou bastidores sobre sua sétima passagem pelo clube, sem deixar de relembrar sua relação com o futebol primeiro como jogador e agora como técnico.
Convite de Marcelo Medeiros
"Quando me ligaram, eu pensei: era o Inter. Esta empatia que eu tenho com o clube é incrível. E era também como se eu estivesse devendo ao Inter. Não que realmente eu estivesse, mas eu me sentia um devedor com o Marcelo Medeiros. Aquela derrota de 5 a 0 para a Chapecoense (em 2014), com o Dida expulso, foi muito feia. Eu pensei na época em como seríamos recepcionados em Porto Alegre. Mas o Giovanni Luigi, presidente da época, e o Medeiros, vice de futebol, me convenceram a não sair. Na sequência, não perdemos mais e conseguimos a classificação direta na Libertadores.
Aí aconteceu minha única decepção em termos de Inter. O Vitorio Piffero foi atrás de outros treinadores e, depois, me ligou enquanto eu estava em viagem nos Estados Unidos. Eu já tinha mudado toda a minha vida, voltando para o Rio de Janeiro. Então eu neguei. Só que agora eu não podia dizer não ao pedido do Medeiros e ainda mais do Rodrigo Caetano."
A volta ao Inter pela sétima vez
"Teve um jogo fundamental no meu retorno ao Inter, que foi contra o América-MG, em Belo Horizonte. Na minha reestreia, houve o jogo contra eles no Beira-Rio, que foi ataque contra defesa. Não podíamos ter levado aquele gol de bola aérea. Lá, eu mudei o time e coloquei o D'Alessandro para ganhar superioridade no meio-campo. Foi uma pena não termos passado por eles. Saímos chateados, por conta da eliminação nos pênaltis, mas vimos que tinha uma ideia de jogo ali."
Estratégia
"Encontramos uma forma de jogar depois da partida contra o Boca Juniors na Libertadores. Eles jamais passaram por uma situação como aquela que fizemos a eles na Bombonera. Não tinham força para nos atacar, tendo que correr atrás de um adversário o tempo todo. Novamente perdemos nos pênaltis. Aliás, eu tenho muita sorte em penalidades dirigindo outros clubes, mas com o Inter, não. Só lembrar: Olimpia em 1989, e agora América-MG e Boca.
Porém, a gente também viu que tinha um grupo ali de operários que espelhava bem a história do Clube do Povo. Eles dignificaram a camisa do Inter e disputamos o título até o fim. Foi muito bom."
A perda do título nas rodadas derradeiras
"Neste penúltimo jogo, contra o Flamengo, tivemos a expulsão do Rodinei. Mesmo com um a menos, vimos o brilhantismo dos atletas. Aquilo era nossa estratégia. A gente sabia que, no segundo tempo, eles cansariam, mas aí veio o lance e aquela atitude ridícula do VAR logo aos dois minutos. A gente viu que já seria muito complicado. É muita sacanagem, não dá pra explicar.
Na última rodada, foi aquilo que vimos. Se o Corinthians jogasse sempre daquela forma, estaria na fase de grupos da Libertadores. Foi uma pena, porque o Inter é um clube gigante, que passou por históricos inacreditáveis e que tem seu título tirado na "mão grande". Não dá pra entender como um clube é desfavorecido desta maneira. O torcedor me falava isso, de que estava muito convicto. Então é óbvio que causa uma frustração grande. Porque, no fundo, nós trabalhamos para estes torcedores.
Falaram muito sobre nossa derrota para o Sport, mas o Flamengo perdeu para o Ceará no Maracanã. Estas coisas acontecem. O campeonato é duro. O legal é você ter um time cheio de garotos, como o nosso, com Caio Vidal, Praxedes e Yuri Alberto, e disputar um título até o fim contra uma equipe como a do Flamengo."
Uma campanha para ser lembrada
"Quem merece todo este louvor são os jogadores. Um time de operários que ia até a última gota de suor, sempre acreditando. Foi simplesmente incrível o que vivemos. A relação da comissão técnica com a direção, que recém havia entrado, e o grupo era muito boa. Eles deixaram o trabalho fluir, sempre dando espaço para interagir.
Recorde dos recordes
"Eu consegui concretizar uma coisa que nem nos meus mais belos sonhos eu poderia imaginar: ser recordista de jogos do Inter, o cara que mais dirigiu o clube na história. É surreal. Me encheu de orgulho. Estou aqui com a placa que eu ganhei do presidente quando superei a marca e também a bola do jogo, que todos os jogadores assinaram para mim."
Decepção por não continuar?
"Sinceramente não fiquei decepcionado. Havia uma eleição e minha palavra estava dada ao Medeiros. Eu sabia que estava indo para o Inter e, naquele meu sentimento, estava pagando uma dívida com ele. Eu entrei sabendo destas condições. No jogo contra o Bahia, no final do ano passado, eu sentei com o Alessandro Barcellos, que é uma figura espetacular, e o João Patricio Herrmann, e tudo foi acertado para eu ficar até o fim do Brasileiro. Ele tinha o direito de fazer as trocas que quisesse, sem problema algum. Isto foi importante para o trabalho.
Chegou a um determinado momento que eu tive a chance de ir pro Al-Nasr, de Dubai, que é um dos mais tradicionais dos Emirados Árabes. Eu não podia largar o Inter assim, ainda mais do jeito que o time estava engrenando com vitórias. A única coisa que eu não concordei na relação com a nova direção é que eu poderia ter sido avisado que já havia um acerto com outro treinador. Isso seria problema zero para mim. O presidente é um cara do bem e a nossa relação estava muito legal. A verdade é que ninguém acreditava que disputaríamos o título até o fim. Eu entendo isso. Não teve mágoa. Ele só poderia ter me dito isto."
Outra função no Inter
"Eu escutei de outras pessoas esta ideia de ser um diretor técnico do Inter, mas nunca do presidente tampouco do Paulo Bracks. Havia uma reunião no dia seguinte à final do Brasileirão e eu já tinha avisado ao grupo que não iria ficar. Alguns amigos me citaram que iria ser feito este tal convite, mas seria como se encerrassem minha carreira. Calma, não é assim. Meu mundo é futebol, mas eu quero decidir quando parar."
A vida pós-Inter
"O Abel voltou a fazer suas caminhadas na praia, encarando um calor desgraçado aqui no Rio de Janeiro. Deu uma complicada por conta da pandemia, com muitos locais fechando, com horário limite para funcionar. Está complicado. Eu tive alguns convites nos Emirados Árabes, porém não fico preocupado em pensar no amanhã. Minha vida sempre foi assim, com as coisas acontecendo de forma surpreendente, como minha volta ao Inter, por exemplo. Estou bem comigo mesmo, e isto é o mais importante."
Do que você se arrepende na vida?
"Eu deveria ter me sacrificado um pouco mais no início da minha carreira como atleta. Eu me formei em Economia e entrei no segundo ano do curso de Direito. E isto aconteceu bem na época em que me mudei para a França. Eu disse desde criança que queria ser advogado, porque gosto de justiça. Mas acabei ficando muito tempo fora e depois não consegui concluir o curso. Eu poderia ter me esforçado um pouco mais, e isso é algo do que me arrependo."
O piano e o filho
"Eu sempre gostei de tocar piano. É algo que me desestressa e seria fantástico retomar isto. Mas o piano está esquecido aqui na casa e eu explico o porquê. Meu filho que faleceu estava aprendendo a tocar violão e guitarra. Então, quando eu estava no piano, ele vinha ao meu lado com o violão. Eu sento ali e lembro dele. Por isso não consigo mais tocar, eu choro. "