O Inter que entra em campo, jogando pela vida na Série A e sem depender apenas de si para obter seu objetivo, é o resultado de uma sucessão de erros. Zero Hora conversou com dirigentes, funcionários, jogadores, pessoas que orbitam o vestiário para recontar um ano pode entrar na história como o da primeira queda do clube à segunda divisão. O ano, que teve decisões equivocadas, biografias manchadas, patrimônio destruído e o torcedor humilhado, se reflete em um time que perdeu o caminho das vitórias pouco depois da metade do primeiro turno. Campeão mundial, bi da Libertadores, campeão da Sul-Americana e tri do Nacional, o Inter pode mudar de turma na segunda-feira, dependendo do resultado de Coritiba e Vitória, no Couto Pereira, combinado ao que ocorrer neste domingo. Os matemáticos apontam para quase 90% de risco do clube cair. Grande parte da torcida não acredita mais. Mesmo que seja tarde demais para corrigir os erros de um ano inteiro, saber o que contribuiu para o desespero pode servir de lição para outras temporadas.
A manutenção de Argel
O Inter pretendia começar 2016, com um técnico novo. Embora o contrato com o treinador se estendesse até a metade do ano, a ideia dos dirigentes era trocá-lo após o fim do Brasileirão. Mas Argel surpreendeu: com o grupo de jogadores remanescentes da semifinal da Libertadores, o time fez a segunda melhor campanha do returno do Brasileirão, atrás apenas do campeão Corinthians. O quinto lugar no campeonato comprometeu o plano.
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O fim da era D'Alessandro
Contratado ainda sob o primeiro mandato de Piffero, elevado à condição de ídolo, capitão e principal peça do Inter, D'Alessandro não tinha mais o prestígio de antes com a gestão.
– Quando foi a última vez que ele jogou bem fora de Porto Alegre? – disse o presidente a interlocutores que debatiam sobre aceitar ou não uma proposta do River Plate para o camisa 10 voltar à Argentina.
A resposta de quem estava em um dos encontros:
– Quantas vezes ele foi ao Nordeste no último ano?
Na visão de quem comandava o futebol do Inter, surgiam lesões e suspensões quando o calendário apontava os longos voos a Recife ou Salvador. Assim, decidiram aceitar uma proposta do River Plate para levar o meia, também ídolo por lá. Por R$ 650 mil (aproximados) pelo empréstimo mais o pagamento dos salários, o time de Buenos Aires tirou o capitão do Inter, aos 35 anos.
Mas não sem polêmica pública: pouco antes de sair, D'Alessandro criticou a participação na Primeira Liga, por acúmulo de jogos.
O então diretor de futebol Carlos Pellegrini disparou minutos depois:
– O jogador é pago para jogar futebol, não para opinar sobre o que o clube está decidindo.
Em 3 de fevereiro, D'Alessandro fez seu último jogo pelo Inter. No Passo D'Areia, ajudou o time a vencer o São José, nos pênaltis, e levar a Recopa Gaúcha.
Os reforços de 2016
Quando soube que perderia Alisson para a Roma, já em fim de contrato, a direção do Inter foi atrás de Danilo Fernandes, destaque do Brasileirão anterior no Sport e indicação do preparador de goleiros do Inter Daniel Pavan. Mas não houve reposição para quase nenhuma outra posição. Saíram Réver e Juan, foi embora Aránguiz, Nilmar deixou o clube. Chegaram: Leandro Almeida para a zaga e Fabinho e Fernando Bob para o meio, no início do ano. E para a lateral, Paulo Cezar Magalhaes, um chileno nascido em Canoas que estava sem clube e cuja contratação teve o seguinte cenário: Carlos Pellegrini encontrou o tio do lateral – que havia sido dispensado da Universidad de Chile –, o ex-jogador da dupla Gre-Nal Paulo César Magalhães, na rua e comentou que o sobrinho desejava jogar no Brasil. Foi contratado. A janela de julho trouxe apenas o meia Seijas e os atacantes Nico López e Ariel, os dois últimos lesionados, ainda por cima, e o primeiro, na Copa América. Quando Paulão se lesionou, o Inter apelou para o retorno do zagueiro Eduardo, que estava emprestado no Náutico. Com William na Seleção, o clube pagou R$ 1 milhão para repatriar Ceará, do Coritiba. Que também estava machucado. E veio ainda Eduardo Henrique, indicado por Falcão.
A demissão de Argel
Como não conseguiu demitir Argel no final de 2015, o presidente colocou uma nova data: após o Gauchão.
Tudo se encaminhava para uma saída sem traumas, já que o Grêmio era amplamente favorito ao título. A má campanha na primeira fase, atrás de Grêmio e São José, a eliminação na semifinal da Primeira Liga e o futebol longe de encantar deixava a direção segura para tirar o treinador sem desgaste com torcedores e jogadores.
Mas então veio a decisão do Estadual, contra o surpreendente Juventude – que tinha eliminado o Grêmio –, e duas vitórias 1 a 0 em Caxias, 3 a 0 no Beira-Rio impediram qualquer mudança. Com torcedores felizes e a brincadeira de Sasha dançando a "Valsa dos 15 anos" com a bandeirinha de escanteio, em ironia ao período do Grêmio sem grandes títulos, ficou difícil tirar o comandante. Impossível depois do início do Brasileirão. Nas oito primeiras rodadas, o time chegou à liderança do campeonato.
Porém, o triunfo emblemático contra o Atlético-MG foi a última antes da maior série sem vitórias em campeonato nacional. Daquele jogo em diante, o Inter ficou 14 partidas sem vencer (seis sob as ordens de Argel). Teve ainda uma crise diretamente ligada ao técnico: um áudio de whatsapp para um amigo vazou. Nele, o técnico avisava que "iria passar o trator" no Grêmio. Perdeu, viu o time ser alvo de brincadeiras do rival e despencar na tabela.
– Errei. Deveria ter demitido o Argel no final do ano passado – confessou Piffero a um amigo.
Falcão
Vitorio Piffero fala até publicamente:
– Mesmo com os problemas, Celso Roth foi um técnico que tentou arrumar o time.
Essa resposta é dada cada vez que alguém lhe pede para definir o trabalho de Falcão. O ídolo do Inter foi chamado pela terceira vez para comandar o time dois dias depois da saída de Argel.
Pellegrini, Piffero e Falcão se reuniram em um restaurante de frutos do mar. Sentaram-se a uma mesa próxima à janela, possibilitando ser fotografados. A carga emocional era a aposta dos dirigentes. Com um dos maiores ídolos da história ao lado, a pressão diminuiria, a torcida compraria a ideia e o time voltaria a se encontrar.
Mas só a emoção não foi suficiente. Falcão chegou pedindo aos jogadores que ficassem com a bola, evitassem balão ("o chutão é uma ilusão de 10 segundos") e tivessem coragem para jogar. Tudo diferente de seu antecessor.
Um jogador comentou:
– Conversar com Falcão sobre futebol é impressionante. Nunca vi alguém com tanto conhecimento. Mas ele não consegue passar para o time isso.
Em menos de um mês, cinco jogos, nenhuma vitória, queda de Pellegrini, protesto violento de torcedores contra a direção, Falcão foi informado sobre a interrupção de seu trabalho no dia seguinte ao empate contra o Fluminense, que teve como último ato a frase do interino vice-presidente de futebol Pedro Affatato:
– Falcão é nosso técnico até que se prove o contrário.
Swat
A saída de Falcão era uma condição imposta pelo grupo que assumiria o futebol do Inter no segundo turno do Brasileirão, em 14º lugar com 22 pontos, um a mais do que o então 17º Figueirense. O novo departamento colorado trazia de volta o presidente campeão mundial de 10 anos atrás, Fernando Carvalho à frente, ladeado por Ibsen Pinheiro como assessor e Newton Drummond, o Chumbinho, como executivo. Para a casamata, Celso Roth.
Apesar de negar publicamente e de garantir que a opção pela saída de Falcão tenha partido de Vitorio Piffero, os novos dirigentes consideravam que Roth faria o time se adaptar mais rápido.
Na apresentação, Carvalho denominou o grupo de "Swat colorada".
Mas antes daquele dia, o presidente do título mundial precisou ser convencido a voltar ao clube. Sempre alegava que sua atividade profissional, consultoria sobre futebol, era incompatível com o cargo no Inter. Nem mesmo no Sala de Redação estava mais. Porém, era um chamado de Piffero, seu amigo de décadas e parceiro na penúria dos primeiros anos. Ao falar com Ibsen e ver a disposição do dirigente, Carvalho se empolgou e aceitou.
Com a janela de transferências fechada, não havia praticamente tempo para novos negócios. A única chegada foi Eduardo Henrique, indicado por Falcão.
A briga de Anderson x William
Na montanha-russa vivida entre a 28ª e 32ª rodada, o auge chegou pouco depois da maior crise interna dos jogadores. Na sexta-feira antes de enfrentar o Flamengo, que brigava pela liderança, o último treino seria de portões fechados, no Beira-Rio. Apenas os minutos finais estariam abertos. E justamente neste período, uma discussão entre William e Anderson se transformou no que a linguagem policial chama de vias de fato. O lateral-direito xingou o meia e tentou lhe dar uma bolada. Os dois atravessaram o campo batendo boca até que Anderson desferiu um soco. Outros companheiros apartaram antes que virasse UFC.
William estava já suspenso, foi liberado no final de semana. Anderson seria a surpresa do jogo, titular no lugar de Seijas. Mas também ficou de fora.
Na segunda-feira, o lateral foi informado sobre uma advertência formal. O meia recebeu como punição uma multa de 15% do salário. Mas foi a conversa de Anderson o que mais impactou. Era a primeira vez em mais de um ano e meio no clube que ele deu mostras de se importar com o ostracismo que vivia.
Quase chorando, pediu a Carvalho:
– Só quero que vocês me deem oportunidades para ter uma sequência. Se me deixarem jogar, vou mostrar meu valor.
A demissão de Roth
– Celso Roth é um retranqueiro arrependido.
Mesmo enfrentando seis dos oito piores times do Brasileirão em casa, o time de Celso Roth conquistou apenas 17 pontos. Levou 16 e fez 12 gols em 16 jogos.
Mas para Piffero, o pior defeito da gestão de Roth foi "ter mudado seu estilo". O presidente considera que o técnico traiu seu estilo mais conservador de escalação para "dar uma resposta" aos críticos.
Desde o empate contra o Santa Cruz, que impediu o Inter de abrir uma distância segura para o Z-4, interrompeu a série crescente que vinha desde a vitória sobre o Figueirense e fechava com o empate no Gre-Nal na Arena, surgiu o rumor de uma possível demissão do treinador.
Carvalho, porém, rejeitava essa mudança. Apelava para sessões de coaching, conversas com jogadores e motivação de torcida. Para o vice de futebol, trocar de técnico só poderia ser a última alternativa.
Imediatamente após o 1 a 1 com a Ponte Preta, que deixava o Inter no Z-4, em meio à pancadaria que rolava no pátio do Beira-Rio, um Fernando Carvalho desanimado anunciava um acordo para Roth deixar o time.
No pronunciamento de despedida, o técnico disparou como frase final:
– Até a próxima.
Lisca
Luiz Carlos de Lorenzi é amigo de Fernando Carvalho há quase 20 anos. Desde quando Lisca era técnico da base do Inter, ouvia do dirigente:
– Um dia, tu vais trabalhar aqui (apontando para o Beira-Rio).
Chegou o dia. Aceitou receber R$ 300 mil para os três jogos e R$ 700 mil pelo 16º lugar.
Com discurso enérgico, atitudes intensas e treinamentos específicos, o novo técnico apresentou um quarto novo perfil. Depois da derrota para o Corinthians, veio uma cobrança ríspida aos jogadores. Os trabalhos isolados no Hotel Vila Ventura, em Viamão, colaboraram para este ambiente.
O sofrimento da Swat
Carvalho quase nunca demonstrou abatimento, mesmo nas derrotas mais pesadas, como contra o Vitória, em casa. Sempre apresentava um discurso otimista, de convocação aos torcedores, união de movimentos políticos e esperança na reversão de cenários. Mas nem ele resistiu à derrota para o Corinthians, na segunda-feira.
No estacionamento do Itaquerão, em frente à van que conduziu dirigentes ao jogo, abraçou-se à filha Samantha e desabou. Aos prantos, não conseguia segurar a tristeza pelo iminente rebaixamento. Chegou a pedir para não falar. Coube a Piffero ir ao microfone e criticar a arbitragem.
Hoje, o histórico dirigente mal consegue dormir, tem olheiras permanentes e se tornou uma pessoa angustiada. Seu prazo para consertar tudo era de um turno do Brasileirão, sem possibilidade de contratação. Em determinado momento, já parecia não ter forças para arrumar a bagunça. A amigos, Fernando Carvalho confessava os graves problemas internos, e o seu sofrimento para tentar resgatar o time.
– Meu grande arrependimento é ter trazido o Fernando para esta barca. Ele não merecia – assume Piffero a interlocutores da gestão.
Piffero, inclusive, já tem um plano para o final da gestão: vai tirar uma foto com Carvalho em meio às taças da última década, conquistadas sob seus comandos. Será a despedida deles do Inter.
*ZHESPORTES