Antes de ser o Cebolinha, Everton era o Cabeça. O magricelinho menino, com pernas e braços fininhos e a cabeça, bem, a cabeça já como é hoje, enchia de boladas os portões das casas da Rua 36 do bairro Jereissati 1, na periferia de Maracanaú. A cidade, localizada na região metropolitana de Fortaleza, é conhecida tanto por sua intensa atividade industrial quanto por ser a mais violenta do Brasil.
Vivia agarrado a uma bola de futebol e só parava de correr, driblar, chutar, fingir transmissão e, de novo, deixar marcas nos muros, quando sua mãe dava o ultimato gestual clássico da palmada.
Jogar futebol era a vida de Everton Sousa Soares. Passava o dia com a bola no pé. Acordava às 6h, comia algo no café da manhã e já começava a correria. As horas passadas dentro da sala de aula pareciam intervalos forçados na atividade que tanto gostava. Tanto que nenhum de seus amigos contemporâneos de escola tem alguma recordação sua como aluno.
— Everton era tão tímido, tão quietinho. Não fazia nada. Parecia que só queria o recreio e a educação física — recorda a prima Girlaine Nogueira.
Realmente, Everton era fominha a ponto de jogar bola a caminho de ir jogar bola. Ele não se contentava em brincar apenas quando chegasse no "estádio". No trecho de sua casa até o campinho, ia trocando passes e correndo com os amigos. Foi numa dessas que desfalcou seu próprio time.
O Cabeça se deslocava para o campo com o amigo Ramon, 23 anos. Os dois iam caminhando e tocando a bola. Everton, então, deu um passe mais longo e seu companheiro de equipe correu para devolver. Chutou o chão. Com o impacto, foi-se o tampão do dedão. O time acabava de perder o lateral-esquerdo.
— Fui até lá e só fiquei vendo o pessoal jogar — lamenta Ramon, o azarado jogador que arrancara o pedaço do pé.
Não que isso fosse um dificultador para o time. Como várias vezes faz no Grêmio, ele se acostumou a decidir sozinho os campeonatos municipais. Como o memorável torneio de futsal maracanuense de 2007. A competição foi na sede da Associação de Moradores do Conjunto Novo Oriente, um "ginásio" com poucas cadeiras nas pequenas arquibancadas, o que deixa inverossímil tanta gente lembrar da atuação do Cabeça naquela decisão do sub-11. Mas é curioso: todos garantem que estavam lá. E contam a mesma história. O jogo se aproximava do final. Uns dizem que faltava um minuto, outros, 30 segundos. O Novo Oriente perdia por 4 a 2. Era só questão de tempo o título para o adversário. Mas Everton tratou de mudar tudo. Diminuiu o placar para 4 a 3 e, na jogada derradeira, driblou os quatro oponentes de linha e, quase sem ângulo, empatou o tempo normal. Nos pênaltis, levantou o caneco.
— Ele ganhava os jogos para nós. Eu o chamava de "rato de areia", pelo comportamento em campo, sempre se mexendo e correndo tanto. Vinha lá do Jereissati para treinar aqui, é longe. O avô dele que trouxe, depois não saiu mais — comenta Francisco Gleisson, o dono do projeto Novo Horizonte, que há 33 anos abriga meninos de sete a 17 anos para jogar futebol.
Foi ele quem amenizou o problema da distância para Everton. Como o local do treino é longe da casa da família, o menino precisava pegar o metrô para ir até lá. Mas em Maracanaú, isso significava expô-lo a um risco maior do que talvez pudesse suportar. A cidade já vivia uma onda de violência, que hoje a coloca com o mais alto índice de violência do Brasil: a média é de 145 homicídios para cada 100 mil habitantes, segundo estudo divulgado em 2019 pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Para comparar: Porto Alegre tem índice de 47 para cada 100 mil habitantes – a Onu entende como aceitável o patamar de 10 a cada 100 mil.
O aumento das facções criminosas no Nordeste transformou o entorno de Fortaleza em um corredor para o tráfico de drogas, e o fato de essa faixa de Brasil ter o maior número de jovens entre 15 e 24 anos sem emprego ou estudo só contribui para o crescimento da violência. A saída de Gleisson foi dar a Everton uma bicicleta.
Por "sorte" (também conhecida como estrutura familiar, bons exemplos, orientação e punição aos erros), a turma que circundava Everton soube manter o foco nos livros ou na bola. Nenhum de seus amigos ou parentes mais próximos teve problemas maiores com polícia. O máximo que causavam era transtorno aos pais.
Como a vez que os amigos levaram o Cabeça a uma festa de carnaval. Everton estava proibido, mas na adolescência o risco pode eventualmente valer a pena. Não foi o caso. Ao descobrir que o filho tinha ido para o bloco, a mãe, Elenise, já preparava as palmadas corretivas.
— Everton correu para o quarto e, quando vi, ele estava colocando umas quantas cuecas, bermudas, calças, uma por cima da outra. Era para aliviar o impacto dos tapas — diverte-se Emanuel, amigo.
A amizade
Aliás, sobre amigos, é preciso mencionar Wescley Farias. Aos 36 anos, o ex-jogador virou amigo de Everton por causa do futebol. Como adversário. Depois de lesões de joelho que lhe afastaram do profissionalismo em uma carreira com passagens por Fortaleza, Tuna Luso e até futebol austríaco, Wescley era o técnico oponente de uma final de futebol de campo contra a equipe do Cabeça. Ele mesmo admite: seu time era muito melhor. Mesmo assim, Everton deu um trabalhão, dificultando o título. Ali, criaram um vínculo e se aproximaram ainda mais.
Quando o Cabeça começou a virar Cebolinha, já na categoria de base do Fortaleza, onde chegou aos 14 anos, estreitaram os laços. Wescley virou amigo de Carlos Alberto, o Betão, pai de Everton. Mais: tornou-se seu ajudante. Recepciona o atacante do Grêmio sempre que vai a Maracanaú, como nas férias atuais.
Em meio a isso, a vida reservou a Wescley pior dor que um pai pode ter. Cecília, sua filha, após uma gestação complicada, nasceu com cinco meses e por três anos lutou contra as complicações de um parto prematuro. Em agosto, não resistiu. Everton ficou arrasado. Ele e os familiares, que têm em Wescley um dos seus, fizeram o que puderam para ajudá-los. Após a morte da menina, Cebolinha deixou sua homenagem. Ao marcar um dos gols do Grêmio na vitória sobre o Goiás, na Arena, o atacante foi na câmera e disse: "Cecília, é para você". Depois, postou no Instagram uma foto explicando a atitude.
— Não sei como descrever nossa amizade. Ele é um cara muito importante na minha vida. Ajudou em tudo o que precisei e mantém a mesma simplicidade de quando batia um racha (a expressão cearense para jogar uma pelada) aqui na rua — derrete-se Wescley.
Cebolinha foi fundamental para a realização de um dos sonhos do amigo. Pouco depois de perder a filha, Wescley organizou um evento de Dia das Crianças para arrecadar brinquedos e promover ações sociais para a gurizada da região. A ação lotou a praça de Maracanaú e, pelo menos por alguns minutos, trouxe alegria ao lugar mais violento do Brasil.
De Fortaleza a Porto Alegre
A chegada de Everton a Porto Alegre teve apoio de outro ponteiro esquerdo gremista. Ao ver o jogador se destacar em treinos do Fortaleza, o ex-atacante Jorge Veras percebeu que indicá-lo ao seu antigo clube do Sul. Em 2012, o maracanuense se destacou na Copa Carpina Sub-16, disputada em Pernambuco. Imediatamente, chamou a atenção de diversos clubes, entre eles o Grêmio... e o Inter.
A diferença foi que os colorados ofereceram testes, proposta rejeitada pelo Fortaleza. Os gremistas já acenaram logo com um contrato. Em março de 2013, Everton chegou emprestado para a base tricolor. No final do ano, o clube gaúcho pagou R$ 300 mil por 90% dos seus direitos.
Praticamente pulou o sub-17, já que após poucas partidas foi alçado ao sub-20. Subiu para o profissional no final daquele 2013, com Enderson Moreira. Com Felipão, na sequência, quase foi parar emprestado ao Novo Hamburgo, para ganhar rodagem. Depois, consolidou-se na equipe e nunca mais saiu.
Além da mulher e dos filhos, a vida em Porto Alegre ganhou a companhia dos pais, Carlos Alberto e Elenira, e de sua irmã caçula Bia, de cinco anos. Apenas o outro irmão, João Victor, de 18, ficou no Ceará. Os familiares se mudaram para a capital gaúcha porque havia a expectativa de sair do Grêmio vendido a um gigante europeu, e eles iriam para lá ajudar em mais essa troca de rotina. Como não houve acerto, seguiram por aqui. Não moram na mesma casa, mas próximos, e passam bastante tempo juntos.
— Gosto muito da cidade, é muito legal o carinho dos gaúchos com o Everton. Para nós, é como um sonho. Sempre quisemos morar todos juntos.
Música, pipa, videogame e paternidade
Antes de ser um dos melhores atacantes do Brasil, Everton queria ser músico. Mesmo sem saber tocar um instrumento sequer e ter uma voz de taquara rachada, sonhou ser parceiro de Solange na banda Aviões do Forró. Claro que a timidez impediu qualquer apresentação na rua, mas em casa, enchia os ouvidos (e a paciência) dos pais, tios, avós e primos da Rua 36.
— Quando a gente via, ele estava cantando e se mexendo como o Xand do Aviões — conta a tia Helane, a quem ele deu de presente a casa em que morava com os pais, que agora o acompanham em solo gaúcho.
Entre os "Pode chorar, mas eu não volto pra você" e "De bar em bar, de mesa em mesa", a outra diversão de Everton afora jogar bola era o PlayStation. Claro que no mundo virtual, o que rolava também era futebol. E, nos dias de vento, subia na laje para soltar pipa.
Mas, como perguntaria o tiozão, e as namoradinhas?
— Que nada! Antes da esposa (Isa Ranieri, com quem tem os pequenos Sofia, um ano, e Pedro, nascido em outubro), só teve uma menininha. E nem foi nada sério. Ele era tão tímido para ter uma, imagina ter mais — ri a prima Gislaine.
A prima é personagem de uma das histórias mais divertidas do Cebolinha. Na infância e no início da adolescência, era apaixonada por Alexandre Pato. Brincava com Everton que torcia para que ele virasse profissional para conhecer o atacante atualmente no São Paulo e que no dia que estivessem juntos, ele mandaria uma mensagem. Cebolinha cumpriu. A outra promessa da prima está a caminho. No Mundial de 2018, o Cabeça voltou a Maracanaú. Na casa da avó, vendo uma das partidas, ela disse: "Na próxima Copa, será você a jogar lá".
A atuação na Copa América pavimentou o caminho. Cebolinha virou o queridinho do Brasil e suas atuações encheram os olhos de Tite – e despertaram rumores sobre uma saída para a Europa. Na semana em que essa reportagem estava sendo realizada, a especulação da vez era sobre uma possível ida ao Paris Saint-Germain, onde poderia substituir (ou, por que não?, acompanhar) Neymar.
— Gostaria que ele fosse ao Manchester City, trabalhar com Guardiola. Mas isso sou eu. Quero mesmo é que ele seja feliz e faça as melhores escolhas. É um menino bom, que nunca mudou — diz o tio Antônio.
A avó materna, Marfisa, completa:
— Não posso mais viajar, estou velha. Mas pode dar um recado para ele, por favor? Diga que estou com saudade.