Por Leonardo Oliveira e Luís Henrique Benfica
O Renato Portaluppi técnico, aos 56 anos, é um sujeito discreto. Evita a exposição pública e toma mais cuidado com as palavras, embora, por vezes, sua faceta irreverente teime em se tornar protagonista. Mas nada perto daquele Renato provocador, polêmico e, principalmente, midiático dos tempos de jogador de futebol. Nos anos 1980 e 1990, era comum vê-lo em fotos com modelos cheias de curvas ou cutucando rivais com declarações em jornais. Ou em arroubos como no jornal O Globo em que, com coroa, roupa típica e cetro, posou como o "Rei do Rio" depois de dar ao Fluminense, com gol de barriga, o Campeonato Carioca de 1995. Um campeonato que todos previam ser do Flamengo, de Romário, ou do Botafogo, de Túlio Maravilha.
O tempo ensinou Renato a fazer alarde sem fazer barulho. A conquista do Tri da Libertadores é exemplo disso. Com mão firme, mas também leve, ele conduziu o Grêmio de volta aos títulos. O vestiário parece ser seu. A prova é o misto de idolatria e respeito que os jogadores mostram por ele em cada entrevista. Renato manda sem ser autoritário. Conversa olho no olho sem olhar de cima. E isso faz com que o grupo, como se refere aos atletas, o respeite e o trate como parceiro de futevôlei ou pelada.
GaúchaZH mergulhou no universo de Renato. Ouviu seus amigos atuais e os dos tempos de mullets, camisa colorida e língua afiada para rebater quem se atravesse a desafiá-lo. É consenso entre todos eles que só mudaram os cabelos. O Renato continua o mesmo. Ou seja, aquele cara extrovertido, que faz as mesmas brincadeiras de 20, 30 anos atrás, como entrega Paulo Roberto, o amigão generoso que partilha tudo, conforme relata Paulo Cézar Magalhães, e aquele irmão zeloso pela família, segundo os irmãos Íris e Mauro.
Renato, segundo eles, não mudou. Conserva a essência do guri buscado de Kombi pelo Grêmio em Bento Gonçalves, numa operação arquitetada às pressas para evitar a investida do Inter. Segue brincalhão, segue confiante, segue leal a quem está a sua volta. A diferença é que esconde tudo isso atrás da figura de treinador. Que ganha, como ganhava nos tempos de jogador. E isso, aliás, é outro traço de sua personalidade que segue intocado.
O lado irreverente e brincalhão
Oriundo de uma família numerosa, Renato encontrou na família do lateral-direito Paulo Roberto o afeto que havia ficado em Bento. Nos fins de semana sem jogos, ele e outros guris do alojamento eram figuras nos churrascos na casa da família Coelho, em Viamão. Renato era quase um filho adotado. Em um aniversário da mãe de Paulo Roberto, ele, Macuglia e outro companheiro arrumaram bicicletas e foram do Olímpico até Viamão para entregar uma flor a dona Neusa. Com o pai do lateral, seu Wilson, o carinho era imenso. O que não o livrou de ser vítima das estripulias de Renato. A gurizada, acostumada a competir, criou um jogo para passar o tempo. A disputa era em duplas. Um lançava a bolinha de ping pong com a mão, e o outro tinha de acertar o cabeceio em um balde. Em um domingo, o parceiro de Renato era seu Wilson. O jogo esquentou e, no calor da disputa, o atacante, em vez da bolinha, lançou um ovo de galinha para o pai do lateral cabecear.
— O pai cabeceou com tudo, e o ovo estourou e escorreu pela testa. Ele xingou de tudo o Renato, que ria sem parar — recorda Paulo Roberto.
Confiante desde guri
Guilherme Macuglia se lembra como se fosse hoje da chegada de Renato ao Grêmio, em 1980. Estava nas sociais do Olímpico, descendo as escadarias, quando o diretor de futebol amador, José Russowski, apresentou-lhe o novato:
— Este é o Renato, veio de Bento Gonçalves para jogar aqui.
Macuglia era o mais veterano na caverna, como era conhecido o local sob as cadeiras do Olímpico. Havia chegado três anos antes. Sobreviver lá, admite, era complicado. Mas Renato precisou de pouco tempo para se entrosar. Confiante e brincalhão, poucos dias depois estava entre os líderes da turma. Essa mesma confiança ele demonstrava em seu futebol. Quando a gurizada se sentava nas cadeiras para ver os treinos, ele repetia em alto e bom som:
— Vou jogar nesse time, sou melhor do que esses caras aí. Pode escrever, logo, logo estarei jogando nesse time.
Macuglia foi companheiro de ataque de Renato nos juniores e, depois, no vice da Libertadores de 1984. Ainda hoje lembra-se da transformação física do colega. Em dois anos, o magricela buscado em Bento havia se tornado um touro.
— O gringo comia como um cavalo. Nós saíamos para jogar amistosos em cidades do Interior e nos serviam almoço. Ele chegava a repetir cinco vezes a sobremesa — conta Macuglia, hoje também técnico.
Generoso com amigos
Um dos grandes amigos de Renato nos tempos de Grêmio, parceiro na conquista da primeira Libertadores e do Mundial, em 1983, o ex-lateral-esquerdo Paulo Cézar Magalhães quase não se encontrou com o técnico neste ano. A Libertadores e a agenda pesada de jogos tiraram o tempo para jogar conversa fora. No ano passado, diz Magalhães, os encontros eram frequentes. A amizade, apesar da distância, segue a mesma. Fica claro logo no começo da conversa por telefone:
— Paulo Cézar. Tudo bem?
— Tudo ótimo, né. Continuamos campeões da América 34 anos depois, porque tem um representante nosso lá (no time).
A cumplicidade entre Magalhães e Renato sempre foi grande. A razão talvez esteja na generosidade do parceiro, diz o ex-lateral. Desde os tempos de aperto na base, Renato sempre foi muito amigo dos amigos. Nunca demonstrou um mínimo traço de mesquinhez. O que era dele, era de todos:
— O que ele é hoje, era há 30, 40 anos.
O Renato é fantástico, um ser humano raro. Até nós nos surpreendíamos com a humildade dele, com a atenção que dava a todos. Nunca se sentiu superior. E o que era dele, era de todos: a roupa, o talão de cheques, o carro.
O carro, aliás, marca um capítulo da vida dos dois e prova desapego de Renato. Depois de um amistoso na Serra, o supervisor Antônio Carlos Verardi permitiu que eles voltassem de carro com amigos e não no ônibus. Jovens, famosos, eles, é claro, espicharam a noite. Quando Magalhães pegou sua Parati para tomar o caminho de Canoas, o tanque estava vazio. E aquela era uma época em que os postos fechavam à noite. Renato recém havia recebido seu Dacon, um modelo esportivo lançado na época. O carro tinha rodado apenas 2 mil quilômetros — sendo a metade na viagem desde a fábrica, em São Paulo. Só que numa esquina de Porto Alegre, Magalhães bateu o carro. Que teve perda total:
— Destruí o carro dele, no qual mal tinha andado ainda. Mas esse é o Renato.
A humildade desde jovem
Dois anos mais velho do que Renato, Mauro Portaluppi ficou conhecido pela passagem no Grêmio, em 1984. Era centroavante do Esportivo e veio reforçar o time campeão mundial. Sua trajetória no Olímpico, no entanto, ficou mais marcada pelas histórias inventadas por Renato. Sua irreverência não perdoava nem o irmão. Por exemplo: no início dos anos 1980, o bronzeamento artificial era novidade por aqui. Chegou batizado como "banho de lua". Renato espalhou que, numa noite de inverno, chegou em casa, em Ipanema, e perguntou à mãe pelo irmão:
— Ele está na beira da piscina, tomando banho de lua.
Mauro jura ser mentira. Essa e várias outras criadas pelo irmão, na época (e como hoje), dono do vestiário do Grêmio. O ex-centroavante, hoje representante comercial, aponta a humildade como a maior das virtudes de Renato.
— Isso (humildade) é muito importante, algo enraizado na família. No Renato, fica mais evidente por ter sido o que teve mais sucesso. Mas a humildade permaneceu nele até hoje, é um prazer ver que não mudou — elogia Mauro, que visita o mano com frequência no hotel em que ele mora.
O pai sempre bondoso
Nem o Mundial, tampouco as taças da Libertadores ganhas como jogador e técnico, que o colocam como único nesse patamar no Brasil. A maior joia de Renato é a estudante Carol Portaluppi, filha única do craque, fruto de um relacionamento com a ex-apresentadora de TV Carla Cavalcanti. Renato é vigilante com a filha. Tanto que a impediu de ir a Buenos Aires assistir à final com o Lanús. A relação entre eles é de cumplicidade total — e de idolatria por parte da filha.
Carol não se cansa de postar nas redes sociais fotos com o pai. Faz questão de estar presente em todos os momentos importantes dele como técnico. E também de falar sobre o pai. Nesta sexta-feira, mesmo derrubada por uma gripe e com a agenda lotada de compromissos, a estudante de publicidade parou para falar de Renato.
— O que me chama mais atenção nele? O coração, a bondade. Desde pequena, me acostumei a vê-lo ajudar as pessoas, principalmente, a família. Ele, por exemplo, deu uma casa para minha avó, e essa é uma história que me emociona, que acho muito bacana. Ele sempre me inspirou nesse sentido e tenho orgulho dele. Isso é algo que aprendeu ainda pequeno e que me transmitiu — diz Carol, emocionada.
Cuidados com a família
Entre os Portaluppi, Íris, 65 anos, é apontada como a mãezona da família desde a morte da matriarca, dona Maria, em fevereiro de 2010. É na casa delas que os 11 irmãos se encontram nos momentos de festa. É para lá também que correm quando precisam de algum amparo. Inclusive Renato. Apesar da rotina de treinos e jogos, sempre que possível, ele marca presença.
Os laços familiares dos Portaluppi seguem fortes. Depois do Mundial, está prevista uma festança. Ali, o técnico do Tri se mostra de forma genuína. Renato é um cara família. Sempre foi. Quando voltou de Tóquio campeão mundial, em 1983, reuniu os, à época, 13 irmãos. Para quem morava de aluguel, deu um apartamento. Há cinco anos, Maicon, um dos filhos de Íris, foi passar as férias na casa do tio no Rio. Recebeu uma proposta de emprego e ficou. Zeloso, Renato telefonou para a irmã:
— Nestes primeiros quatro meses, vai morar comigo aqui. O Rio é perigoso, e ele vem de Bento, uma cidade pequena.
O coração de Íris apertou:
— Pelo amor de Deus, Renato. Ele é como teu filho, cuida dele pra mim — pediu a irmã.
A ordem foi cumprida com rigidez. Tanto que Maicon telefonou para Bento:
— O tio não me deixa sair aqui, ele pega no meu pé.
— Ele tem ordens para isso — encerrou a mãe, com um sorriso de satisfação no rosto.
Quase parou no Inter
Renato Portaluppi quase foi parar no Inter antes de acertar-se com o Grêmio. Quem conta é o ex-presidente Rafael Bandeira dos Santos, que atuava como vice de futebol em 1980, época da contratação do jogador. Depois de observar o atacante em uma partida de juniores entre Esportivo e Grêmio, em Bento Gonçalves, no ano de 1979, a direção decidiu trazer para Porto Alegre o garoto de 17 anos, endiabrado com a bola nos pés.
O problema é que Darcy Pozza, presidente do clube da Serra, exigiu o pagamento à vista.
— Manda o dinheiro hoje ou ele vai para outro clube aí de Porto Alegre. E não é o Cruzeiro nem o São José — ameaçou o falecido dirigente.
Assustado, Bandeira expôs o problema ao presidente Hélio Dourado, de quem ouviu que o clube não dispunha da verba. Bandeira, então, usou o próprio talão de cheques, tendo o valor devolvido duas semanas depois pelo Grêmio. Conforme outra versão, o cheque seria de José Russowski, diretor de futebol amador, que foi de Kombi a Bento Gonçalves buscar Renato.
O destino voltaria a unir dirigente e jogador 11 anos depois. Era 1991, o Grêmio havia sido rebaixado para a Série B, e Bandeira buscou Renato no Botafogo para reforçar o time para o Gauchão.
— Eu o trouxe duas vezes para o Grêmio. Quando foi embora pela segunda vez, ficamos devendo salários. Procurei-o para explicar, e ele cortou o assunto com a seguinte frase: "Presidente, me pague quando o senhor puder".
Briga com a máfia
Em 1992, Renato esteve perto de brigar a socos com um mafioso. Com o agravante de que o episódio se passou em território italiano, conforme relata o jornalista Cícero Mello, 61 anos, do canal ESPN. O incidente ocorreu em 1992, em Milão, depois de um amistoso entre a Seleção Brasileira e o Milan. Jogadores e jornalistas, entre eles Mello, na época na Rádio Globo, de São Paulo, jantavam em uma churrascaria da cidade italiana quando um garçom aproximou-se da mesa que Renato dividia com André Cruz e Careca, retirou a garrafa de vinho que os três degustavam e a entregou para um desconhecido sentado ao lado. Seguiu-se, claro, um forte bate-boca.
— Que história é esta? — exaltou-se Renato com o garçom.
— Ele queria tomar o teu vinho — respondeu o funcionário.
— Se ele quisesse meu vinho, era só pedir uma taça que eu daria — retrucou o jogador.
O desconhecido, então, ergueu-se de sua mesa e dirigiu-se a Renato, ameaçador:
— Você é gringo. E aqui quem manda sou eu.
A resposta veio forte, com Renato erguendo-se da mesa.
— Gringo é você. Não está vendo que aqui só tem brasileiro, e a casa está fechada para o público?
O dono da churrascaria entrou em cena para contornar o que, em segundos, viraria briga.
— Pelo amor de Deus, Renato, esse cara é da máfia. Já matou gente por muito menos.
O episódio encerrou-se ali.
O ponteiro gastador
Setorista do Grêmio durante 15 anos pela RBS TV, João Bosco Vaz, hoje vereador em Porto Alegre, diz que perdeu a conta das tantas histórias que testemunhou tendo Renato como protagonista. Uma delas é de 1984, na época em que o Grêmio contratou para técnico Francisco Neto, o Chiquinho, que precisaria administrar um grupo de jogadores de personalidade forte, como De León, Paulo Roberto e China, além do próprio Renato. Na apresentação, buscando se impor, Chiquinho avisou:
— Olha aqui, vou dizer uma coisa. Se vocês quiserem me jantar eu almoço vocês.
Renato levantou a mão:
— Posso falar?
— Claro — respondeu Chiquinho.
— Só não esquece que tem o café da manhã...
No mesmo ano, junto com os também repórteres Darci Filho e Joabel Pereira, Bosco Vaz convocou Renato para um diálogo, cujo objetivo era orientá-lo a não gastar todo o dinheiro que recebia. Incomodado com a demora da conversa, o atacante encerrou:
— Pessoal, obrigado por tudo, mas sou muito jovem ainda. Posso gastar tudo que tenho até os 24 anos e depois começo a juntar tudo de novo.
O colunista Renato
É possível imaginar que Renato Portaluppi já tenha sido colunista de jornal? Pois isso ocorreu em 1996, ano em que o atual técnico do Grêmio atuava pelo Flamengo. Era a época do Rei do Rio, e o jornal carioca A Notícia enxergou a possibilidade de atrair mais leitores oferecendo um espaço ao irreverente atacante, uma das tantas celebridades que sacudiam o Rio de Janeiro. Renato, claro, não tinha tempo, vocação, nem vontade para escrever. O jornal, então, orientou o estagiário Diogo Aída a ligar diariamente para o jogador, ouvir seus relatos e colocar no papel. O texto saía no rodapé de uma das páginas esportivas. Nele, Renato falava de sua vida dentro e fora de campo, elogiava mulheres, apontava preferências musicais e, claro, expunha seu pensamento sobre o futebol. A experiência estendeu-se por um ano inteiro.
— A repercussão era forte. Imagine como seria hoje, nesse tempo de redes sociais? — indaga Aída.
A amizade entre os dois se consolidou tanto que, anos mais tarde, Renato escolheria o jornalista para ser seu assessor de imprensa. Se Renato virou carioca, Aída converteu-se em gaúcho, mora com a família em Porto Alegre e é visto sempre no CT Luiz Carvalho nos dias em que o treinador concede suas cada vez mais concorridas entrevistas coletivas.
Nasce um técnico
A relação de Gérson Oldenburg, o Gauchinho, e Renato começou em 1995. O empresário do técnico, na época, havia deixado os gramados de forma precoce, por uma lesão no púbis, e decidiu garimpar promessas em Candelária, onde construiu um CT. Gauchinho bateu no Fluminense, onde o conterrâneo fazia sucesso, gol de barriga e ostentava o título de "Rei do Rio". Amigos em comum os apresentaram. Não demorou para Gauchinho entrar no seleto círculo de amizade de Renato.
— Quando ele gosta de alguém, quando percebe que a pessoa é correta, vê que é do bem e tem princípios iguais aos dele, o Renato sempre procura manter essa amizade. Ele dificilmente muda de amigo. É um cara verdadeiro, não tem meias palavras. Fala o que pensa, independentemente do que pode acontecer — descreve Gauchinho.
Os dois se conhecem há 22 anos, mas faz apenas uma década que a relação virou profissional. O agente o ofereceu ao Fluminense, em 2007. A direção recusou em um primeiro momento e contratou Joel Santana. A má campanha no Carioca abriu a porta para nova tentativa. Desta vez, o clube topou apostar. Era uma volta para casa. Foi nas Laranjeiras que, em 1996, Renato teve a primeira chance como técnico. Era atacante, mas estava machucado. Em crise, o clube decidiu colocá-lo como interino. A estreia foi, por coincidência, contra o Inter e com vitória de 2 a 1.
A vinda para o Grêmio, em 2010, também enfrentou resistências. Gauchinho conta que o ofereceu aos dirigentes do futebol. Como as respostas negativas se repetiam, ele bateu na porta do presidente Duda Kroeff. O Grêmio estava no Z-4 e chegou à Libertadores. Para Gauchinho, o segredo do sucesso de Renato não está apenas na entrega ao trabalho:
— Ele é inteligente. Os craques são inteligentes, não é?