O gol de Reinaldo aos 16 minutos contra o Veranópolis fez mais do que salvar o Cruzeiro do rebaixamento. Salvou o clube. A permanência na elite era condição básica para que as negociações com um grupo de investidores prosseguissem. O projeto é ousado. Prevê conclusão do estádio em Cachoeirinha até o final do ano, construção do CT no terreno de sete hectares no Bairro Betânia e injeção de dinheiro para montagem de um time competitivo a partir do próximo Gauchão.
Como contrapartida, os investidores terão participação em jogadores formados pelo Cruzeiro, em futuras vendas de jogadores do time principal e exploração da nova arena para shows, eventos religiosos e o que mais for possível. O estádio para 16 mil pessoas é o sonho de uma torcida pequena, mas fiel. Está erguido desde 2013. Recebeu gramado no início de 2014, mas depois disso o dinheiro acabou. Faltam vestiários, cabinas, acabamento, urbanização do entorno e tudo o mais que o orçamento modesto levaria muitos anos para alcançar. Em meio ao Gauchão, o cercamento com pré-moldadas de concreto foi retomado. E comemorado como vitória. A perspectiva de um parceiro que acabe com as dificuldades para manter o clube vivo só aumentavam a ansiedade na reta final do Gauchão.
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Contra o Ypiranga, no dia 2 de março, o vice de futebol e ex-presidente, Dirceu Castro, desesperava-se a cada lance no Vieirão. O Cruzeiro vencia por 1 a 0, estava em cima, confiante. Caion, o centroavante, entrou livre na área e perdeu o que daria a tranquilidade ainda naquele primeiro tempo. Dirceu levou as mãos à cabeça.
– Não pode! Se fazemos esse gol, estamos encaminhados na primeira divisão. Não podemos cair. Temos investidores interessados em apostar no clube – disse, sentado no concreto da arquibancada do Vieirão.
Sim, o vice de futebol estava na arquibancada. Sentado em meio à torcida. Que é pequena e ruidosa. Mas, por ser pequena, tem ares familiar. Dirigentes, jogadores, conselheiros e torcedores sentam juntos na arquibancada. Se cumprimentam com afeto, sem distinção de hierarquia. Famílias levam o chimarrão e passam a cuia enquanto o jogo rola. Os filhos dos torcedores correm na arquibancada com os filhos dos jogadores. Tudo isso cria um ambiente diferente ao habitual em estádio de futebol.
Para o jogo contra o Ypiranga, decisivo, pela penúltima rodada, o pai do atacante reserva Vinícius providenciou uma charanga. Ele é dirigente de uma escola de samba de Canoas e levou cerca de 30 integrantes da bateria para fazer barulho no Vieirão. Havia bumbo, tarol, pratos e naipe de metais. O som deles quebrava a noite em Gravataí e reforçou o coro de cerca de 150 torcedores no estádio – embora o borderô tenha registrada a venda de apenas 55 dos 600 ingressos colocados à venda, para uma renda de R$ 1.280,00.
Os números da bilheteria desse jogo retratam a dificuldade de manter um clube na primeira divisão. O Cruzeiro ainda viu sua situação se agravar com o veto do Corpo de Bombeiros ao Vieirão. Era possível receber jogos, mas não torcedores. Para atender às exigências, era preciso, entre outras medidas. providenciar um novo PPCI e colocar barras no setor coberto. Até a oitava rodada, o Cruzeiro só jogou com torcida como visitante. Na nona, contra o Grêmio, estabeleceu-se um dilema. A comissão técnica defendia que enfrentar o Grêmio no Vieirão, onde os jogadores conheciam cada palmo de grama, seria uma vantagem. A direção alegava que levar o jogo para o Estádio do Vale seria garantia de receita. É claro que venceu o argumento da direção. Mas o público pagante foi de 303 torcedores, para uma renda R$ 11.800,00. Descontadas as taxas, sobraram R$ 4.006,00 para o Cruzeiro.
A crise técnica e os parcos recursos bateram fortes no presidente Antonio Rahde Sobrinho, 67 anos. No 2 a 1 sobre o Aimoré, a pressão subiu. Foi preciso atendimento médico. No 1 a 1 com o Ypiranga, estava pálido no alambrado. Mas o isordil tomado durante a partida dava garantias. Para jogar a primeira divisão, o Cruzeiro fez uma ginástica financeira. A verba pelos direitos de transmissão, R$ 1,2 milhão, foi toda investida em salários da comissão técnica e de jogadores – média de R$ 300 mil mensais. Os gastos do dia a dia vinham dos patrocinadores e de parceiros que doavam algumas quantias. O clube estima gastos entre R$ 30 mil e R$ 40 mil mensais para manter o clube em atividade. Mais os R$ 20 mil mensais pagos a Assis Moreira pelo aluguel pelo CT do Porto Alegre, no Lami. Alguns jogadores trazidos de fora moravam nos alojamentos. Uma cozinheira fazia as refeições deles e do grupo, quando o treino era em dois turnos ou quando havia concentração.
Quando assumiu o time, na sexta rodada, o técnico Ben Hur Pereira (foto acima) se assombrou com as viagens que o clube fazia para jogar como mandante. Gastava, pelo menos, uma hora e meia de ônibus do Lami até Gravataí. Menos mal que o ônibus, um executivo, tem os custos bancados pela Transcal, empresa de Cachoeirinha. Como o contrato com Assis se encerrava em junho, Ben Hur sugeriu antecipar a mudança para o Vieirão. Quem morava no clube, foi de mala e cuia para o estádio em Gravataí. O grupo passou a concentrar na cidade, no Hotel Radar. O que elevou a autoestima dos jogadores.
O segundo passo de Ben Hur foi intervir no vestiário. Em seu primeiro jogo, contra o Glória, um desentendimento ao final do jogo esquentou o clima. Além do ambiente nervoso, havia jogadores demais. Ben Hur reduziu dos 36 para 26. Dispensou três que estavam em teste, devolveu guris para os juniores e recebeu dois reforços, o meia Jéfferson Luis e o lateral-esquerdo Sander. O time se estabilizou a partir de sua chegada. Mas a primeira vitória 1 a 0 no São Paulo – veio só na quinta partida. Quebrou uma série de 15 jogos do clube sem ganhar na primeira divisão. Foi o início da virada. Foram 10 pontos em 12 possíveis, e a salvação.
– Quando cheguei, cobrei postura de vencedor. Disse para os jogadores que perdedores normalmente ninguém contrata – conta Ben Hur.
Na terça-feira, o Cruzeiro celebrou a permanência na primeira divisão. Um conselheiro doou o chope, outro 20 quilos de carne, o clube entrou com o aluguel do salão da churrascaria em Cachoeirinha. Ben Hur foi um dos homenageados. Recebeu uma medalha comemorativa ao centenário. Nada mais justo. Foi ele quem subiu o time em 2010 e o salvou da queda em 2013. O contrato acabou com o Gauchão, assim como o de boa parte dos jogadores. Mas Ben Hur deixou aberta a conversa para renovar. A perspectiva do Cruzeiro mudou com a permanência na elite. O volante Reinaldo nem imagina. Mas seu gol pode ter garantido ao clube o estádio novo e um horizonte bem além de Cachoerinha.
*ZHESPORTES