Vai começar a Copa de bolso. A Copa árabe, a Copa das batalhas de influencers no universo digital, a Copa das bandeiras da igualdade erguidas no alto, a Copa da geopolítica. Vai começar a Copa do Catar.
O mundo tem encontro marcado neste domingo para se deleitar com a nata do futebol por 30 dias. Mas, fiquem atentos. O primeiro Mundial no sempre nervoso Golfo Pérsico não será só futebol. Na verdade, nunca é. Só que, desta vez, temos nuances que vão muito além do brilho e do espetáculo das estrelas do campo.
Você talvez nem perceba, mas quando a bola rolar no suntuoso Estádio Al Bayt para o jogo de abertura, às 13h deste domingo, o mundo se moverá em suas diferentes camadas. Há o jogo de futebol diante dos seus olhos e um jogo de força políticas, culturais e econômicas por trás dela.
Tudo será diferente nesta Copa. Nunca o Ocidente mergulhou de forma tão profunda no universo árabe como acontecerá nos próximos 30 dias. Conectaremos nossas antenas na vida sob as leis do Islã e na cultura forjada nos séculos de domínio do Império Turco-Otomano.
O Oriente enxerga a vida e os costumes sob um outro prisma, e a Fifa, com seu perfil totalmente ocidental, estaciona a Copa em um porto no qual o apreço às tradições e ao conservadorismo são muito latentes. O preço foi alto. Mas o Catar, evidentemente, bancou tudo justamente para vender ao Planeta uma imagem diferente.
Nunca foi tão escancarada na história da Fifa a força do dinheiro. Tanto é que, depois da escolha do Catar, em 2010, veio o Fifagate e a queda em série dos cartolas. Os xeques "convenceram" a Fifa a mudar o lugar da Copa no calendário pela primeira vez. Mais, a "convenceram" a colocar o mundo dentro de um país do tamanho da Região Metropolitana de Porto Alegre. Venderam a ideia de que será possível assistir a quatro jogos em um mesmo dia, cumprindo de metrô distâncias máximas de 60 quilômetros e criando o conceito da Copa de bolso.
Os hábitos dos torcedores talvez sejam a ponta mais visível do quanto essa Copa será distinta. Pode-se beber, desde que em áreas determinadas. Quem já viveu a atmosfera da Copa sabe que ela é movida pela cerveja. Se houvesse uma bebida oficial, certamente seria ela.
Mais, a Copa, como todo evento de congraçamento mundial, tem a azaração como pauta central. Porém, as leis locais impedem quaisquer demonstrações de afeto públicas. Beijar fitando o mar azul do Golfo, portanto, nem pensar. Ficar, muito menos. Assim como no caso da bebida alcoólica, só nas zonas Fifa ou nos hotéis internacionais. Ao menos, o Tinder está abrindo, garantem os especialistas da área.
Há, claro, debates mais profundos a serem feitos do que esse das limitações da cerveja e da azaração. Embora isso impacte bem mais diretamente a vida dos torcedores. O Catar, nos últimos 10 anos, ao mesmo tempo em que exibia suas construções futuristas, também era questionado sobre a forma como lidava com os direitos das mulheres, o respeito às relações homoafetivas e a forma análoga à escravidão com que tratava os operários oriundos de países pobres da Ásia nos canteiros de obras.
A Europa, principalmente, era a mais critica. Na mesma medida em que compra seu gás liquefeito e transportado em navios. Aliás, o Catar evitou um inverno congelante nas casas europeias. Virou a tábua de salvação depois que a Rússia fechou os gasodutos a partir da invasão da Ucrânia. O que não brecou as críticas pela forma como os catares lidam questões hoje centrais ao Ocidente.
É neste momento em que entra em campo a batalha de influência digital. Torcedores populares nas redes sociais em seus países foram convidados a assistir à Copa. Tudo pago, mas com a sugestão de que use o filtro positivo ao falar do país. Houve reação forte na Europa, e o recuo.
Os convites seguem de pé, mas muitos terão de bancar seus próprios custos durante a Copa. Afinal, o mundo estará no Catar, e o Catar estará aos olhos do mundo. Tanto para ver seu luxo quanto para criticar seu lixo.
O mesmo país que construiu sete estádios espetaculares e singrou sua terra desértica com um metrô de estações que mais parecem shopping classe A também é o país que desrespeita direitos. O que, para quem pleiteia virar um centro de negócios internacional, pouco ajuda.
Enfim, neste domingo, 13h, começa a Copa de um mundo particular. Quando a bola rolar para Catar x Equador, o planeta estará de olho. É bom que fique. Uma nova ordem mundial estará se desenhando por trás do jogo.
A Copa é só um pano de fundo para um pequeno país de 2,7 milhões de habitantes mostrar à comunidade internacional que tamanho não é documento. Ainda mais quando se vive em cima de uma das maiores reservas de gás e petróleo do planeta. Boa Copa para nós. E que as peças do xadrez geopolítico se movam sem tombos. Como se diz no universo árabe, Insha'Allá!