Primeiro, os jogadores iranianos não cantaram o hino em sua estreia na Copa do Mundo, contra a Inglaterra. Depois, após a grande repercussão do ato, murmuraram versos antes da vitória frente ao País de Gales. Agora, nesta terça-feira (29), mais uma vez voltaram a cantar a canção sem muito entusiasmo antes da partida com os Estados Unidos.
Nas arquibancadas, os torcedores foram mais diretos. Vaiaram o hino no primeiro jogo. Levaram bandeiras e cartazes defendendo “a vida”, “a liberdade” e “as mulheres” no segundo. Usaram camisetas com o nome da jovem curdo-iraniana Mahsa Amini no terceiro. Foram, literalmente, às lágrimas durante o hino.
O Mundial do Catar vem sendo a "copa dos protestos", mas, diferente de outras nações, os iranianos não estão se manifestando contra o país anfitrião ou contra a Fifa: eles protestam contra a situação que se desenrola em sua casa.
Desde setembro, as ruas de Teerã e outras cidades próximas foram tomadas por manifestações em prol da liberdade feminina, cujo estopim foi a morte de Mahsa, de 22 anos, sob a custódia da chamada “Polícia da Moralidade do Irã”. Na ocasião, ela havia sido detida, segundo autoridades, por violar o código de vestimenta do país. Segundo a imprensa, seu crime foi usar o véu "solto demais" sobre a cabeça.
De lá para cá, mais de 300 pessoas já morreram em protestos, de acordo com informações do Escritório de Direitos Humanos da ONU. Pelo menos 15 mil pessoas teriam sido presas. As redes sociais do país foram suspensa. Ainda assim, os protestos persistem e, como foi visto na última semana, chegaram à maior competição de futebol do mundo. Por quê?
— Por conta da posição estratégica do Irã, o que acontece lá recebe atenção da mídia e acaba repercutindo internacionalmente. A população iraniana sabe disso e faz uso dessa característica como uma forma de obter apoio externo e colocar o regime sob pressão internacional. Então, é claro que um evento como a Copa do Mundo aparece como uma oportunidade para protesto — explica a pesquisadora do Núcleo de Pesquisa sobre Relações Internacionais do Mundo Árabe da UFRGS Camila Hirt Munareto.
Mas também há outro fator na conta: a paixão de iranianos e iranianas pelo futebol. Como ressalta a pesquisadora Luiza Müller, que estudou durante seu mestrado na UFRGS o movimento My Stealthy Freedom (algo como "minha liberdade vigiada", na tradução para o português), formado por mulheres iranianas nas redes sociais, o esporte é uma paixão nacional, apesar das mulheres apenas recentemente terem conquistado o direito de entrar nos estádios do país:
— O futebol é muito importante para o Irã. A população gosta muito, as mulheres gostam muito. Elas gostam, inclusive, de ir ao estádio e a gente tem esses relatos de "mirabolâncias" para ver o jogo — destaca. — Há fotos compartilhadas nas redes, por exemplos, de mulheres fantasiadas de homens, com barba colada no rosto, com alguma peruca, com roupas masculinas, para poderem assistir ao jogo dentro do estádio.
Neste contexto, Luiza acrescenta que, fazer um protesto contra o regime dentro de um estádio, em um jogo do Irã na Copa do Mundo da Fifa, é um momento gigantesco para essas mulheres:
— É uma conquista junto de uma afronta.
Impacto
O governo iraniano, por sua vez, não parece contente com a situação. Segundo reportagem da emissora norte-americana CNN, as famílias dos jogadores da seleção iraniana foram ameaçadas de prisão e tortura se os atletas não se "comportassem" antes da partida contra os EUA.
O treinador do Irã, Carlos Queiroz, chegou a afirmar à imprensa que seus jogadores estavam se sentindo pressionados devido à situação tensa:
— Vocês nem imaginam o que esses rapazes estão vivendo a portas fechadas nos últimos dias — afirmou à AFP. — Não importa o que eles digam, as pessoas querem matá-los. Você imagina estar em um momento de sua vida em que pode ser assassinado por tudo o que você diz? Com certeza, temos sentimentos e crenças e, em seu devido tempo, no momento adequado, os expressaremos — concluiu o técnico.
Os jogadores teriam sido convocados até mesmo para uma reunião com membros do Corpo da Guarda Revolucionária Iraniana após o silêncio durante o hino nacional antes da partida contra a Inglaterra, na qual teriam sido avisados de que suas famílias enfrentariam as consequências caso eles não cantassem o hino outra vez ou caso se juntassem a qualquer protesto político contra o regime.
— O Irã está recebendo atenção internacional neste momento, então qualquer tipo de medida tomada pelo regime contra os jogadores teria repercussões na política mundial. Isso, de certa forma, os protege de punições mais duras — analisa Camila. — No entanto, é importante pontuar a prisão de Voria Ghafouri, ex-jogador da seleção iraniana que declarou apoio aos manifestantes publicamente — o que pode ser visto, inclusive, como uma sinalização do regime para os jogadores da seleção.
Luiza complementa que o apoio dos jogadores aos protestos, ainda que silencioso, é muito impactante para as iranianas:
— Os jogadores, homens, estarem fazendo protestos e se colocando ao lado dessas mulheres, é algo que eu nunca encontrei, nem nada parecido — afirma.
Revoluções
Os atuais protestos não definem que esta seja a primeira vez que o Irã vai às ruas. Mesmo antes da revolução iraniana de 1979, que substituiu o regime do xá pelos aiatolás, a sociedade civil do país tem o hábito de lutar em prol de reformas e conquistas de direitos. E isso não mudou sob o regime autoritário que governa o país nas últimas quatro décadas, com grandes protestos em 1999, 2009, 2017 e 2019.
Nos últimos meses, contudo, o país foi palco de um endurecimento de políticas de controle social, com ampliação das restrições em relação às vestimentas das mulheres e ao aprimoramento dos mecanismos de controle, como a utilização de reconhecimento facial para punir quem não obedece às novas ordens, que acabaram fomentando o descontentamento da população a níveis inéditos.
A morte de Mahsa Amini não só se tornou um símbolo da opressão às mulheres, como também a gota d’agua para uma insatisfação iraniana em termos mais gerais
CAMILA HIRT MUNARETO
Pesquisadora do Núcleo de Pesquisa sobre Relações Internacionais do Mundo Árabe da UFRGS
— A morte de Mahsa Amini não só se tornou um símbolo da opressão às mulheres, como também a gota d’agua para uma insatisfação iraniana em termos mais gerais — explica Camila. — A marginalização de setores reformistas dentro do governo, a reintrodução das sanções econômicas após a retirada unilateral dos Estados Unidos do acordo nuclear de 2015, a deterioração das condições econômicas e a própria pandemia de covid-19 são fatores que compõem essa insatisfação popular e levam às manifestações.
Apesar do véu ter se tornado um símbolo dos protestos, com imagens do adereço sendo queimado nas ruas do Irã viralizando nas redes sociais, ambas pesquisadoras destacam que o adereço não é o cerne do problema, mas sim o autoritarismo do estado iraniano:
— O véu é apenas uma das interdições impostas a essas mulheres. Esse foco muito grande no véu é um olhar um tanto quanto ocidentalizado. Porque existem muitas outras interdições, como a própria questão dos estádios. O problema está em uma lei que tira a liberdade das mulheres que não são religiosas e também das religiosas, de optarem ou não por como desejam sair nas ruas — conclui Luiza.