De Rod Stewart e Shakira à seleção dinamarquesa. De jogadores a grandes cidades. De entidades que defendem os direitos humanos a Joseph Blatter. Todos, de alguma forma, se mostraram insatisfeitos em relação a aspectos da realização da Copa do Mundo do Catar. Com a aproximação do jogo de abertura, no domingo (20), as críticas direcionadas ao país do Oriente Médio se intensificaram. Ao longo dos 12 anos de preparação para o torneio, as dúvidas sobre os anfitriões se avolumaram ao invés de se diluírem.
A escolha por um país fora do eixo ocidental traz o desafio e a oportunidade de se mostrar ao mundo. O governo catari avistou no Mundial um catalisador para o seu projeto de desenvolver a nação e realizar uma conexão mais forte com o ocidente. O processo esteve envolto por controvérsias, denúncias de corrupção e violação dos direitos humanos.
As características peculiares da região fazem com que um choque cultural seja inevitável. As diferentes visões de mundo estarão reunidas em um raio de 50 km — são esperados cerca de 2 milhões de turistas. Questões relativas aos direitos humanos, o tratamento a mulheres e à comunidade LGBTQI+ são os principais conflitos em discussão fora de campo.
— É importante entender que existe um cabo de guerra entre a autonomia que o Catar quer consolidar, como um player internacional, um país que chama atenção como destino turístico e moderno, e as reclamações relacionados aos direitos humanos, homofobia e machismo. Isso vai, aos poucos, operando como um mecanismo de mudança em um país bastante ortodoxo. Há um processo de mudanças em curso. O Catar tenta navegar entre esses dois polos — explica o professor da PUCRS Marçal de Menezes Paredes, e doutor em História pela Universidade de Coimbra.
A liberdade de expressão se tornou um dos grandes muros a serem transpostos. Um repórter dinamarquês, já no Catar, foi impedido de realizar filmagens por seguranças locais. O país ocupa a posição de número 119 no ranking de liberdade de imprensa do Repórteres Sem Fronteiras.
Em meio a tantas controvérsias veja os principais pontos polêmicos em relação ao Catar.
Mulheres e gays
As principais dúvidas do turista brasileiro que vai ao Catar assistir aos jogos da Copa do Mundo são relacionadas a como se comportar. Os questionamentos são sobre o consumo de bebida, trajes adequados, demonstração de afeto em público, relação com gays e como as mulheres devem se portar. Ainda que entre as nações muçulmanas o Catar esteja entre as mais flexíveis, as regras locais podem assustar visitantes desavisados.
Considerada ilegal, a homossexualidade se apresenta como um dos obstáculos a serem vencidos. Os organizadores do Mundial afirmam que todos serão bem-vindos independentemente da orientação sexual. A Human Rights Watch (HRW) tem dúvidas de que as palavras serão cumpridas na realidade. A organização internacional e não-governamental que defende e fiscaliza a aplicação dos Direitos Humanos acusou, há três semanas, que o governo local deteve e maltratou pessoas da comunidade LGBTQI+. Autoridades locais afirmam as informações são falsas.
Seis pessoas, de acordo com a HRW, entre elas quatro mulheres trans, uma mulher bissexual e um homem gay, afirmaram que foram detidos no país entre 2019 e 2022, além de terem sofrido abusos verbais e físicos.
Outro ponto de interrogação sobre como os homossexuais serão tratados surgiu há poucos dias. Em entrevista à ZDF, emissora alemã de televisão, Khalid Salman, embaixador do torneio, não utilizou meias palavras sobre o tema. O dirigente foi assertivo ao dizer que a homossexualidade é um "dano mental", um haram (pecado proibido pelo islamismo).
— O país tolerará visitantes homossexuais, mas eles têm de aceitar nossas regras — afirmou, antes de a entrevista ser abruptamente interrompida pela assessoria.
As leis da sharia, código da religião do islamismo, também são opressoras em relação às mulheres, consideradas inferiores comparadas aos homens. Elas têm "liberdade" para fazerem o que quiserem desde que tenham autorização do marido ou do empregador. Até mesmo quando sofrem abusos, a lei pode se virar contra as vítimas. Um caso recente deixa clara a vulnerabilidade feminina no país.
No começo do ano, a história de Paola Schietekat chamou a atenção do mundo. A mexicana reportou às autoridades ter sofrido agressão física enquanto trabalhava no Catar e acabou condenada a cem chibatadas e a sete anos de prisão. Seu caso foi julgado como sexo extra conjugal, considerado crime no Catar. A alternativa oferecida para se livrar da pena foi a de se casar com o agressor.
A jovem de 27 anos conseguiu retornar ao México. O resultado final de seu julgamento aparece como uma ponta de esperança de que a legislação local possa ser flexibilizada. O processo foi devolvido pelo juiz à Procuradoria, o que na prática conclui o caso em favor de Paola, mesmo que ainda não esteja definitivamente encerrado.
Exploração de trabalhadores
Não fossem os imigrantes, ainda haveria toneladas de areia onde há estádios novos e hotéis luxuosos. Cerca de 90% dos trabalhadores do Catar são de outras nacionalidades. Eles estão em todo o mercado de trabalho e são divididos em dois grupos. Os "trabalhadores brancos" preenchem vagas em escritórios. Além de melhores condições, recebem salários mais altos. A maioria se emprega em funções mais braçais na construção de empreendimentos e na área de serviços. São pedreiros, empregadas domésticas, seguranças, entre outras categorias sem possibilidade de defender seus direitos. A maioria é oriunda de países do sudeste asiático.
Desde a escolha do Catar como sede, o modo como a mão de obra menos qualificada é tratada entrou no debate. O ponto de partida segue o modelo que acontece em vários lugares, mas o final da história é diferente. Pessoas de regiões pouco prósperas migram em busca da esperança de ter uma vida mais confortável e um pouco de dinheiro. A exploração começa com o pagamento de taxas para conseguir emprego. Em milhares de casos, os familiares que viram partir um ser humano cheio de energia recebem de volta um corpo sem vida.
O grande inimigo dos trabalhadores atende pelo nome de kafala, sistema de empregos que facilita a exploração. Embora abolido oficialmente, organizações ligadas aos direitos humanos afirmam ainda estar em vigor. O conjunto de leis trabalhistas deixava o funcionário vinculado "eternamente" ao patrão. Somente com a liberação do empregador era possível trocar de emprego e deixar o país. As mudanças trabalhistas em 2018 permitem a mudança, mas há pouca fiscalização para considerar que este obstáculo foi superado.
— O implemento desta legislação ainda é muito fraco. Segue sendo difícil trocar de emprego. Ainda é possível que o empregador apenas clicando no aplicativo cancele a identidade do empregado, e o trabalhador se torne ilegal. Queremos um comprometimento verdadeiro — explica May Romanos, pesquisadora da Anistia Internacional na região do Golfo Pérsico.
A entidade surge como uma das principais fontes de contestação sobre as condições com que os trabalhadores estrangeiros são tratados pelos anfitriões da Copa. Desde novembro do ano passado, dois documentos com entrevistas, relatos de casos e dados sobre a situação foram publicados.
O governo local se defende. Em resposta aos relatórios, disse que o sistema trabalhista está em evolução. As alegações de que há trabalhadores sendo explorados e presos foram rechaçadas.
— As histórias mais comoventes são com empregadas domésticas. Elas vivem na casa dos empregadores, não podem sair, enfrentam longas horas de trabalho e muitas vezes não são pagas. Muitas vezes passam por violência verbal, física e sexual. Mas, no fim, todos têm algum tipo de dificuldade — relata May.
Não há estimativa precisa de quantos trabalhadores morreram durante as obras para a Copa do Mundo. O jornal britânico The Guardian realizou levantamento junto a países asiáticos, como Bangladesh e Nepal, e chegou ao número de 6,5 mil mortos oriundos apenas desta região do planeta. A exatidão nos números se torna complexa, pois as certidões de óbitos apontam a morte natural como causa mortis.
A Anistia Internacional aponta para diversos relatos de homens saudáveis e jovens que passam nos exames médicos e morrem de causas naturais. Há situações em que trabalhadores submetidos a longas horas de trabalho braçais sob forte calor perdem a vida durante o sono.
A investigação surge como um ponto central para saber se as condições que os imigrantes são submetidos realmente evoluíram. A partir do apontamento exato da causa mortis será possível indenizar as famílias, que muitas vezes perdem o seu provedor. Enquanto a justificativa for a morte natural, tudo o que recebem é um corpo dentro de um caixão.
As histórias mais comoventes são com empregadas domésticas. Elas vivem na casa dos empregadores, não podem sair, enfrentam longas horas de trabalho e muitas vezes não são pagas. Muitas vezes passam por violência verbal, física e sexual
MAY ROMANOS
Pesquisadora da Anistia Internacional na região do Golfo Pérsico
Os principais problemas
- O sistema kafala vincula trabalhadores estrangeiros a seus empregadores, restringindo a capacidade de mudança de emprego e saída do país
- Atraso e falta de pagamento de salários
- Barreiras à obtenção de justiça para trabalhadores imigrantes
- Impunidade para empregadores abusivos
- Proibição dos trabalhadores imigrantes de formar e aderir a sindicatos
- Falha em aplicar as leis que deveriam proteger os direitos dos trabalhadores
O que foi feito
- Lei dos Trabalhadores Domésticos, que estipula limites de jornada de trabalho e pausas diárias obrigatórias, folgas e feriados remunerados
- Comissões de Resolução de Conflitos Trabalhistas
- Um fundo para apoiar e agilizar o pagamento de salários em atraso
- Novo salário mínimo não discriminatório
- Acabar com os requisitos de permissão de saída e Certificado de Não Objeção
- Formação de comissões mistas entre empregadores e trabalhadores
Sportwashing
A medida é tão antiga quanto os grãos de areia do deserto, embora o nome seja tão novo quanto o luzente estádio de Lusail, joia da coroa dessa Copa, erguido em uma cidade também construída do zero. Sportwashing é o neologismo criado para a utilização do esporte como meio para melhorar a reputação de um país, região ou pessoa.
Os grandes eventos esportivos se tornaram uma espécie de relações públicas para mostrar poder, pujança financeira, organização e exportar uma imagem positiva. Ao ser escolhido para sediar a Copa, o governo catari acelerou o ambicioso Qatar National Vision 2030, planejamento criado para alavancar o desenvolvimento econômico, ambiental, humano e social dos anfitriões. Se estruturalmente há êxito, nos outros aspectos a lavagem através do esporte ainda deixa manchas.
— O Catar é um país pequeno e rico que está ansioso para comprar legitimidade global por meio da realização de megaeventos globais. Sem dúvida, grande parte do mundo ficará impressionada com a capacidade do Catar de realizar a Copa e vai parabenizá-lo, deixando de lado muitas das complexidades que assolam a região. A imprensa ficará deslumbrada com o espetáculo esportivo — argumenta Mark Dyreson, professor doutor em história do esporte da Faculdade de Penn State, na Pensilvânia.
Alguns participantes do torneio tentam evitar que a realidade seja encoberta. Ao menos 11 seleções se posicionaram contra algum aspecto das leis locais. A Dinamarca, por exemplo, deixará mais explícita sua indignação. A equipe escandinava terá o emblema da federação e da fornecedora de material esportivo menos visível em seus uniformes. O objetivo é não deixar a imagem das duas em evidência "durante um torneio que custou a vida de milhares de pessoas", como afirmado em comunicado no dia do lançamento das peças.
O Catar é um país pequeno e rico que está ansioso para comprar legitimidade global por meio da realização de megaeventos globais. Sem dúvida, grande parte do mundo ficará impressionada com a capacidade do Catar de realizar a Copa
MARK DYRESON
Professor doutor em história do esporte da Faculdade de Penn State, na Pensilvânia
A Fifa tenta minimizar possíveis estragos e manifestações políticas durante partidas da Copa. A entidade enviou comunicado para as federações envolvidas com a competição solicitando o foco no jogo e pedindo que se afastem de questões políticas e ideológicas.
Cidades como Paris e Londres não farão festas para que os moradores assistam aos jogos juntos. Jogadores individualmente também se posicionaram. Artistas abriram mão de cachês para fazer shows. Presidente da Fifa quando o Catar foi eleito, Joseph Blatter também mostrou desgosto, embora sua principal crítica seja sobre a realização dos jogos em um espaço tão pequeno.
O mundo árabe tem ampliado os seus tentáculos em direção ao oriente através do esporte. Os países investem milhões de dólares na aquisição de grandes equipes, como Manchester City e Paris Saint-German. Também despejam dinheiro para terem em seus países grandes jogos de tênis, corridas de Fórmula-1, torneios de golfe e, agora, chega ao ápice com a Copa do Mundo.
— Os antigos gregos usaram o esporte para polir as imagens de suas cidades-estados e aumentar o poder de suas políticas — explica o professor em uma comparação do que ocorre no Oriente Médio nos tempos atuais.
Há casos icônicos de uso da máquina esportiva. Um dos mais salientes são os Jogos Olímpicos de Berlim, em 1936. Hitler queria mostrar a força do seu país e de suas ideias para o resto do mundo. Mesmo que o principal nome do evento tenha sido Jesse Owens, um velocista americano negro, a mensagem inicial foi atingida. Quase cem anos atrás, a Alemanha, através do evento, escondeu seu anti-semitismo e as piores tendências de seu totalitarismo. Assim, fez o mundo pensar que era uma nação moderna poderosa e respeitável — pelo menos até 1939, quando a II Guerra eclode.
Situação similar vive a Rússia. Nem a realização dos Jogos Olímpicos de Inverno e da Copa do Mundo foram suficientes para limpar a imagem do país de Vladimir Putin, vista como vilã por medidas tomada nos últimos anos e agravadas com a guerra na Ucrânia iniciada este ano.
Depois que a taça for erguida em 18 de dezembro e o Catar seguir a sua vida cotidiana se saberá de que lado da história o país estará posicionado.