O Japão é mal-assombrado, já tinham me dito isso antes de eu sair do Brasil. Alguém aí vai reclamar: como pode um país mal-assombrado? Pode, ué. A Inglaterra e a Escócia são mal-assombradas, sabia? Talvez seja coisa de velhas ilhas.
Dramas e tragédias se sucederam através dos séculos, pessoas sofreram e choraram, e toda essa dor ainda vagueia entre os vivos. Mas havia esquecido que o Japão era mal-assombrado. Até que um fato terrível aconteceu. Em primeiro lugar, recebi um e-mail do Ângelo, aí de Porto Alegre. O Ângelo já morou no Japão. Um dia, estava trabalhando, só ele e um colega, numa pequeníssima sala, que muitas salas no Japão são pequeníssimas. Então, ouviu aquela voz de mulher, uma voz lamentosa, porém clara, que dizia:
- Âaaangelo... Âaaaangelo...
A mulher o chamava! Ele e o colega olharam em volta. Saíram para o corredor. Ninguém. Doutra feita, o Ângelo estava no mesmo escritório com dois amigos. Conversavam durante o trabalho, quando um horrendo grito de mulher lhes arrepiou a espinha e lhes eriçou os cabelos. Essas duas ocorrências se deram à luz do dia. À noite, era pior. Seguidamente, o pessoal do escritório via a figura triste de um velho caminhando em meio a máquinas e prateleiras.
Além de uma mulher vestida de branco, possivelmente a que clamara por Ângelo e, mais tarde, gritara de horror. Essa alma penada flanava pelos corredores, melancólica como um abandono. A prima do Ângelo também vivia no Japão. Trabalhava numa fábrica. Uma noite, foi ao banheiro. Havia três boxes, todos desocupados. Entrou no último deles. Ao fechar a porta, ouviu o inconfundível som de uma pessoa escovando os cabelos. Saiu. O banheiro estava vazio. Estranho...pensou, já com o coração apertado. Neste instante, a descarga de uma das privadas foi acionada. Só que o box estava vazio... A prima do Ângelo saiu em disparada e, a partir dali, só ia ao banheiro acompanhada.
Essas histórias o Ângelo me contou em seu e-mail, lembrando-me, pois, que o Japão é um país torturado por espectros. Então aconteceu o tal fato horrendo. Foi de madrugada. Tinha terminado de escrever, e resolvi ligar para a sede do jornal a fim de conferir se o material chegara corretamente. Para não acordar o Mauro, que dormia na cama ao lado, fui para o corredor do hotel, um corredor comprido e escuro, tão comprido e tão escuro que sequer conseguia enxergar as portas dos últimos apartamentos, lá no fundo, envoltas que estavam pelas sombras. Sussurrava, portanto, ao celular, temendo perturbar os hóspedes, no momento em que percebi que, do fim do corredor, uma criatura vinha em minha direção. Forcei os olhos para ver melhor. Não conseguia. O que era aquilo? As histórias do Ângelo me vieram à cabeça. Aos poucos, a figura se tornava mais distinta, e quanto mais distinta se tornava, mas aflito eu ficava.
Era......era alguém de quimono. O que uma mulher de quimono estaria fazendo de madrugada no corredor do hotel? Ela se aproximava, se aproximava. Mesmo de longe, percebi que era algo monstruoso, de formas disformes, de passos descompassados. Estremeci. Aí ocorreu o pior. Com voz roufenha, quase desumana, a criatura rosnou:
- Daviiiiid, ...Jesus Cristo! Já me preparava para atirar o celular longe e sair correndo, quando A Coisa disse:
- Ô, meu! Ô meu? Fantasmas não falam ô meu. Parei. Olhei melhor. Era o Roberto Alves, vestido com um quimono do hotel, decerto com insônia, querendo me oferecer um copinho de saquê. Suspirei, aliviado, mas olhando bem para o Roberto, tive certeza: o Japão é mesmo mal-assombrado.
* Coluna publicada originalmente em junho de 2002