Terminado o jogo em Yokohama, voltei para o hotel de metrô. De repente, numa estação intermediária, um baixinho embarcou. Era brasileiro, tinha cara de brasileiro. Estava acompanhado da mulher e da filha, estas sim, obviamente japonesas.
Minutos mais tarde, fiquei sabendo que o baixinho vive e trabalha no Japão. Certamente exerce uma dessas funções não tão bem remuneradas que os japoneses não aceitam exercer, as roupas do baixinho eram quase andrajos, em seu rosto estavam cavados os vincos indisfarçáveis de quem trabalha muito e trabalha duro e trabalha sem grande compensação.
O baixinho, porém, entrou no vagão de queixo erguido, a imponência a luzir no olhar, o orgulho a se lhe derramar dos poros. Era um Napoleão coroado, um Getúlio Vargas voltando ao Catete nos braços do povo. Então o baixinho olhou para cada um no entorno. E sentenciou, como se fosse, ao mesmo tempo, uma explicação e um arrosto, repetindo o que certamente pensaram milhões de brasileiros como ele, de crianças como a da foto a adultos:
— Sou pentacampeão do mundo.
A redenção do baixinho que mora no Japão já fez valer todo o esforço dos jogadores da Seleção Brasileira.
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Uma tarde, ainda estávamos em Kuala Lumpur, na Malásia, fui entrevistar o Kléberson e o Falcão se chegou. Contei esse episódio aqui: o Kléberson ficou vermelho, como que encolheu diante do Falcão, quase não conseguiu falar atrás do aparelho ortodôntico. Naquela tarde, o Falcão deu uma série de conselhos a Kléberson. Disse que ele, Kléberson, poderia ser tímido fora de campo. Dentro, nunca. E encerrou com uma frase de alguma contundência:
— Se é para tocar a bola para o lado, até eu, com 48 anos, faço.
Não sei se essa frase rascante arranhou algum ponto sensível da alma de Kléberson, mas ontem, contra a Alemanha, ele jogou como se estivesse seguindo o conselho do Falcão. Fez a passagem pelo fundo do campo, tabelou, chutou, apresentou-se para o jogo. Kléberson foi a surpresa tática da partida. Porque a Alemanha estava preocupada com os 3 Rs, com Cafu e com Roberto Carlos e, de repente, os laterais não subiram tanto e quem apareceu na frente foi um Kléberson arisco, cheio de malícia e decisão.
Quantos recursos mais temos Brasil? Isso é de atormentar qualquer alemão.
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O jogo terminou, e origamis em forma de pequenas aves foram lançados ao céu de Yokohama. Os origamis voaram como se fossem pássaros vivos, fizeram algumas acrobacias, volutas para um lado, para outro, e foram descendo, suavemente. Alguns aterrissaram nas arquibancadas, outros no histórico gramado onde o Brasil, minutos atrás, batera a Alemanha e se sagrara pentacampeão, e um terceiro grupo, esse menor, caiu no reservado de imprensa.
Quase ao mesmo tempo em que os origamis tocavam o solo, pressurosos voluntários japoneses os recolhiam para atirá-los ao lixo — os japoneses são assim, rápidos eficientes. Fiquei olhando a sorrir para os passarinhos de papel que voaram para festejar a vitória do Brasil. Pensei que deveria recolher um, levá-lo a Porto Alegre para mostrar aos meus amigos, quem sabe até dar para algum leitor que o quisesse, mas no momento mesmo em que pensava isso outros jornalistas brasileiros se lançaram contra os bichinhos, catando-os do chão. Cheguei a ter vontade de ir lá, disputar um origami, mas vacilei, fiquei sem nenhum.
Talvez a decepção tenha se tornado óbvia no meu olhar, talvez eu tenha suspirado de resignação, não sei. Só sei que ainda fitava os passarinhos de papel no campo de jogo, quando percebi uma presença ao meu lado. Olhei. Era uma voluntária japonesa. Ela estava com o braço estendido na minha direção e, na palma da mão voltada para cima, havia um origami.
Olhei em seu solhos. Ela sorria, me oferecendo o animalzinho de seda. Sorri de volta. Apanhei o origami. Agradeci:
— Arigato gozai-ma.
Ela fez uma reverência à moda japonesa e se foi, para continuar o trabalho.Vou fazer esse origami atravessar dois oceanos, vou fazê-lo pousar em Porto Alegre. E quem sabe, até o faço mesmo de presente a um leitor mais interessado.
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Vou sair do Japão depois dos meus colegas da RBS. Estou sozinho aqui, agora. Neste momento, olho para o janelão do meu apartamento, no hotel, e vejo o imponente porto de Yokohama, as elevadas das autopistas, as linhas de trem, os japoneses que zunem como abelhas para começar outra semana de trabalho. Fico pensando neste Japão tão ordeiro, neste povo tão educado e engenhoso. Fico pensando se não poderíamos construir um país semelhante. Porque nós temos algo que ninguém tem: todos somos brasileiros.
Branquelas como alemães, de olhos puxados como japoneses, morenos como turcos, negros como senegaleses, todos somos brasileiros, se nascemos no Brasil. E até alguns que não nasceram também são. O Brasil é a vitória da tolerância racial. Talvez por isso, por toda essa reunião de inteligências de tantas partes do mundo, consigamos façanhas como essa que a Seleção conseguiu. Talvez por isso consigamos ser grandes campeões no futebol. Talvez por isso estejamos seguidamente surpreendendo o mundo com algum grande talento individual. Existe matéria-prima, no Brasil. Por que não podemos, também, ser uma nação?