Os corações brasileiros batem acelerados no reduto de Ivan, o Terrível. Será um dia com os mais longos 90 minutos da história recente de Kazan. Que podem virar 120. Tudo depende da bola e dos descaminhos que ela pode provocar. A partir das 21h no horário russo, uma sessão eletrizante da tarde às 15h de Brasília, a Seleção enfrenta a Bélgica por um passe às semifinais da Copa. Se vencer, o Brasil ficará a dois jogos do hexa. E isso dá a dimensão desta partida e justifica a tensão de uma noite que, esperamos, seja sem fim no Tartaristão.
Aliás, as últimas noites já têm sido bem longas para os brasileiros neste lugar em que duas Rússias se encontram, em que cúpulas douradas das catedrais ortodoxas são vizinhas de minaretes das mesquitas, em que religiões e diferenças étnicas convivem sem medir distinções. A estimativa é de que 120 etnias diferentes convivam aqui.
O Tartaristão já foi posto avançado búlgaro, fez parte do império mongol e até se proclamou independente por um curto período. Até ser conquistado pelo czar Ivan, o Terrível, e virar o extremo oriente de um império ainda em formação. Hoje, percebe-se o passar do tempo nas ruas de Kazan, em casarios seculares conservados como se tivessem sido finalizados ontem. Ou em seu Kremlin, onde estão a mesquita Kul Sharif, a catedral ortodoxa da Anunciação e uma residência do presidente da república russa.
Há ainda, para deleite dos brasileiros, a torre Siuyumbike, cuja lenda conta que, quando conquistou o Tartaristão, Ivan, o Terrível, apaixonou-se por uma donzela local. Pediu-a em casamento. A moça, como era recomendável ao lidar com alguém cujo apelido era Terrível, não negou. Mas impôs uma condição: só se casaria se ele construísse uma torre em sete dias. Ivan a construiu. E a moça, sem saída, atirou-se da janela mais alta da torre. E, dizem os tártaros, hoje é um cisne que sobrevoa a cidade.
É muita história, ainda mais para nós, brasileiros, que temos apenas 500 e poucos anos de vida. Mas também vamos escrever a nossa aqui em Kazan. Naquilo que mais nos emociona, o futebol, no que somos os melhores. O problema é que, na bola, o melhor nem sempre vence. Por isso, a tensão, o nervosismo, a perspectiva de uma noite eletrizante diante das águas do Rio Kazanka, um afluente caudaloso do Volga.
Nos últimos três dias, Kazan ficou verde e amarela. Brasileiros tão barulhentos como animados tomaram as ruas centrais da cidade. Ocupam bares, entornam pints de 600 ml de boa cerveja sem distinção se é russa, tcheca ou alemã e colocam caixas portáteis de som conectadas via bluetooth às suas playlists no celular. Emprestam trilha de pagode e sertanejo universitário ao reino conquistado por Ivan, o Terrível. Os tártaros gostam, param para ver aquele bulício, tiram fotos, sorriem. Estamos nos sentindo em casa, posso resumir.
Sentir-se em casa é fundamental. Faz a diferença nesta hora decisiva. Os belgas ainda não deram as caras por aqui. Os estudantes Cédric Schatteman e Brecht Van Durme eram exceções. Pela manhã, viam recatados, de longe, a festa da torcida brasileira na recepção à delegação no Mirage Hotel. O sorriso deles revelava a admiração com as batucadas, a cantoria e o entusiasmo cantando o hit brasileiros desta Copa.
– É uma energia, é típico dos latino-americanos – definiu Cédric.
É essa admiração, é esse respeito que esperamos nesta sexta-feira (6) em Kazan. Os belgas sabem que o Brasil é o maior obstáculo da sua melhor seleção desde a Copa de 1986, quando caiu na semifinal. Até agora, a Bélgica tem sido exemplar. Fez três gols por jogo na Copa e mantém essa mesma média nos 24 jogos sob o comando do espanhol Roberto Martínez. O time é daqueles de videogame, com jogadores valorizados e cobiçados na Europa: Courtouis, Vertonghen, Witsel, De Bruyne, Mertens, Hazard e Lukaku, para citar alguns.
Mesmo com um grupo de jogadores responsável por movimentar mais de R$ 3 bilhões em negociações na Europa, falta aos belgas a tradição que sobra ao Brasil. Por isso eles nos respeitam. O próprio Martínez, em sua entrevista coletiva, disse que a Seleção é a porta para a glória desta geração dourada dos belgas. Eles precisam vencer em Kazan para virarem adultos.
Martínez garante que atacará o Brasil. Confiará no instinto ofensivo dos seus jogadores e da sua seleção. Não contem para ele, mas é tudo com o que Tite sonha. A Seleção Brasileira está alicerçada em uma defesa firme como os dois quilômetros de muro do Kremlin de Kazan. Foram quatro arremates apenas ao gol de Alisson. Apenas um deles entrou. A estratégia da Seleção é simples: fechar todos os espaços atrás, recuperar a bola e entregá-la para Neymar, Philippe Coutinho, Gabriel Jesus e Willian decidirem na frente.
O quarteto de estatura média e futebol gigante deu conta do recado até aqui. Por isso, Tite sorri à toa e participa das entrevistas coletivas da Fifa como se estivesse no Estádio Centenário em Caxias do Sul. Brinca com jornalistas, descontrai, manda recados internacionais, como o agradecimento aos xeques do Al Ain numa pergunta de um repórter catare. O técnico gaúcho fala para o mundo como se estivesse em casa.
– A evolução da nossa equipe me dá muita tranquilidade – justifica.
Realmente, a Seleção joga mais a cada partida. Depois do começo vacilante contra Suíça e do sofrimento contra a Costa Rica, retomou o nível das Eliminatórias. A engrenagem funciona a pleno. Neymar ocupou seu lugar de protagonista, Coutinho virou o ritmista tão procurado por Tite e Willian desencantou contra o México. Falta Gabriel Jesus, é verdade. Mas sejamos otimista, isso é sinal de que ainda há mais margem para crescimento.
Nesse cenário, a torcida brasileira na Rússia aderiu sem medo de ser feliz. Percebe-se muita confiança e otimismo, e isso ganha potência diante da nossa alegria genuína. Há uma energia especial, diferente, e uma relação de cumplicidade entre time e torcedores. Isso passa a certeza de que estamos prontos para a mais longa das noites em Kazan. O destino nos colocou para escrever nossa história justo em um cenário tão cheio de histórias. Mas sempre cabe mais um novo capítulo. Ele começa a ser inscrito a partir das 21h aqui, às 15h aí no Brasil. Que Ivan, o Terrível, nos perdoe.
Mas Kazan será nossa.