Quando os Bleus entrarem em campo para a final da Copa do Mundo, ao meio-dia de domingo, em Moscou, os 23 jogadores do elenco não representarão apenas a República Francesa. Com atletas origens distintas e um passado de imigração, a equipe também levará na bagagem traços de outros 13 países, nações tão diferentes quanto Camarões, a ilha caribenha de Martinica e a Espanha. Algo comum na história francesa, marcada pelo colonialismo na África e no Caribe, e que se reflete na seleção.
O time campeão de 1998 contava com filhos de imigrantes, como Zinedine Zidane, ou mesmo jogadores nascidos em países que fazem parte dos territórios ultramarinos franceses, como Christian Karembeu, da Nova Caledônia, no meio do Oceano Pacífico. A situação se repete agora: há os jogadores filhos de imigrantes, como o jovem astro Kylian Mbappé, que tem pai camaronês e mãe argelina, e jogadores que são, eles mesmos, parte das ondas migratórias, como o goleiro reserva Steve Mandanda, natural da República Democrática do Congo.
Se a França já se acostumou a ter jogadores com raízes na imigração, a Copa do Mundo de 2018 evidenciou o quanto a presença de novas populações pode ajudar as seleções a ter bons resultados. Isso foi visível na Alemanha campeã mundial em 2014, com Mesut Özil, de pais turcos, e Jérôme Boateng, filho de um jogador ganês, como titulares do time de Joachim Löw. Na Rússia, Bélgica e Inglaterra fizeram suas melhores campanhas nos últimos anos impulsionados por uma geração de jogadores com origens fora da Europa.
Além disso, houve os casos de Suíça e Dinamarca, outros países com forte imigração e que tiveram resultados positivos em campo. Algo que deve se aprofundar nos próximos anos, com movimentos migratórios cada vez maiores – e, quase sempre, polêmicos, envolvendo refugiados de guerras no Oriente Médio em grande números na Europa ocidental.
– Nas dinâmicas grupais, os mais heterogêneos conseguem lidar melhor com situações mais complexas. Eles pensam em soluções e conflitos de formas mais originais. Pensando até nas características físicas, existiam os estereótipos de cada país, e hoje não se vê isso. Esses jogadores têm histórias pessoais, origens diferentes, soluções mais complexas do que grupos homogêneos. E isso os torna mais resilientes nos conflitos, são mais fortes mentalmente. É uma função política que o futebol tem – explica o psicólogo esportivo Maurício Marques.
Pertencimento da nova geração
A presença de jogadores imigrantes, apesar de comum, sempre foi algo que causou discussões na França. Karin Benzema, atacante que hoje defende o Real Madrid e não joga mais pela seleção francesa, sempre se recusou a cantar A Marselhesa antes dos jogos – ele tem origem argelina. A atual geração, que busca o bi mundial, parece estar mais inserida no contexto da cidadania francesa.
– É ótimo, sabemos que Pogba é de origem africana, e Mbappé também. Mas eles são todos da França em primeiro lugar. Temos orgulho de representar diferentes países – diz o torcedor francês Augustin Joane, em Paris.
Psicanalista com anos de experiência na França, o gaúcho Gabriel Binkowski trabalhou com populações de imigrantes e vê a torcida pelos Bleus como parte da formação de uma identidade nacional para quem busca refúgio no país.
– O que mudou essa relação com o esporte foi a Copa de 1998. Pesquisas mostram que o título ajudou as pessoas a terem orgulho de serem francesas. Com jogadores imigrantes, Zidane como o maior expoente, elas passaram a ter esse sentimento de pertencimento ao país.
Conforme Binkowski, esse fenômeno se intensificou com uma nova geração descendente de imigrantes.
– A França, historicamente, foi severa com o que era diferente, estrangeiro. A seleção sempre teve um pouco dessa questão. Havia essa fratura, também, mesmo em algo que servia de união.
Um amigo meu, argelino, disse que em 1998 comemorou o título e se sentiu francês. Mas, logo depois, isso passou. A juventude atual, no entanto, é parte de uma terceira geração de imigrantes, nascida em um país que, mesmo com os extremismos, sabe que pertence à república. Existe uma consciência de que a França é uma nação mestiça, e isso não vai mudar, só aumentar – diz o psicanalista.
Nos vestiários, harmonia diante das diferenças
Se a diversidade sempre suscitou polêmicas fora de campo, principalmente com o crescimento da extrema direita anti-imigração – como Jean-Marie e Marine Le Pen, pai e filha que disputaram a presidência pelo partido Frente Nacional –, dentro dos gramados o dia a dia sempre foi pacífico entre franceses, descendentes de imigrantes e jogadores estrangeiros. Atacante do PSG e do Bordeaux entre 1999 e 2002, o ex-jogador Christian Dionísio viveu de perto o ambiente nos vestiários e saúda o destaque de imigrantes em clubes da Europa.
– Já era algo com que o PSG trabalhava quando joguei lá. Fizemos amistosos de pré-temporada em Martinica e Guadalupe (territórios franceses), no Caribe, por exemplo. O futebol é uma grande ferramenta para integrar povos – comenta Christian.
Na opinião do ex-jogador, a tendência é de que a presença dos imigrantes cresça:
– É uma bobagem ir contra isso. A França logo viu esse potencial e está aproveitando, assim como a Bélgica, a Alemanha. A convivência no time sempre foi igual com todos. A questão política acaba ficando de fora.
Miscigenação também na disputa do terceiro lugar
Além dos Bleus, Bélgica e Inglaterra fizeram grandes campanhas na Copa e disputam, neste sábado, o terceiro lugar. Os dois países também têm grande parte dos seus jogadores com origem imigrante.
Entre os belgas, há representantes de 10 países – a maioria de origem na República Democrática do Congo, antiga colônia. É o caso do atacante Lukaku e do zagueiro Kompany. Já o meia-atacante Fellaini é filho de um ex-jogador do Marrocos. Na Inglaterra, o quadro é semelhante: grande parte do elenco tem suas raízes em ex-colônias britânicas, como Gana, Jamaica – país natal do camisa 10 Sterling – e Irlanda, terra da mãe do artilheiro Harry Kane.
Por outro lado, a Croácia vive situação inversa. País que precisou lutar pela sua independência da Sérvia nos anos 1990, na Guerra dos Balcãs, a seleção tem apenas com jogadores de família croata ou de repúblicas da antiga Iugoslávia. Apenas quatro atletas nasceram fora das fronteiras nacionais: Corluka e Lovren são da Bósnia, na época uma daquelas repúblicas, Ivan Rakitic, da Suíça, e Mateo Kovacic, da Áustria.
– Acho que é, sim, uma vantagem, mas li artigos em jornais da França dizendo que, para eles, não há negros ou árabes. São todos franceses, unidos pela seleção. E também temos jogadores de fora – afirma o repórter Damir Dobrinic, do jornal Sportske Novosti, da capital croata, Zagreb.