Lugar de criança é na escola. A afirmação, da qual é difícil discordar, muitas vezes fica só na teoria no caso da Educação Infantil, principalmente nas grandes cidades brasileiras. Em setembro do ano passado, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que a oferta de vagas em creches e pré-escolas é de responsabilidade do poder público. A grande novidade, que tem gerado mais repercussão, é sobre as creches, que atendem aos pequenos de zero a três anos de idade. Até então, a obrigatoriedade constitucional era para a pré-escola, que recebe as crianças de quatro e cinco anos. Agora, segundo a Suprema Corte, todas as crianças de zero a cinco anos devem ser atendidas e contempladas quando as famílias buscarem uma vaga. No Brasil, a Educação Infantil é uma atribuição do poder municipal.
No entanto, a determinação da Suprema Corte não garante que, na vida real, os pais possam ficar mais tranquilos. Uma pesquisa realiza pela Federação das Associações de Municípios do Rio Grande do Sul (Famurs), entre outubro de 2022 e janeiro de 2023, mostra o tamanho do desafio: 52% das 392 cidades (são 497 no total) que responderam aos questionamentos disseram que há fila de espera, em maior ou menor escala, e que não se sentem preparados para cumprir a decisão do STF.
Sessenta por cento afirmaram que não possuem espaços físicos próprios para atender a demanda reprimida; 60% também informaram que não há, em seus territórios, prédios do governo estadual que possam ser cedidos para atividades escolares e 31% têm algum valor atrasado para receber do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE).
Levantamento feito por GZH mostra que, apenas nos cinco maiores municípios gaúchos, mais de 12,6 mil crianças de zero a cinco anos estão na fila de espera por uma vaga, principalmente em creches, onde o déficit é sempre maior do que na pré-escola. GZH consultou as secretarias municipais de educação de Porto Alegre, Caxias do Sul, Canoas, Pelotas e Santa Maria. Na Capital, atualmente, 6,3 mil bebês e crianças de zero a cinco anos estão na fila de espera. Há regiões com maior e menor demanda e há poucas creches no Centro, por exemplo. A rede municipal de ensino tem 42 instituições próprias e 214 conveniadas, que atendem atualmente 28 mil alunos. A Secretaria Municipal de Educação de Porto Alegre (Smed) afirma que tem trabalhado para reduzir o déficit e que, nos últimos dois anos, ampliou a oferta em creches em 3 mil vagas. Para acabar com a fila de espera, a pasta calcula que seriam necessários cerca de R$ 80 milhões, de imediato.
Em Caxias do Sul, atualmente, a fila de espera tem cerca de 2.506 crianças de zero a cinco anos de idade. A estimativa é de que seriam necessários R$ 30 milhões para sanar o déficit. Em Canoas, a demanda reprimida é apenas para creche, com 2.240 crianças de zero a três anos aguardando para serem chamadas. Para acabar com o déficit, o valor estimado seria de R$ 25 milhões.
Pelotas tem uma lista de espera de 1.648 vagas, de acordo com a Secretaria Municipal de Educação. Para colocar todas essas crianças em creches e pré-escolas, seriam necessários aproximadamente R$ 35 milhões.
A prefeitura de Santa Maria não informou uma estimativa de lista de espera. A explicação é que a cidade está em processo de matrículas na rede municipal de ensino. No entanto, caso haja compra de vagas para contemplar a todos que ficarem na lista de espera, é possível que o custo aumente em 150%, superando os 15 milhões anuais.
Presidente da Famurs, Paulinho Salerno afirma que respeita a posição do STF e que os municípios precisam de mais ajuda do governo federal.
— Nós temos trabalhado para ampliar o acesso às creches, não fugimos da nossa responsabilidade, mas precisamos de mais recursos por parte da União. A tabela de repasses do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb) deveria ser atualizada.
O Fundeb repassa um valor anual para cada município: em 2022, R$ 9.316,76 por aluno na etapa de creche em turno integral. O dilema, destaca Paulinho, é que o custo é maior: em média, um município gasta, por mês, com cada aluno desta etapa R$ 1,2 mil ou R$ 1,3 mil (poderia chegar a mais de R$ 15 mil anuais, portanto). A conta não fecha.
Levantamento realizado em outubro do ano passado pela Confederação Nacional dos Municípios (CNM) aponta que os municípios gaúchos vão precisar investir mais de R$ 5,5 bilhões para se adequar à decisão do STF. O cálculo leva em conta apenas as vagas para creche, ou seja, para crianças de zero a três anos, pois o acesso à pré-escola já era obrigatório, tendo filas de espera menores ou inexistentes, segundo o presidente da CNM, Paulo Ziulkoski.
— No Brasil, o investimento seria de R$ 120 bilhões a mais para cumprir a decisão de imediato e colocar todas as crianças de zero a três anos na creche. Decisão judicial não se contesta, se cumpre, mas me parece que cabe uma reflexão de toda a sociedade: por que só os municípios precisam pagar essa conta? Não é assim que chegaremos a uma educação de qualidade. A Constituição fala que garantir a Educação Infantil é um dever do Estado. Estado envolve todos os níveis, no nosso entendimento — pondera Ziulkoski.
Caminhos possíveis
Para Cezar Miola, presidente da Associação dos Membros dos Tribunais de Contas do Brasil (Atricon) e conselheiro do Tribunal de Contas do Estado (TCE), o entendimento do STF reconhece uma dívida que o Brasil tem, há muitos anos, com a primeira infância.
— A Educação Infantil, principalmente a creche, ainda não recebeu a atenção e o investimento necessários. E não é só garantir a vaga: cabe assegurar que a criança vai ser bem atendida na escola, incluindo a alimentação, a saúde e os estímulos necessários para o seu desenvolvimento — explica Miola.
Por meio de nota, a assessoria de imprensa do Ministério da Educação (MEC) afirmou que "o ministro Camilo Santana tem reiterado a disposição e a concentração de esforços para a pactuação de um grande projeto pela qualidade da Educação Básica, a ser lançado pelo MEC no próximo mês (em fevereiro)".
Miola também comenta a dificuldade financeira das prefeituras.
— Eu entendo e conheço a realidade dos municípios. Sei que essa decisão vai acarretar custos, mas os gestores precisam eleger prioridades. Aliás, no caso, se trata de uma prioridade já definida constitucionalmente, sobre a qual não há espaço para escolhas, de maneira que os orçamentos precisam contemplar essa política pública. É uma questão de cumprir a lei. Ao mesmo tempo, penso que este tema deve gerar uma grande mobilização nacional. O governo federal precisa encontrar maneiras de ajudar financeiramente os municípios a cumprir essa determinação. Aliás, o apoio técnico e financeiro da União também é obrigação prevista na Constituição — acrescenta Miola.
O presidente da Atricon aponta, ainda, alternativas para unir os poderes em prol da educação. Por exemplo, o novo Fundeb, que foi aprovado no Congresso Nacional em agosto de 2020, com a promulgação da Emenda Constitucional 108/2020, e regulamentado em dezembro daquele mesmo ano. O conselheiro do TCE pontua que o novo Fundeb assegura uma parte específica para a Educação Infantil, reforçando este tipo de investimento: a chamada complementação-VAAT (valor total anual por aluno, uma das parcelas do Fundeb) reserva 50% do montante transferido pela União a municípios para investimento, exclusivamente, na Educação Infantil. O fundo é composto por contribuições dos Estados, Distrito Federal e municípios e por uma complementação da União sobre esses valores. Hoje, o Fundeb representa 63% do investimento público em Educação Básica e, conforme o presidente da Atricon, não pode ser utilizado para o pagamento de aposentadorias e pensões.
Outra iniciativa capaz de ajudar os municípios é o Sistema Nacional de Educação, já aprovado no Senado e que precisa ser votado na Câmara dos Deputados. O projeto que cria o SNE pretende alinhar políticas, programas e ações da União, do Distrito Federal, de Estados e de municípios. A ideia é universalizar o acesso à educação básica e garantir seu padrão de qualidade; erradicar o analfabetismo; garantir a igualdade de oportunidades educacionais; articular os níveis, etapas e modalidades de ensino; cumprir os planos de educação em todos os níveis da Federação; valorizar os profissionais da área, entre outras ações.
— Mantendo as devidas proporções, tendo em vista que são áreas muito diferentes, o SNE poderia representar uma espécie de SUS (Sistema Único de Saúde) da Educação. Serviria para organizar e colocar em prática, com regras e atribuições claras, também um grande regime de colaboração entre os governos federal, estadual e municipal. Já passou da hora de a Educação Infantil ser levada mais a sério no país. Em maior ou menor proporção, ainda há um grande atraso. Vale lembrar que a meta número 1 do Plano Nacional de Educação prevê o atendimento em creches, até 2024, para, no mínimo, 50% das crianças de zero a três anos. Para cumprir esta meta, o Brasil ainda precisaria criar mais 2 milhões de vagas — garante Miola.