Todos os anos, o dia 20 de novembro tem significado de luta e resistência em razão do Dia da Consciência Negra. Por causa da data, o mês todo costuma ser marcado por iniciativas, eventos e abordagens que falem sobre o racismo.
O tema pode ser trabalhado de diversas maneiras e depende, também, do contexto em que será introduzido. No caso de crianças e adolescentes, a pauta tem sido cada vez mais presente desde o ambiente familiar, em casa, até a escola e espaços coletivos. No entanto, nem todos esses lugares abordam o assunto com a maneira e frequência que deveriam.
Um exemplo disso é a presença da lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que tornaria obrigatório o ensino sobre história e cultura afro-brasileira em todas as escolas de Ensino Fundamental e Médio, tanto públicas quanto privadas. Contudo, passados 19 anos, a lei ainda não foi efetivada.
A Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) está em um grupo de trabalho chamado 26A que, junto ao Tribunal de Contas do Estado (TCE) verifica como (e se) as escolas dos 497 municípios do RS efetivam essa lei. Mas, na maioria dos casos, os planos de ensino incluem a pauta da diversidade racial apenas em datas simbólicas, como o próprio 20 de novembro, ou 13 de maio (Dia da Abolição da Escravatura) sem uma abrangência mais profunda em outros períodos.
— Nós pergutamos aos diretores: há diversidade na sua escola? E a resposta normalmente é que sim, mas no mês de novembro. Ou seja, a lei não é efetivada. Falar sobre negritude e as histórias da população negra não é só em novembro ou maio. Pelo contrário, é preciso conversar em todas as disciplinas. Todo assunto deve incluir a temática racial de alguma maneira — afirma o professor Wagner Machado, doutorando em comunicação na Pontifícia Universidade Católica (PUCRS) que participa do grupo de trabalho.
A carência de ensino antirracista e da cultura afrobrasileira em escolas é sentida não só nas instituições públicas, mas também nas privadas do RS. A professora de educação básica Jéssica Val atua em duas escolas privadas de Porto Alegre. Para ela, a ausência do conteúdo reflete a a falta de pessoas negras no topo das decisões.
— Não vejo como possibilidade viável aplicarmos essa lei de forma adequada enquanto quem administra toda a dinâmica são somente pessoas brancas — aponta a professora.
A realidade não é diferente quando se fala de quem ocupa as carteiras nas salas de aula. Segundo Jéssica, o ideal seria que houvessem abordagens específicas para alunos negros, vítimas de racismo, e para alunos brancos, para que não cometam atos preconceituosos. Porém, professores acabam tendo que falar a todos de uma vez só, sendo a maior parte dos alunos brancos. Dessa forma, não é possível aprofundar a pauta antirracista:
Uma criança me perguntou: "é moreno?". Então, perguntei o que significava alguém moreno. Ela respondeu que seria alguém como eu. Logo, ensinei que eu não era morena, mas preta, e que ela poderia falar assim. Depois, falamos sobre como se referir ao cabelo, e assim por diante.
PAMELA DUTRA
Psicóloga e psicopedagoga
— A alternativa que resta é trazer vivências em que teremos um comportamento antirracista e corrigi-las. Por exemplo, se estamos falando sobre religiões de matriz africana e um aluno faz uma piada, a gente procura dar uma orientação, ensinar que aquilo é errado e apresentar e ele aquela realidade. Só que o preço disso para mim é um desgaste tremendo e gatilhos como pessoa preta que já passou por momentos assim.
Ensino por meio da arte
Se por um lado a explicação teórica pode ser mais dura a quem ocupa o lugar de fala é de difícil compreensão para crianças e adolescentes, iniciativas surgem com apoio em um caráter mais lúdico para trabalhar o tema. As ideias costumam utilizar o imaginário infantil como estratégia para facilitar o entendimento dos pequenos.
Uma dessas ações é o Sarau Sopapo Poético, um encontro de arte negra que reúne artistas negros e apresenta obras e espetáculos para as crianças. O sarau é organizado pela Associação Negra de Cultura e reúne inúmeras expressões como poesia, pintura, contação de histórias, música, teatro e dança.
— São histórias e exemplos que trazem a identidade que crianças negras muitas vezes não encontram em outros ambientes. É um momento de dar voz e empoderamento para elas se expressarem. Buscamos mostrar histórias escritas por autores(as) negros(as). Eles(as) precisam estar presentes pra que a própria criança enxergue essa representatividade — afirma Silvia Regina Ramão, psicóloga clínica e social e integrante da associação.
Tenham livros e os leiam para suas crianças. Busquem matérias, reportagens. Mostrem a elas o que aconteceu no passado e questionem se isso é correto. Pergunta o que podemos fazer em relação a isso ou como melhorar.
LISIANE BELLOLI
Psicopedagoga
De mãe para mãe
Não só as crianças agradecem quando recebem um espaço de representatividade, mas as mães da mesma maneira. Pensando nisso surgiu, há cerca de quatro anos, o grupo Mães Pretas.
Atualmente, o coletivo reúne em torno de 70 mães negras que trocam ideias e compartilham vivências sobre o desafio de criar os filhos e filhas em uma sociedade onde o racismo ainda está presente. A professora Jéssica Val é uma das integrantes da iniciativa.
— O principal propósito é o convívio, o poder de fala, a troca de ideias e o aprendizado com as experiências que se apresentam. Somos mães pretas falando sob o viés vivencial, sobre o que significa a maternidade negra — explica.
Além de um perfil no Instagram que reúne relatos, reflexões e dicas, o Mães Pretas tem um grupo de mensagens no WhatsApp onde as 70 mães têm espaço para se manifestar e conversar sobre a educação dos filhos.
Ensinar desde cedo
Antes mesmo de chegar o momento de ir para a escola, o aprendizado sobre questões raciais começa em casa, por meio dos ensinamentos de mães e pais. De acordo com a psicóloga e psicopedagoga Pamela Dutra, essas práticas precisam ser adotadas de uma maneira empática e acolhedora e que sejam conduzidas conforme a faixa etária.
Pamela é negra e lembra que frequentemente outras famílias pretas a procuram para que ela possa ser uma referência à criança. Para ela, é importante que os responsáveis estejam preparados até mesmo antes do nascimento do bebê.
— Na preparação de ser pai e mãe, é interessante buscar informações e entender sobre a luta antirracista, conhecer a história, até porque as primeiras aprendizagens da criança serão dentro do ambiente familiar. Então, é importante que a família proporcione momentos de debate e demonstre exemplos positivos — orienta a psicóloga.
Pamela ainda explica que a didática e empatia devem ser utilizadas para ensinar o antirracismo de forma leve e afetuosa com as crianças.
— Uma criança me perguntou: "é moreno?". Então, perguntei o que significava alguém moreno. Ela respondeu que seria alguém como eu. Logo, ensinei que eu não era morena, mas preta, e que ela poderia falar assim. Depois, falamos sobre como se referir ao cabelo, e assim por diante — recorda.
Lisiane Belloli também é psicopedagoga e também é negra. Ela é casada com um homem branco e tiveram dois filhos, um de cada cor. Com o passar do tempo, ela recorda que começou a perceber diferenças de tratamento das pessoas em relação a Bruno e Raphael (conhecido como Raphinha, atacante convocado para jogar pela Seleção na Copa do Mundo). Foi quando decidiu que precisava entender mais sobre o tema para repassar isso aos filhos.
Para Lisiane, existem, hoje, inúmeros recursos que podem ser utilizados para levar às crianças o ensino antirracista, mas é preciso tomar iniciativa:
— Tenham livros e os leiam para suas crianças. Busquem matérias, reportagens. Mostrem a elas o que aconteceu no passado e questionem se isso é correto. Pergunta o que podemos fazer em relação a isso ou como melhorar.