A educação a distância (EaD) saiu de pequenas faculdades para, na última década, ganhar terreno e adentrar grandes universidades: pela primeira vez, o ano de 2020, com as estatísticas mais recentes, registrou mais alunos ingressantes em aulas a distância no Ensino Superior do que em salas presenciais. Se a EaD leva ensino formal a brasileiros mais pobres e do Interior, também é criticada por ganhar protagonismo na educação brasileira.
No país, há cerca de 8,7 milhões de universitários - 5,6 milhões em salas de aula presenciais e 3,1 milhões no ensino remoto, conforme dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) analisados pelo Instituto Semesp. A expansão é puxada pela formação de professores, cuja maioria já se forma no EaD, mostrou pesquisa do Movimento Todos pela Educação.
A procura aqueceu a oferta de cursos a distância: mais de 6 mil graduações remotas existem no Brasil, segundo o Inep, 486% a mais do que há 10 anos. Já os presenciais aumentaram apenas 22%, totalizando quase 36 mil. Alguns cursos são proibidos de serem conduzidos a distância, como Medicina e Direito.
No Brasil, a EaD assume pioneirismo único no mundo devido à forte desigualdade social, o que gera demanda por Ensino Superior, visto como meio de ascensão, explica Sérgio Franco, coordenador do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e pesquisador na área de educação a distância.
— A EaD se tornou no Brasil ferramenta de expansão da oferta de Ensino Superior. Países como França, Canadá, África do Sul e Alemanha, com tradição em EaD, usam para incluir pessoas mais excluídas, como presidiários. No Brasil, boa parte das vagas migra para educação a distância por um elemento econômico. Como essa expansão se dá no ensino privado, um curso barato significa chance de o aluno trabalhar e fazer um curso a distância, pagando pouco e adequando os horários de aula à vida — explica.
Em meio à crise econômica acentuada pela pandemia, houve quem deixou a graduação presencial, na qual aulas ocorriam temporariamente no formato remoto, para cursar faculdades de baixo preço com disciplinas na modalidade EaD. O número dessa movimentação não é claro, mas outro dado mostra a evolução do ensino online: 2020 registrou mais novos alunos EaD (2 milhão) do que o presencial (1,7 milhão).
Para Denizar Melo, diretor de Graduação da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), onde há um polo de pós-graduação EaD, a educação a distância é importante para garantir formação e expandir a educação de brasileiros, mas a qualidade deve ser assegurada.
— Entendemos o movimento de migração de alunos para EAD como ruim, mas alunos começam a perceber que a formação precisa de competências. O país está formando muita gente online, e os próximos anos mostrarão que pessoas estão sendo formadas. Se alguns cursos de algumas instituições não têm a qualidade que deveriam, por outro lado há mais professores sendo formados, algo necessário — reflete Melo.
O avanço da educação a distância também ocorre em meio à fusão de grandes grupos empresariais, que cresceram com contratos financiados pelo Fundo de Financiamento Estudantil (Fies) para cursos noturnos e, com o menor repasse de bolsas, focaram em cursos a distância. A premissa de colocar um professor para falar em vídeo permite ampliar o número de alunos em sala de aula virtual, o que barateia custos e reduz o valor da mensalidade.
Apesar de ser opção, a educação 100% a distância deixa de lado aspectos importantes de uma universidade, como pesquisa científica, palestras, atividades de extensão e uso de laboratórios, destaca o Consórcio das Universidades Comunitárias Gaúchas (Comung), que representa instituições como PUCRS e Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos).
— O que tu consegues entregar com uma mensalidade de R$ 49,90 e o que tu entregas quando é de R$ 600, que é a média das universidades comunitárias para as áreas pedagógicas? A expansão do EaD dá habilitação para trabalhar ou competência? Você pode produzir professores, mas vão mudar a realidade com o que aprenderam? Uma coisa é a troca no ensino presencial, outra é consumir conteúdo e não debater com professor ou alunos — diz Lia Quintana, reitora do Centro Universitário da Região da Campanha (Urcamp) e presidente do Comung.
O avanço do EaD é afetado por políticas públicas e ocorre em meio à queda no número de bolsas do Fies, registrada sobretudo a partir de 2015, salienta Artur Jacobus, vice-reitor da Unisinos.
— Muitos cursos EaD substituem o Fies, que hoje existe muito menos do que anos atrás. Quem tem dificuldade de estudar na universidade conseguia, pelo Fies, pagar universidades de boa qualidade. Mas, agora, sem ter forma de financiamento, a opção é por cursos muito baratos de EaD. É uma política de governo de substituir o financiamento público pela oferta de cursos muito baratos e de baixíssima qualidade — diz Jacobus.
Fiscalização
A abertura e fiscalização de cursos EaD cabe ao Ministério da Educação. Avaliações anuais da própria pasta mostram que, via de regra, cursos a distância têm menor qualidade do que presenciais. A pasta foi contatada na terça-feira (26), mas não deu resposta até a publicação desta reportagem.
— O Brasil está apostando em um Ensino Superior a distância de baixa qualidade, com baixo preço, deixando à míngua instituições públicas e comunitárias. Nossa crítica é a cursos pensados como forma de gerar lucro mais fácil e rápido por empresas que precisam gerar dividendos a seus acionistas. Isso é um modelo pernicioso no Brasil, e não a EaD, que pode ser usada com moderação — diz o vice-reitor da Unisinos.
Em consenso, analistas destacam que a EaD não deve ser “demonizada” — e sim que a qualidade dos cursos deve ser fiscalizada. O sociólogo e cientista político Simon Schwartzman, membro da Academia Brasileira de Ciências e pesquisador do Instituto de Estudos de Política Econômica/Casa das Garças, no Rio de Janeiro, cita que o ensino a distância é uma opção para estudar cursos práticos, em vez de licenciaturas ou graduações teóricas.
— O ensino a distância funciona muito bem na Europa. Agora, se as pessoas chegam ao Ensino Superior mal formadas, e o curso acrescenta pouco, você terá uma mão de obra mal formada, de pessoas com titulação de Ensino Superior, mas capacitação de Ensino Médio — diz.
Schwartzman pontua que o crescimento do ensino noturno e depois do ensino a distância no Brasil veio para atender a uma demanda por educação de pessoas mais velhas e mais pobres, que não podiam pagar mensalidades mais altas, precisavam trabalhar e não tinham acesso a instituições públicas.
— Quem precisa do ensino presencial é o jovem que está saindo do Ensino Médio para conviver com colegas e professores e desenvolver sociabilidade para levar à vida profissional. Para esse público, o ensino presencial é indispensável. O outro perfil é a pessoa que se formou anos atrás, quer se qualificar e não tem condição de ir ao ensino presencial. Para esse perfil, você pode ter um bom ensino a distância — acrescenta o sociólogo.
De olho na demanda por EaD e dedicada à popularização do conhecimento, a edtech +A Educação, localizada em Porto Alegre, deixou de focar apenas em livros impressos e passou a oferecer também disciplinas para cursos EaD, contratados por faculdades privadas — entre os clientes, estão Unisinos e Pontifícia Universidade Católica do Paraná. A empresa também oferece materiais de suporte como vídeos e laboratório de imersão.
Um aluno de curso da área da saúde pode, em aula presencial, vestir um óculos 3D e interagir com um órgão humano ou com uma turbina de avião, tecnologia testada por GZH na última semana. Mais tarde, quando estiver em uma aula de anatomia presencial, o estudante terá conhecimentos básicos dos órgãos e poderá acelerar o aprendizado. Cada universidade tem autonomia para montar o próprio currículo e as aulas, utilizando os conteúdos da +A.
— Muitas vezes, temos aluno trabalhador que não consegue fazer a educação presencial. Há uma questão de democratização, mas é importante que seja com qualidade. Não é porque é feito a distância que é sem qualidade. Entendemos que a educação se encaminha para ser híbrida com momentos de interação. O aluno recebe o material em casa e depois tem momento presencial para discussão de ideias mediado pelo professor. A gente vai viver muito mais, as profissões vão mudar, precisaremos nos atualizar e o EaD vai ser importante para microcertificações — pontua Celso Kiperman, CEO da +A Educação.
Preocupação
Algumas profissões não veem a EaD com bons olhos. Na última quarta-feira (27), os conselhos gaúchos de Medicina, Engenharias, Arquitetura e Urbanismo, Farmácia, Enfermagem e Psicologia entregaram ofício ao Ministério Público Federal (MPF) para demostrar preocupação quanto ao avanço do ensino a distância. “A modalidade a distância é inadequada à formação destas profissões e novos cursos nestes moldes não devem ser autorizados, tampouco reconhecidos, por não atenderem às normativas essenciais, como as respectivas Diretrizes Curriculares Nacionais, bem como a questões práticas operacionais e éticas das profissões reguladas pelos Conselhos signatários desse documento”, diz o documento, ao qual GZH teve acesso.
— Vemos com muita preocupação a EaD na área da Medicina. O curso de graduação está muito ligado à atividade prática com paciente, em hospitais, clínicas e laboratórios. O ofício é uma solicitação para sugerir ao MEC a preocupação dos conselhos sobre o ensino a distância e para que essa expansão seja feita com cuidado e que não coloque em risco a formação desses profissionais — diz o corregedor do Conselho Regional de Medicina do Rio Grande do Sul (Cremers), Carlos Isaia Filho.
O Conselho de Arquitetura e Urbanismo (CAU) é parte em uma ação na Justiça que envolve universidades com cursos EaD por não conceder o registro a alunos, sob a justificativa de não ter recebido documentos de reconhecimento das instituições junto ao MEC. Nos últimos sete anos, diz o CAU, foram abertas 109 mil vagas em cursos curso EaD em todo o país, quase o mesmo número das vagas presenciais, que são 112 mil.
—Arquitetura e Urbanismo envolvem a segurança física e ambiental das pessoas. A construção de competências não tem como ser feita online. Você demanda determinados treinamentos necessariamente presenciais, o que inclui a prática do projeto e técnicas construtivas que implicam na segurança das edificações. Somos visceralmente contra o EAD da maneira como ele é colocado no Brasil porque não há como mensurar o resultado no atendimento às demandas sociais — pontua Valter Caldana, coordenador da Comissão Nacional de Ensino e Formação do Conselho Federal de Arquitetura e Urbanismo.
O mercado não diferencia quem tem diploma em faculdade presencial de quem estudou a distância, afirma Sólon Caldas, diretor-executivo da Associação Brasileira das Mantenedores de Ensino Superior (Abmes). Ele pontua que o avanço da EaD é uma tendência mundial e que não cabe aos conselhos regular o ensino, e sim a prática.
— Conselhos profissionais têm que se preocupar com a fiscalização da profissão. Quem regula a educação superior é o Ministério da Educação. O conselho é preocupado com a EaD porque quer fazer reserva de mercado, e a EaD alcança muito mais gente. A EaD chega a municípios onde não tem presencial e dá uma oportunidade para pessoas terem Ensino Superior e se qualificarem para o mercado de trabalho. Não há curso 100% EaD no Brasil, todos têm parte prática e estágio obrigatório no presencial. O que é feito a distância são as disciplinas teóricas — diz Caldas.