Realizar um procedimento cirúrgico ou estudar a anatomia do corpo em detalhes sem precisar tocar em um paciente, visitar uma exposição ainda que esteja sentado na sala de casa e até se reunir com professores e colegas da universidade direto do seu local favorito: a praia. As experiências citadas acima fazem parte de ações que são praticadas nas universidades gaúchas e envolvem o conceito de metaverso, no qual as tecnologias são usadas para as pessoas interagirem entre si de forma virtual e realizar diferentes atividades.
O termo metaverso foi citado pela primeira vez no livro de ficção científica Snow Crash (Nevasca), escrito por Neal Stephenson, em 1992. A expressão ainda foi mencionada em uma palestra do CEO da Microsoft, Satya Nadella, durante uma conferência em maio de 2021. Mas ganhou o mundo quando Mark Zuckerberg, dono do Facebook, do WhatsApp e do Instagram, divulgou a mudança de nome da empresa para Meta e revelou que o grupo estaria desenvolvendo um metaverso. O que hoje já existe nas universidades não é o idealizado mundo virtual imersivo e compartilhado ainda em desenvolvimento por Zuckerberg, mas um passo rumo a este novo universo.
— Metaverso é um conceito antigo: é usarmos tecnologias tridimensionais para podermos entender e reconstruir mundos, sejam completamente reconstruídos, como no ambiente 3D, ou híbridos, como aqueles em realidade aumentada — explica o professor da graduação e pós-graduação da Escola de Comunicação, Artes e Design da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) Eduardo Pellanda, pesquisador na área de convergências tecnológicas na comunicação.
Durante o distanciamento social causado pela pandemia de coronavírus, Pellanda recorreu ao metaverso para percorrer o campus virtual da PUCRS ao lado dos alunos a fim de criarem um aplicativo sobre a universidade. O espaço virtual foi a forma encontrada para aproximar os estudantes enquanto permaneciam em suas casas. E as ideias acabaram surgindo. Para Pellanda, o metaverso pode auxiliar a pensar aulas online, reuniões e outros tipos de trabalho, simulando espaço de encontro. E ainda ampliar a área de visão dos estudantes, como simular espaços que estão em guerra em alguma parte do mundo para que os alunos pensem a partir daquele espaço.
— Hoje não é caro criar ambientes em metaverso. Mas acho é que ainda teremos experiências muito mais interessantes num futuro próximo. Estamos criando conteúdos antes de termos, por exemplo, óculos que permitirão fazermos a imersão de uma maneira mais interessante. Temos alguns, mas são caros e não conseguimos usá-los por muito tempo porque dá fadiga no olho. Teremos novos tipos de óculos que nos permitirão uma imersão nestes mundos de uma forma mais interessante, mais natural e que a gente goste de estar simulando nestes ambientes. A experiência será mais rica — visualiza Pellanda.
Na Rede Marista, da qual a PUCRS faz parte, encontrar soluções que tragam um cenário de inovação para a educação tem sido a meta nos últimos dois anos, segundo o assessor de Planejamento Estratégico da PUCRS, Silvio Langer, que também é representante institucional do Hub de Educação EduX. Em parceria com a startup DB Server, a rede já desenvolveu palestras, mentorias virtuais e desafios criativos de forma imersiva, entre outras ações que envolveram centenas de alunos e professores da educação básica, da graduação e da pós-graduação. São apenas os primeiros passos, pontua Langer, que acrescenta ser uma grande vantagem ter a possibilidade de permitir atividades coletivas entre os vários colégios da rede, sem que precise de deslocamento para um espaço único. E isso vale também para a universidade, que poderá ofertar disciplina neste ambiente para um estudante que estiver em qualquer parte do planeta:
— Hoje, estamos testando com até 25 alunos simultaneamente. Um dos desafios é saber como faremos para colocarmos mais, embora a empresa já tenha dito que é possível. Precisamos também desenvolver recursos educacionais ou objetos de aprendizagem para serem usados em aula. Para que isso vá para a sala de aula de forma orgânica ainda precisamos ter uma robustez maior da solução, e é isso que estamos trabalhando com as startups.
Como se fosse de verdade
Na Universidade Feevale, em Novo Hamburgo, no Vale do Sinos, os estudantes da disciplina de 3D Avançado, do curso de Jogos Digitais, projetam modelos de personagens. No final do semestre, eles são introduzidos na plataforma on-line Sketchfab, na qual os alunos acessam com óculos de realidade virtual e se tornam os próprios modelos. Com o uso dos óculos, é possível, para o estudante, estar com o personagem que ele criou "olhando para ele face a face", além de testar proporções corretas, como se existissem na vida real.
Aulas com experiências que envolvem realidade virtual também são desenvolvidas na Unisinos e na ESPM. A ESPM POA, por exemplo, criou um laboratório focado em realidade virtual, com óculos e computadores gamers, para imersão dos alunos.
Já a Universidade de Passo Fundo (UPF) inaugurou, há quase dois anos, um Centro de Simulação Realística para atender os cursos na área da saúde. Uma das experiências de sucesso é o serious game AnemiaAR, um jogo para o ensino de hematologia, desenvolvido por um grupo interdisciplinar formado por alunos dos cursos de Medicina e da área de TI. Nele, os universitários trabalham, especialmente, conceitos de anemia usando o HoloLens, óculos de realidade aumentada. A experiência possibilita ao estudante visualizar e interagir com os elementos virtuais do jogo, por meio de gestos e comandos de voz. Uma versão para smartphones está sendo finalizada. No curso de Arquitetura e Urbanismo, por exemplo, há ações na área de modelagem 3D, Google, realidade virtual, realidade aumentada e imagens em 360 graus.
Na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), uma das experiências no multiverso vem ocorrendo com o incentivo da professora do Instituto de Informática e diretora do Centro de Empreendimentos (CEI), Luciana Porcher Nedel, que pesquisa e trabalha com realidade virtual há 25 anos. Além de uma aula experimental no ano passado, na qual cada aluno pode escolher o ambiente que gostaria de estar em aula - um, inclusive, preferiu estar à sombra de um coqueiro na praia enquanto estudava -, Luciana tem se reunido com os alunos no ambiente do metaverso proporcionado de forma experimental pela empresa Meta. Alguns entram com o avatar e outros, por vídeo. O próprio CEI já tem um espaço virtual em 3D - o visitante pode percorrê-lo como se estivesse no prédio.
— A imersão que, talvez seja a coisa mais importante quando se fala em metaverso, também faz ter toda a atenção para aquele momento. O poder de concentração acaba aumentando bastante, pois coloco os óculos de realidade virtual e corto a comunicação com o mundo real— destaca Luciana como ponto positivo da experiência.
Mas ela cita a falta de infraestrutura porque para rodar em 3D uma máquina precisa ter mais poder de processamento. A professora também reforça a necessidade dos óculos especiais, que ainda tem um preço elevado no Brasil - modelos mais baratos são encontrados por cerca de R$ 2,5 mil.
— Ainda estamos pesquisando quanto tempo a pessoa aguentará ficar com os óculos. O equipamento já está mais leve, mas ainda é mais pesado do que um boné. E como fica no dia a dia? Não acho que o metaverso substituirá algo, mas terá o seu espaço. Não tem como voltar atrás. Algumas coisas seguirão no virtual, outras voltarão para o presencial e ainda outras migrarão para o metaverso assim que tivermos condições de uma forma inclusiva —projeta Luciana.
Para Bruno Zatt, coordenador do Programa de Pós-Graduação em Computação da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) e pesquisador da tecnologia chamada Light Field, que oferece mais informações para que se possa modelar melhor um ambiente 3D e possibilita a sensação de imersão, as tecnologias habilitadoras são importantes para que o metaverso se torne, de fato, atrativo.
— Ainda não se consegue fazer um ambiente imersivo da forma como as pessoas imaginam o metaverso, pois não existem dispositivos que consigam criar o ambiente em tempo real. É necessário, por exemplo, muito poder computacional. As tecnologias vão sendo habilitadas e nós, aos poucos, vamos adotando. É uma evolução que acredito que está caminhando bem, mas toma tempo, muita pesquisa e muita ciência. Ainda temos muita ciência para fazer nas tecnologias habilitadoras - finaliza Zatt.
Universitários criam jogos usados desde o Ensino Fundamental
Aulas de História, Geografia, Língua Portuguesa, Ciências, Artes e Matemática num mesmo ambiente e simultaneamente poderiam parecer algo impossível em anos anteriores. Hoje, porém, os estudantes do segundo ciclo do Ensino Fundamental (equivalente ao quarto e quinto ano) da Escola de Aplicação Feevale já consideram realidade. E isso graças a um jogo que foi desenvolvido dentro do Minecraft Educacional pelos estudantes da disciplina de introdução aos jogos digitais, do curso de Jogos Digitais da Universidade Feevale.
Segundo o professor da disciplina, Cristiano Max, que também é coordenador do Mestrado de Indústrias Criativas na instituição, do início da pandemia até o final deste ano, terão sido desenvolvidos e entregues à escola sete jogos criados pelos universitários.
— Aderimos ao Minecraft Educacional, inicialmente, como uma ação de sala de aula para que pudéssemos fazer um protótipo enquanto estávamos isolados em casa. Mas tomou uma outra proporção, pois a turma pode desenvolver dois jogos em um mesmo semestre — recorda Max.
Os primeiros objetos educacionais produzidos em parceria com os professores da Escola de Aplicação, relata Max, foram utilizados com crianças entre oito e nove anos (com tema sobre zona rural e zona urbana) e adolescentes 12 e 13 anos (na área de ciências). A meta era usá-los como ambientes imersivos para que os alunos pudessem interagir de forma mais lúdica com as disciplinas repassadas naquele momento de distanciamento social.
O conteúdo é desenvolvido dentro do jogo, permitindo aos estudantes entrarem num mundo virtual no qual é possível construir e viver experiências. Dentro da plataforma há um diário de campo, e o estudante pode fotografar as construções e anotar o que ele fez. Ao término do jogo, esse documento deve ser exportado para o Blackboard Collaborate para que, assim, os professores possam avaliar o aprendizado.
Mais de 300 estudantes já usaram os jogos criados pelos universitários da Feevale. Max ressalta que a intenção é fazer com que esta iniciativa se torne comum em outras escolas:
— Não é fácil, mas não é tão complicado. Minha intenção é que consigamos formar núcleos de alunos com capacidade de criar estes objetos de forma mais corriqueira (fora da universidade). O metaverso vem para ficar, mas tem um preço.
Com a volta das aulas presenciais, Max já planeja avançar na criação de novos jogos que permitam a imersão maior de professores e alunos no universo, no qual mais pessoas poderão jogar juntas em sala de aula.
Imersão na cirurgia
Enquanto o estudante do quarto ano de Medicina João Vítor Rigo Pontel, 21 anos, de Passo Fundo, no norte do Estado, avança sobre camadas de tecido de um corpo humano para chegar no ponto orientado pelo professor e cirurgião plástico Eduardo Madalosso Zanin, os colegas apenas observam e ouvem atentamente as orientações do docente da disciplina de técnica cirúrgica na Universidade de Passo Fundo (UPF). A diferença é que a turma não está em um hospital e nem existe um ser humano sendo operado. Todos estão em aula no Centro de Simulação Realística, que atende os cursos na área da saúde.
O Centro é o único no Estado que possui certificação American Heart Association (AHA). Nele, o metaverso é utilizado na plataforma multidisciplinar 3D. Com a tecnologia, as aulas de fisiologia, saúde do adulto, patologia e de diferentes especialidades têm o diferencial de aproximar os estudantes dos cursos da área da saúde a questões que antes ficavam somente no imaginário ou nas imagens em 2D, já que eles ainda estão na etapa anterior ao contato acadêmico com o paciente. A tecnologia permite que os participantes das aulas visualizem e acessem o interior de órgãos humanos reproduzidos em 3D.
De acordo com o professor Eduardo, o estudante parte para as atividades práticas com mais conhecimento e compreensão do que pode acontecer com um paciente:
— Uma coisa é mostrar uma imagem em 2D e outra é vivenciar todo aquele momento. A aula se torna mais atrativa, e o aprendizado é ainda mais solidificado. Esta geração é aquela que vai desenvolver estas ferramentas que ainda são muito subutilizadas. Percebo um entusiasmo neles.
Para João Vítor, as aulas em 3D facilitam a compreensão. Ele, que já teve aulas em 3D em disciplinas como pneumologia, imaginologia, ginecologia e cardiologia, acredita que as novas tecnologias devem ir ao encontro dos métodos mais tradicionais, para serem usadas de forma conjunta.
— A maior dificuldade é aprender a usar o equipamento de forma correta. Já a maior facilidade é o leque de possibilidades que ele pode nos proporcionar. O Centro de Simulação Realística como um todo proporciona inúmeras simulações de situações práticas que, com certeza, ajudam muito na capacitação de profissionais da saúde — atesta o universitário.
Do zoom para o metaverso
Pela primeira vez, o evento Chip in the Minuano, organizado pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel) e Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), será realizado em um ambiente virtual criado especialmente para o encontro. O Chip in the Minuano será de 22 a 26 de agosto, integra cinco eventos técnico-científicos que trarão discussões e oportunidades científicas e tecnológicas em Microeletrônica e pretende reunir participantes de diferentes partes do país.
Segundo Bruno Zatt, um dos coordenadores do evento e também coordenador do Programa de Pós-Graduação em Computação da UFPel, o Chip in the Minuano migrou para as reuniões virtuais por conta da pandemia. Porém, neste ano, a organização decidiu dar um passo a mais na experiência.
— Ninguém mais aguenta o formato virtual mais clássico. Propusemos, então, que ele aconteça no metaverso para permitir mais interação porque perdemos o contato presencial. E as pessoas poderão continuar nas suas casas durante as conferências — explica Zatt, que tem o professor especialista em microeletrônica José Rodrigo Azambuja, da UFRGS, como parceiro na coordenação do Chip In deste ano.
Em 2021 as conferências foram via Zoom. Agora, haverá um ambiente próprio no metaverso em que cada participante se tornará um avatar e poderá conversar e até conhecer os balcões dos expositores e patrocinadores do evento.
Embora não tenha um lugar físico, o Chip in desta edição tem o Rio Grande do Sul como Estado organizador do evento. Até por isso foi criado um chafariz em formato de cuia na área externa onde os avatares dos visitantes poderão se encontrar entre uma conferência e outra. Também haverá diferentes jogos para os participantes se divertirem nos intervalos da programação. E se no último encontro presencial do evento, em 2019, 250 pessoas estiveram presentes em Bento Gonçalves, com a chegada do ambiente virtual são esperados cerca de 500 participantes de todo o Brasil.
— Escolhemos um ambiente parecido com os jogos dos anos de 1980 porque este sistema facilita para todos. Os ambientes mais imersivos exigem do usuário um poder computacional com mais potência. Aliás, pretendo usar esta plataforma para dar aulas e irmos testando — finaliza Zatt.