Promulgada pela Câmara Municipal de Porto Alegre na quinta-feira (17), a lei que autoriza a educação domiciliar na Capital é considerada inconstitucional pela Promotoria de Justiça Regional da Educação de Porto Alegre (Preduc-POA). Por meio de nota, o órgão informou que instaurou e encaminhou um procedimento administrativo sobre a promulgação para a Subprocuradoria-Geral de Justiça para Assuntos Jurídicos do Ministério Público do Rio Grande do Sul (MPRS), que analisará a possibilidade de ajuizar uma Ação Direta de Inconstitucionalidade.
Na visão da promotoria, a lei é inconstitucional porque já existe uma ação julgada no Supremo Tribunal Federal (STF) “dizendo que a competência para legislar sobre essa matéria é de exclusividade do governo federal”, ou seja, “nem Estados nem municípios podem legislar neste sentido”. O julgamento em questão ocorreu em setembro de 2018 e, conforme a decisão, a Constituição Federal prevê apenas o modelo de ensino público ou privado, cuja matrícula é obrigatória, e não há lei que autorize a modalidade, conhecida como homeschooling, no Brasil.
Romualdo Portela de Oliveira, diretor de pesquisa e avaliação do Cenpec, organização da sociedade civil que trabalha pela qualidade na educação básica pública do país, e presidente da Associação Nacional de Política e Administração da Educação (Anpae), afirma que a ideia proposta é antiga e há anos vem sendo debatida na Justiça, a partir de casos específicos. Ele destaca que o tema se refere às diretrizes da educação e, por isso, a definição pode ocorrer somente em nível federal. Mesmo assim, políticos que são favoráveis ao homeschooling encontram em aprovações estaduais ou municipais uma forma chamar a atenção para o assunto.
— Entendo que, se alguém recorre ao Supremo, o Supremo vai declarar essa lei como inconstitucional, porque a legislação federal interpreta o ensino domiciliar como crime de abandono intelectual. Mas a derrubada pelo STF demanda esforço e tempo, então acho que é mais uma estratégia para deixar o assunto em evidência e tentar uma modificação da legislação nacional — opina.
De acordo com Oliveira, há projetos de leis federais sobre o ensino domiciliar, mas nenhum foi aprovado ainda. Uma das propostas prevê a modificação do Código Penal, com o objetivo de deixar claro que a pena prevista para o crime de abandono intelectual não se aplica a pais ou responsáveis que optarem pelo homeschooling. Outro projeto, de 2012, altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educação para prever que a Educação Básica possa ser oferecida em casa, sob responsabilidade de pais ou tutores legais.
— Então, essa decisão da Câmara Municipal extrapola suas competências . A decisão é federal — afirma o diretor.
O que diz a lei de Porto Alegre
A lei 13.029, que propõe a instituição das diretrizes da educação domiciliar na Capital, é fruto do projeto aprovado pelo Legislativo em dezembro de 2021, de autoria da vereadora Fernanda Barth (PRTB) e do vereador Hamilton Sossmeier (PTB). Ela foi promulgada pelo presidente da Câmara Municipal de Porto Alegre, vereador Idenir Cecchim (MDB), após o prefeito Sebastião Melo não ter se manifestado dentro do prazo legal de 15 dias.
O texto da lei considera como educação domiciliar “a modalidade de ensino solidária em que a família assume a responsabilidade pelo desenvolvimento pedagógico do estudante, sem a necessidade de matriculá-lo em uma escola de ensino regular”. Segundo o documento, os pais ou responsáveis que optarem pelo homeschooling em Porto Alegre devem comunicar formalmente a Secretaria da Educação (Smed).
As famílias também devem manter registro das atividades pedagógicas desenvolvidas e apresentá-las sempre que solicitado pelo poder público, respeitar o currículo-base da rede municipal e assegurar a convivência familiar e comunitária às crianças. Os estudantes também deverão ser submetidos a avaliação ao final de cada ciclo de aprendizagem, por meio das provas institucionais aplicadas pelo município ou por instituição de ensino a ser por ele conveniada ou credenciada.
Se o desempenho do estudante na avaliação for considerado insatisfatório, será oferecida uma prova de recuperação, aplicada pela Smed. Alunos com avaliação satisfatória terão o direito de obter as certificações de conclusão dos respectivos ciclos de aprendizagem.
Questionada sobre a aplicação da norma promulgada, a Smed afirmou, em nota, que "Porto Alegre tem uma gestão democrática, que respeita diferentes pontos de vista” e que o “Executivo vai analisar a forma de implementação da nova lei”.
Conforme o texto divulgado no site da Câmara Municipal de Porto Alegre, a vereadora Fernanda Barth e o vereador Hamilton Sossmeier defendem que a Constituição Federal de 1988 prevê que a educação é um dever compartilhado entre a família e o Estado. Além disso, afirmam que a educação domiciliar já é uma realidade no Brasil, sendo adotada por mais de 7,5 mil famílias em todos as unidades federativas, contemplando mais de 15 mil estudantes entre quatro e 17 anos.
"É um direito das famílias e um respeito à liberdade. Reconhecido em mais de 60 países, (o homeschooling é) uma modalidade de educação que contempla uma minoria que precisa ser respeitada", afirmou Fernanda, em nota enviada à reportagem.
Modalidade divide opiniões entre especialistas
Para o ex-procurador de Justiça e advogado Lenio Luiz Streck, o ensino domiciliar fere a igualdade, já que não pode ser feito por todas as famílias, e transfere recursos indevidamente dentro da sociedade — isso porque as certificações e avaliações ainda teriam que ser de responsabilidade do Estado e, portanto, seriam pagas também pelas pessoas que não aderiram à modalidade, por meio dos impostos. Diante disso, considera a lei promulgada em Porto Alegre “absolutamente inconstitucional”.
— Se os pais têm direito de não levar seus filhos para o colégio, todos têm que ter esse direito. Mas a grande questão é que os pobres não podem fazer homeschooling. Se é só para os ricos, somente por isso já não se poderia fazer a lei, porque é uma lei que viola a igualdade entre as pessoas — defende.
A ideia de que avaliações podem comprovar que os estudantes estão atingindo os objetivos de aprendizagem também é um problema, porque desconsidera todo o contexto da educação, ressalta Andreia Mendes dos Santos, professora do Programa de Pós-Graduação em Educação e do curso de Psicologia da PUCRS. Assim, ela aponta que a proposta do ensino domiciliar fere princípios da educação, como o que diz que o processo de aprendizagem é contínuo e se desenvolve no cotidiano, pelas experiências vivenciadas pelos alunos nas escolas, com os colegas, os conteúdos e as estratégias pedagógicas adotadas:
— Precisamos compreender o motivo de não levar a criança para a escola e optar por esse ensino domiciliar, e o quanto isso já carrega em si o estigma de que a educação é feira por qualquer um, de que não existe uma especificidade nesse fazer do professor e na proposta pedagógica.
A especialista também defende que as instituições de ensino têm um papel de socialização do indivíduo. Para ela, a função dos pais ou responsáveis é a do desenvolvimento, do cuidado e do afeto, enquanto o dever da escola refere-se às diferentes aprendizagens.
— O papel da escola também é social, porque é nesse ambiente que a criança acaba manifestando aquilo que não vai bem em sua vida, é onde aparece os primeiros sintomas de que há alguma dificuldade, de que alguma coisa está acontecendo. A escola também tem o papel de perceber que a criança está precisando de um cuidado maior de saúde, de assistência ou de segurança — diz.
Benefícios da prática
Licenciada em Pedagogia pela PUCRS e diretora pedagógica da Homeschool Annabel, que oferece complemento escolar e apoio educacional às famílias, Anna Hens argumenta que o homeschooling tem três principais benefícios: a personalização do ensino, a qualidade da educação e a participação da família no processo de aprendizagem. Ela afirma que, na escola, todos os alunos de uma turma aprendem o mesmo, enquanto nesta modalidade se trabalha, além da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), temas que vão além.
Em relação à qualidade, comenta que ensino direcionado para pequenos grupos gera uma aprendizagem mais significativa e um melhor desenvolvimento do aluno:
— Sabemos que cada um tem o seu jeito de aprender e isso tem que ser respeitado. Quando se faz o ensino doméstico, se consegue respeitar o ritmo de cada aluno e a sua forma de estudar e aprender. Além disso, a modalidade nos traz maior convivência e participação da família no ensino.
De acordo com a diretora pedagógica, no ensino doméstico, as famílias investem em outros espaços socializadores, como atividades extracurriculares sobre empreendedorismo, gastronomia, música, dança e esportes:
— A socialização é um passo importante e nenhuma família do ensino doméstico quer que seu filho não socialize, muitas só querem que seu filho não passe por sofrimentos.
Anna se diz a favor da liberdade educacional e defende que as crianças que não têm a escola como o melhor lugar para aprender podem ter outras opções dentro das possibilidades de suas famílias.
— Penso que, se vivemos em um Estado democrático, a liberdade é um direito de todos. Se a pessoa pode escolher o que é melhor para ela, por que uma família não pode ter a liberdade de fazer o que é melhor para o seu filho? Só temos um formato de escola e, se o aluno não se adapta à escola, ele é uma exceção da lei, daí tem afastamento e fobia escolar. Conheço casos em que a escola acabou sendo um excludente, ao invés de promover inclusão — relata.