O uso de linguagem neutra (como todes e elu, por exemplo) durante apresentação de um espetáculo infantil levou o Colégio Farroupilha a cancelar outras três encenações que o Grupo Cerco faria na escola. O caso aconteceu no final de outubro, e os artistas falam em ato de censura. Já a instituição alega que o uso de "termos não reconhecidos pela norma-padrão" motivou a decisão.
Segundo a atriz do grupo Elisa Beschorner Heidrich, que também é mestra em Artes Cênicas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), professora de teatro e integrante do Depósito de Teatro, o grupo havia sido contratado para quatro apresentações na escola – três em 29 de outubro e uma em 3 de novembro. A primeira e única foi realizada na última sexta-feira de outubro às 8h30min na instituição. As crianças brincaram juntas, aplaudiram muito e se divertiram.
O grupo teria mais dois espetáculos naquele dia. Depois de um intervalo, no retorno à escola, porém, receberam a notificação de que deveriam alterar a linguagem do texto ou o espetáculo seria cancelado. O grupo chegou a cogitar algumas mudanças rápidas, mas veio uma segunda notificação dizendo que qualquer deslize na peça, ela seria cancelada. Os artistas, então, optaram por não se apresentarem.
Apresentado desde 2015, com mais de 200 apresentações usando sempre o mesmo texto, Puli-Pulá já havia sido encenado no Farroupilha em outubro de 2018. Na época, a apresentação foi muito elogiada pela escola, que já conhecia o conteúdo da peça.
Em nota, a instituição de ensino informou que o cancelamento das encenações ocorreu após a identificação da “utilização de termos não reconhecidos pela norma-padrão da nossa língua”, considerada inadequada pelo colégio, especialmente para crianças em fase de alfabetização ou ainda não alfabetizadas. O Farroupilha reforçou que respeita as variantes do idioma, mas reconhece a escola sobretudo “como espaço primordial de aquisição e exercício da norma-padrão da língua portuguesa”.
Elisa ressalta que a escola havia recebido o material pedagógico, onde é citado que o grupo trabalha pela aceitação das diferenças, pela inclusão e apresenta conteúdos que a escola poderia trabalhar com os alunos quanto ao bullying.
— Nos surpreendeu muito ter recebido, agora, este tipo de ataque, porque nunca foi questionado o uso da linguagem neutra. Reconhecemos como censura e uma quebra da liberdade de expressão — diz Elisa.
A atriz explica que o grupo fez estudos para criar o espetáculo e pesquisou sobre a brincadeira de pular corda. A peça aborda questões sobre a ocupação dos espaços públicos, a inclusão das diferenças e é repleta de músicas criadas pelos artistas. Na pesquisa, o grupo identificou em diferentes regiões que pular corda era reconhecido como “brincadeira de menina”.
— Passamos a questionar isso. Inclusive, nas letras das músicas de pular corda havia uma tradição antiga e ultrapassada de comportamentos que devem ser seguidos, como sugerir com quem a menina deveria se casar. Neste sentido, afirmamos que a brincadeira não tem gênero. Brincadeira é para todes. Ela deve ser livre e não deve ter nenhum tipo de restrição e, por isso, adotamos a linguagem neutra. Neste sentido, queremos trazer a inclusão e a aceitação de todas as diferenças — justifica Elisa.
Criado em 2008, o Grupo Cerco foi formado naquela época por alunos do departamento de arte dramática da UFRGS. Desde então, os artistas produziram quatro espetáculos – O Sobrado, Incidente em Antares, Puli-Pulá e Arena Selvagem. Todos eles premiados.
— Puli-Pulá, o espetáculo em questão, já foi apresentado em diversos festivais, como Porto Alegre em Cena, Caxias em Cena, Festival de Curitiba e nos apresentamos até em Portugal com ele — completa Elisa.
Ao saber da resposta do Colégio Farroupilha sobre a decisão de cancelar as apresentações, Elisa resumiu:
— Não consideramos este um argumento válido. Inclusive, acreditamos que ele contribui para bullying, para preconceito e discriminação até dentro da escola, não aceitando este tipo de linguagem. O Grupo Cerco repudia qualquer tipo de censura. Nossa mensagem é pela brincadeira e pela liberdade de expressão.
Confira a nota do Colégio Farroupilha:
“No Colégio Farroupilha, atuamos há mais de 135 anos em prol de uma educação de qualidade.
Informamos, portanto, que nosso Projeto Pedagógico prima pelo desenvolvimento de conteúdos e habilidades vinculados à Base Nacional Comum Curricular (BNCC), respeitando as variantes do idioma, mas reconhecendo, sobretudo, a escola como espaço primordial de aquisição e exercício da norma-padrão da língua portuguesa.
Em relação ao espetáculo Puli-Pulá, esclarecemos que o Grupo Cerco foi contratado para realizar quatro apresentações. Contudo, durante a primeira e única exibição, identificamos a utilização de termos não reconhecidos pela norma-padrão da nossa língua, o que consideramos inadequado, observando-se, ainda mais, a faixa etária de crianças em fase de alfabetização ou ainda não alfabetizadas. Em razão disso, as demais apresentações foram canceladas.
Por fim, reiteramos que educamos para formar cidadãos competentes, éticos e globais e que, ademais, acreditamos na parceria entre famílias e escola no desempenho desse compromisso.”