Oséas Ferreira, de 20 anos, trabalha como empacotador em um frigorífico. Em algum momento entre o início e o fim da jornada de dez horas, percebeu que o sonho de estudar escapava entre os dedos. Ele queria cursar Direito, mas neste domingo (2), quando colegas da mesma idade realizaram a primeira prova do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), ficará ainda mais distante da universidade.
— Tem hora que dá desespero. Sempre gostei de estudar e não tenho oportunidade — diz o jovem de Contagem, região metropolitana de Belo Horizonte.
Ferreira faz parte de um grupo que se tornou mais numeroso este ano: aqueles que nem chegaram a se inscrever no Enem. Porta de entrada para o Ensino Superior brasileiro, o foi aplicado neste domingo e segue no próximo, em meio a denúncias de tentativa de controle sobre questões da prova e crise com servidores do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep), responsável pelo teste.
Desde 2005, o Enem não tinha número tão baixo de inscrições. E, naquela época, a prova nem era usada para entrar em universidades públicas. O total de candidatos que vai fazer este Enem - cerca de 3,4 milhões - é quase metade do que o Ministério da Educação (MEC) esperava de inscritos no início do ano. Em relação ao ano passado, houve redução de 41% no total de inscrições.
A queda é maior entre os candidatos que já haviam concluído o Ensino Médio. E excluiu ainda mais pretos, pardos e indígenas. O corte na gratuidade para quem faltou no ano passado afastou ainda estudantes pobres que não conseguiram pagar a taxa de R$ 85 para participar. O ministro da Educação, Milton Ribeiro, que brigou na Justiça para não reabrir o prazo de inscrição, minimizou no Congresso o recorde negativo.
— Quero saber de fato quantos vão fazer o Enem — disse.
Em setembro, o Supremo Tribunal Federal (STF) determinou a reabertura do prazo de inscrição com gratuidade para quem faltou na edição passada. O Enem de 2020, realizado em janeiro deste ano, teve recorde de abstenção — grande parte de jovens que faltaram com medo de contaminação pela covid-19. A adesão à nova rodada de inscrições agora foi baixa: só 280 mil alunos a mais, que vão fazer a prova apenas em janeiro de 2022.
O ensino remoto ruim, em meio à pandemia, desmotivou os estudantes.
— É complicado, não tem como aprender como eu queria. Não me sinto preparada — diz Karen Carla Alves, de 17 anos.
Após quase dois anos de aulas online, a jovem mineira decidiu não se inscrever e tentar só depois uma vaga em Medicina Veterinária.
Já Thiago Henrique Almeida, de 18 anos, começou a trabalhar para ajudar o tio. Morador de Epitaciolândia, no Acre, ele leva e traz gado entre dois municípios do interior.
—Não consegui aprender de verdade. A gente só pegava material na escola, e assistia pela televisão, quando dava o sinal. Meu tio me disse que no próximo ano vai pagar um pré-Enem para mim. Quero fazer Engenharia Elétrica. Não adiantaria tentar agora — diz.
Diretores e professores bem que tentaram mobilizar os estudantes, mas a crise fez força contrária. No Amapá, Arnanda Oliveira, responsável pelo Ensino Médio na Secretaria de Educação, viu famílias saírem da capital e voltarem para comunidades rurais ou ribeirinhas para sobreviver - muitas delas sem computador ou celular.
— A gente já percebeu esse impacto no Enem 2020 e mais ainda este ano. Qualquer ação que envolva WhatsApp, ou algo simples de internet, temos dificuldade de alcance. A educação dificilmente vai ficar em primeiro plano, porque essas pessoas precisam comer — afirma. —
A queda de inscritos neste Enem é ainda maior na faixa de 21 a 30 anos - 68,8% em relação à edição passada.
Crise
Em Pernambuco, ausências de alunos em aulas preparatórias para o Enem, aos sábados, chamaram a atenção.
— Percebemos que muitos estavam indo trabalhar na feira livre, como carregador, qualquer função que oferecesse remuneração — diz Regina Melo, gerente geral do Ensino Médio e anos finais do fundamental da Secretaria de Educação.
A morte de parentes próximos pela covid-19 também forçou jovens a buscarem emprego, antes de pensarem em continuar os estudos.
— Vimos muitos casos de alunos que precisaram trabalhar para sustentar os irmãos porque os pais faleceram — diz Sirlei Bayma, gerente do Ensino Regular da Secretaria de Educação e Desporto do Amazonas.
No Rio Grande do Norte, o secretário estadual da Educação, Getúlio Marques, calcula que 20 mil tinham interesse em fazer a prova (chegaram a se cadastrar), mas não tiveram a inscrição concluída, por falta de pagamento ou desistência.
— O impacto vai ser grande nessa geração, para os próximos anos, com menos gente qualificada no tempo certo.
Procurado sobre as causas do encolhimento do Enem e políticas para reverter o problema, o MEC não se manifestou.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.