Martin Jansen Bittencourt, sete anos, tem talento para matemática, idiomas e música — com o chamado ouvido absoluto, é capaz de identificar precisamente as notas musicais de qualquer som e executa canções ao piano depois de ouvi-las apenas algumas vezes. Cursa o 2º ano do Ensino Fundamental do Colégio Anchieta, em Porto Alegre, e foi alfabetizado com a ajuda da mãe, Suzel Lisiane Jansen Bittencourt, 46 anos, durante as aulas online do ano passado — em cerca de dois meses, estava lendo. O que o torna personagem desta reportagem, mas de forma alguma o resume ou define, é o fato de ser autista.
Nesta semana, a Fundação de Articulação e Desenvolvimento de Políticas Públicas para PCD e PCAH no Rio Grande do Sul (Faders) realiza a 27ª Semana Estadual da Pessoa com Deficiência — o nome da instituição, ligada à Secretaria de Igualdade, Cidadania e Direitos Humanos e Assistência Social também faz referência à Pessoa com Altas Habilidades. Ao mesmo tempo, são disputadas em Tóquio, no Japão, as Paralimpíadas, lembrando à audiência mundial que uma limitação, física ou intelectual, não é um decreto de inviabilidade ou exclusão.
Martin teve o diagnóstico de autismo aos dois anos, depois de a pediatra desconfiar do atraso na fala. O transtorno se caracteriza por dificuldade de comunicação, comprometimento da habilidade de interação social e prática de movimentos ou rituais repetitivos. Logo, o menino começou a receber acompanhamento especializado, com estimulação precoce, sessões de fonoaudiologia e aulas de musicalização. Após um ano em uma escola infantil pequena, a família o matriculou no Anchieta.
— Ele foi superbem recebido, depois de eu sondar se a escola seria capaz de acolhê-lo. Tinha que ser legal para os dois lados. Eles aceitam o que eu falo, eu aceito o que eles falam — comenta Suzel.
O caçula da economista começou a falar bem mais tarde do que o esperado. Frases mais completas, com sentido, surgiram só perto dos cinco anos. Quando recebe orientações, Martin pode ter dificuldade para focar e apreendê-las, necessitando de alguém que fale diretamente com ele. Na integração com os colegas, talvez precise de um empurrãozinho, mas consegue participar das atividades e brincar.
— É uma evolução. Ele largou atrasado, mas está correndo e recuperando — descreve Suzel, destacando a incrível capacidade de memória de Martin.
O menino conta com a presença de uma professora auxiliar. Consegue acompanhar a turma nos conteúdos. No contraturno, recebe apoio especializado. Suzel salienta que o grupo é gentil com o filho e que a presença dele tem benefícios em via dupla:
— É bem importante para que as crianças entendam as diferenças. As diferenças do Martin têm um nome, que é autismo, mas há muitas dificuldades que não têm nome. O caso do Martin deixa os colegas mais abertos a aceitarem as dificuldades dos outros. Acho que isso os prepara para serem mais inclusivos com as dificuldades das pessoas, não só com as de quem tem um diagnóstico. As crianças aceitam bem isso, mas tem que começar desde cedo.
Amanda Ferreira Pereira, 17 anos, frequenta o 3º ano do Ensino Médio do Colégio Estadual Augusto Meyer, em Guaíba, na Região Metropolitana. Com malformações no lado esquerdo do corpo, usa muletas. Adora jogar futebol, atividade da qual sente mais falta no período de confinamento e aulas acompanhadas pela internet. Os contatos com os amigos vêm sendo mantidos via chamadas de vídeo, redes sociais e WhatsApp.
É bem importante para que as crianças entendam as diferenças. As diferenças do Martin têm um nome, que é autismo, mas há muitas dificuldades que não têm nome.
SUZEL LISIANE JANSEN BITTENCOURT
Mãe de Martin, sete anos
Mãe da adolescente, a técnica em enfermagem Michele Salaberry Ferreira, 38 anos, conta que a deficiência nunca impediu a filha de se integrar na rotina escolar. Amanda sempre teve amigos que frequentavam sua casa, e vice-versa. Com a mãe, a garota aprendeu uma lição importante para o dia a dia:
— Ela sempre diz que o que pensam ou deixam de pensar é problema deles. Nunca me importei com o que os outros pensavam de mim.
Outro ensinamento fundamental foi o incentivo para fazer tudo sozinha e se tornar independente.
— Tem coisas que eu não consigo fazer? Tem — admite Amanda. — Mas sou chata para pedir ajuda. Nunca gostei — acrescenta.
Para Michele, a presença da menina nas instituições por onde passou significou a possibilidade de despertar a empatia.
— Sem isso, não é um mundo real — acredita a técnica em enfermagem.
"Um dos pilares da educação contemporânea é aprender a viver junto"
A pedagoga Cristina Basques Ferreira, responsável pelo Serviço Pedagógico Especializado do Colégio Anchieta, na Capital, afirma que a educação inclusiva é uma preocupação em todo o mundo. A diversidade, assegura, trata-se de fator essencial para a transformação da escola e dos demais espaços que a pessoa com deficiência frequentar ao longo de sua formação, como um curso técnico ou a universidade.
O sujeito é muito competente para ensinar e para aprender. Isso se faz na prática, para eliminar barreiras físicas, pedagógicas e de atitudes.
CRISTINA BASQUES FERREIRA
Pedagoga
Em 9 de agosto, uma declaração de Milton Ribeiro, ministro da Educação, indignou famílias e profissionais da educação. Em entrevista à TV Brasil, ele afirmou que crianças com deficiência “tornam impossível” a convivência em escolas públicas. “O que o nosso governo fez: em vez de simplesmente jogá-los dentro de uma sala de aula, pelo ‘inclusivismo’, nós estamos criando salas especiais”, disse o titular do MEC. Dias depois, ele voltou a tocar no tema.
Para Cristina, a fala configura um retrocesso.
— É uma não observância dos direitos do cidadão brasileiro, tanto dos pais quanto das crianças e dos jovens. É uma tristeza que tenhamos políticas públicas que são maravilhosas no papel e, na prática, não são efetivadas. Penso que a melhor resposta é a nossa dedicação, o trabalho que se faz junto às crianças. Educação é um direito de todos, e o ideal é que o processo inclusivo se torne algo naturalizado — afirma a pedagoga.
O conceito de aprendizagem cooperativa pressupõe que todos os estudantes, independentemente de sua condição, sejam valorizados. Entre si, eles se ajudam, enriquecendo-se com as experiências e, sobretudo, as trocas.
— É importante que se busquem diretrizes para mobilizar toda a comunidade, sensibilizando-a para isso. O sujeito é muito competente para ensinar e para aprender. Isso se faz na prática, para eliminar barreiras físicas, pedagógicas e de atitudes. Hoje em dia, um dos pilares da educação contemporânea é aprender a viver junto. Isso, por si só, já supõe um olhar de participação e cooperação entre todos — explica Cristina.
A família desempenha um papel importante também, desde a constatação da deficiência - no momento do nascimento ou mais adiante. É delicado lidar com a expectativa em relação ao filho sonhado versus a realidade.
— O diagnóstico traz um impacto muito importante. Tem que olhar para as possibilidades que se abrem. Que possamos encarar nossas crianças e nossos jovens não como um diagnóstico, mas como um sujeito que está ali pronto e ávido para se desenvolver. O que faz a diferença é o amor, o respeito e o tempo de desenvolvimento de cada um. Todos têm potencialidades e dificuldades — reflete Cristina.
Para os pais de filhos típicos (sem deficiência), é fundamental frisar o quanto se pode aprender com esses colegas.
— Se você tem conhecimentos e habilidades que eu não tenho, você pode aprender comigo e eu com você. É um olhar carinhoso, é enxergar as pessoas como elas se apresentam —completa a pedagoga.