Deitada sobre a cama do hospital, Amanda Vitoria Luciano Gomes equilibra os livros em uma das mãos. No outro braço, a máquina de hemodiálise filtra o sangue da garota de sorriso fácil, que não demonstra os 21 anos de idade. A aparência ainda mais jovial, segundo a família, é efeito da granulomatose de Wegener (leia mais ao final deste texto), doença autoimune que afeta o funcionamento dos seus rins.
— Na aula, muitas vezes me baixava a pressão, e eu precisava ir para o hospital. Para não perder o ano, minha irmã levava os cadernos e os livros, e eu estudava ali mesmo, sem poder mexer o braço, equilibrando tudo — conta ela.
Desde 2016, o malabarismo da jovem moradora da Lomba do Pinheiro, zona sul de Porto Alegre, tem um objetivo claro: prepará-la para o vestibular no curso mais disputado da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Medicina. O esforço da jovem com jeito de criança foi recompensado nesta segunda-feira (16), quando o listão de aprovados foi divulgado.
— Eu tava no ônibus, indo para a hemodiálise, e comecei a gritar de alegria. Só pensava no quanto vai ser incrível — relembra, enquanto é observada pelos familiares.
O estudo no leito hospitalar por vezes precisava ser interrompido. A sensação de tontura desestabiliza a leitura, e o menos desconfortável era deitar com os braços estendidos, em um movimento que eleva o livro em direção ao teto do quarto.
O vestibular de 2019 foi o terceiro realizado pela estudante. Em todos ela escolheu Medicina como uma única opção. No ano passado, "bateu na trave", deixando de estar entre os selecionados por oito questões, segundo seu cálculo.
— Quase desisti. Achei que não era para ser. Mas aí se passaram uns dias, e eu voltei a acreditar. Ninguém pode desistir dos seus sonhos. Olha o que aconteceu comigo: a melhor coisa que podia acontecer — afirma, novamente com o sorriso de quem parece relembrar do listão de aprovados a todo momento.
Em cada internação, Amanda contava com uma vigília feita pelo revezamento dos familiares. Taynan de Oliveira, 28 anos, deixa transparecer no rosto a felicidade pela conquista da irmã mais nova. Ela conta que saía do hospital direto para o recém iniciado curso técnico em Segurança do Trabalho. Tentando poupar a pequena xodó de possíveis frustrações, chegou a sugerir que ela trocasse de curso, por um menos concorrido:
— Nunca tirou da cabeça, era Medicina que queria. Hoje, a conquista é nossa também, uma felicidade tremenda. Orgulho da nossa bebê, que vai ser médica.
As internações foram seguidas de um transplante, quando um dos rins inoperantes acabou substituído. O corpo, porém, rejeitou o órgão, e ela voltou a ter de fazer sessões de hemodiálise, três vezes por semana, em uma clínica. No Hospital de Clínicas de Porto Alegre, onde se submeteu ao transplante, o sonho de se tornar médica cresceu ainda mais:
— O cuidado dos médicos comigo foi incrível. Tive certeza de que era aquilo o que eu queria. E eu sabia que ia lutar até conseguir.
Fábio Spuldaro, nefrologista que a acompanha há anos, foi um dos profissionais em quem Amanda se inspirou. Na segunda-feira, o médico procurou o nome da paciente quando o listão foi divulgado.
– É muita satisfação. O fato de ela ter conseguido passar é uma felicidade para mim – vibra Spuldaro.
Oriunda de escola pública, Amanda contou com uma bolsa de estudos parcial — 70% dos custos foram bancados pelo Objetivo. O cursinho, segundo a estudante, já lhe apresentou o que acredita ser a realidade de uma universidade.
— Já me acostumei. Eram poucos os negros e pobres como eu. Mas não dou bola, vai dar tudo certo — afirma, confiante, enquanto exibe a camiseta que estampa sua rotina: "Lute como uma garota".
Professor de Literatura do Objetivo, Zilmar Silva saúda a política das cotas, que viabilizou a aprovação da aluna:
– Medicina é um curso elitista. Temos que salientar o acerto das políticas afirmativas, que oportunizam a inclusão, no Ensino Superior, dessa aluna tão querida. É um acerto. Se não fosse uma política pública, seria muito difícil para um aluno da periferia, de baixa renda, ingressar na universidade pública.
O docente também destaca a dedicação da aprendiz.
– Para entrar em cursos concorridos, não importa se por cotas ou não, é preciso ter humildade no aprendizado. Para a Amanda, não faltava. Autossuficiência, para qualquer atividade, é sempre ruim. Ela estava sempre atenta, o olhinho brilhava na aula. A inteligência emocional dela é muito boa. Ela se doa, se entrega – descreve Silva.
Primeira da família a chegar à universidade
Na casa de Amanda — em uma rua de chão batido na comunidade do Mangue Seco, localidade perto da parada 15 da Avenida João de Oliveira Remião — vivem a avó, o pai e as três irmãs. Nenhum dos moradores que divide os três puxadinhos teve acesso a um curso superior.
— Por muito tempo, chorei pensando que ia perdê-la. Até para a UTI ela chegou a ir. Hoje choro de alegria por essa conquista — compara o pai, o entregador de jornais André Gomes, 50 anos.
Ele conta não ter segurado as lágrimas ao saber do resultado da seleção:
— Ela me ligou, e eu não consegui segurar. Peguei o telefone e liguei para os parentes, para os amigos, para todo mundo que passou por isso com a gente.
No comércio da região, o nome é festejado.
— A dona do mercadinho começou a chorar quando soube da história da Amanda — afirma o entregador de pães Jorge Luiz Viana, 53 anos.
Para Fátima Gomes Bueno, 57 anos, cozinheira do Centro de Promoção da Criança e do Adolescente, instituição localizada na mesma viela onde vive a jovem, a aprovação de Amanda deve inspirar outras crianças da comunidade:
— A Amanda mostrou que, mesmo morando em uma vila, tendo dedicação, a gente pode tudo.
Como ninguém é de ferro, a família Luciano Gomes comemorou o feito em uma pizzaria na Restinga, na noite passada. Muita comemoração, mas sem perder o foco, observa Amanda:
— E hoje vamos comer mais porque depois tem que voltar a estudar.
Granulomatose de Wegener
- A granulomatose de Wegener é uma doença autoimune, ou seja, uma reação do organismo contra ele mesmo. Caracteriza-se por uma inflamação dos vasos sanguíneos (vasculite) que pode afetar qualquer parte do corpo.
- No caso de Amanda, os órgãos mais prejudicados foram os rins, com consequente falência renal. Ela se tornou uma doente renal crônica, dependente de sessões periódicas de hemodiálise.
- Na hemodiálise, uma máquina substitui a função dos rins inoperantes e permite que ocorra a depuração das toxinas do organismo. Uma sessão dura, em média, quatro horas.
- Amanda passou por um transplante, mas o rim implantado foi rejeitado, o que a forçou a retomar as sessões de hemodiálise, três vezes por semana. A única maneira que o paciente tem de se liberar da máquina é com o transplante, e por isso Amanda está em lista de espera novamente.
Fonte: Fábio Spuldaro, nefrologista