Adriano Naves de Brito
Secretário municipal de Educação de Porto Alegre e professor da Unisinos. Formado em Pedagogia e Direito, com mestrado e doutorado em Filosofia
Os dados do Censo Escolar 2018, publicados em janeiro deste ano pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep), dão conta de que, dos 48,5 milhões de alunos da Educação Básica, apenas 9 milhões (ou 18,5%) estão no setor privado. Embora mostrem que o setor privado tem uma baixa participação na oferta de Educação Básica no Brasil, esses números não contam toda essa história e nem nos falam de como contribuem para os baixos resultados de aprendizagem que experimentamos.
Pois é preciso contá-la por inteiro para que a decisão sobre o futuro do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb), cuja vigência se encerra em 2020, seja melhor informado pela realidade educacional brasileira; e o que venha a ser aprovado pelo Congresso Nacional garanta a equidade e considere todas as potencialidades do sistema para promover a sua necessária e inadiável qualificação.
Com progressos importantes na oferta de vagas, mas muito acanhados nos resultados de aprendizagem, nosso sistema educacional precisa de reformas. Se é verdade que mudanças qualitativas dependem de incremento nas condições de oferta, elas não virão sem um profundo aumento da capacidade de gestão de todos os agentes educacionais, em especial do próprio Estado. A pobre diversidade da “dependência administrativa das vagas”, nome que o censo dá para o pertencimento delas ao setor público ou privado, é chave para entender as enormes dificuldades do gestor público no setor.
À luz da legislação, a dicotomia público/privado no setor educacional remonta à Lei de Diretrizes e Bases (LDB). O Art. 4° fala do “dever do Estado com educação escolar pública” e o Art. 19 define como públicas as instituições “mantidas e administradas pelo poder público”, ao passo que as instituições privadas são as “mantidas e administradas por pessoas físicas ou jurídicas de direito privado”.
Desde 1996, ano de publicação da LDB, contudo, pelo menos duas legislações tornaram muito mais complexa a distinção entre o público e o privado na consecução de finalidades de interesse público. Em 1998, a lei 9637 qualificou o que seriam organizações sociais para fins de atuação nas áreas da educação, pesquisa, cultura, meio ambiente e saúde; e a lei 13019, de 2014, criou um marco regulatório para a atuação de organizações da sociedade civil para, em regime de cooperação com o Estado, prestar serviços à população.
Falta competição entre as escolas, o que daria ao Estado margem para melhorar o todo, e sobra espaço para a intervenção das corporações que se beneficiam da completa dependência do Estado para a oferta pública.
Essa sofisticação na distinção entre o público e o privado e a possível diversificação da oferta no setor da educação não tiveram qualquer repercussão para a Lei do Fundeb. Para a distribuição dos recursos do fundo entre os entes federados, consideram-se no Censo Escolar do ano anterior apenas os alunos da rede pública estatal. As exceções são duas: alunos de educação especial em instituições comunitárias, confessionais e filantrópicas, sem fins lucrativos, e, a partir de 2012, também os alunos de creches, pré-escolas e de educação no campo, em instituições com aquelas mesmas características. Alunos dos níveis Fundamental e Médio não constam como exceções, o que significa que o Fundeb financia o monopólio do Estado sobre a educação pública nessas etapas.
O Fundeb se baseia numa distinção muito menos sofisticada entre o público e o privado: aquela da LDB. Só excepcionalmente considera os alunos de entidades que ofereçam educação pública, mas não estatal. O monopólio do Estado sobre a educação pública é a regra, e as exceções a confirmam. Entende-se, então, que no censo não haja lugar para a educação fundamental ou média que seja pública, mas não estatal. A experiência praticamente não existe, e o modo como o Fundeb é distribuído é determinante para que seja assim.
O efeito disso para os sistemas educacionais públicos é que, em especial nas etapas sob monopólio estatal, a gestão seja dificultada ao extremo. Falta competição entre as escolas, o que daria ao Estado margem de manobra para melhorar o todo, e sobra espaço para a intervenção das corporações que se beneficiam da completa dependência do Estado para a oferta pública. Ademais, esse monopólio converteu as secretarias de Educação em administradoras de suas redes públicas estatais, levando-as a perder de vista o sistema e a se enredarem mais facilmente nas teias corporativas, num círculo vicioso que sufoca os esforços para a melhoria da qualidade da educação. Do lado do setor privado, o modelo levou a uma concentração e acomodação de sua oferta nos nichos sociais mais ricos e, em par com o aquele monopólio, a uma crônica falta de oferta para educação pública por instituições privadas.
Poucos modelos alternativos foram testados. Pernambuco e Goiás fizeram suas experiências. Em Porto Alegre, estamos tentando novamente. Implementamos escolas comunitárias de Educação Básica, ofertamos Educação de Jovens e Adultos (EJA) e ampliamos a oferta de educação no contraturno mediante parcerias. Tudo bancado pelo Tesouro e a custos mais baixos do que o dos alunos de instituições públicas estatais, mas também com possibilidade de aporte adicional pelos parceiros. Dinheiro privado em educação pública.
O objetivo é tornar o sistema tão plural quanto possível, fomentar novas experiências pedagógicas e a atuação pública de instituições educacionais privadas também nessas etapas. Nesse cenário, a tarefa da secretaria tem sido aumentar sua capacidade de coordenar a diversidade e de medir resultados de modo independente, mas uniforme, em todo o ecossistema educacional.
Para o modelo se expandir, contudo, é decisivo que a Lei do Fundeb contabilize alunos de vagas públicas, mesmo que de instituições privadas, e que pare de financiar um monopólio que conspira contra a capacidade de gestão educacional do Estado e contra a sociedade a que ele serve.