Poucos de nós fomos ou iremos à Antártica. Jefferson Cardia Simões esteve lá 21 vezes. Mas, em 1984, quando chegou à Universidade de Cambridge, no Reino Unido, para o doutorado, era alvo de brincadeiras entre colegas: "Um glaciologista que nunca havia visto neve". De lá pra cá, viu muita, também em duas expedições ao Ártico e em dezenas de aventuras por montanhas geladas.
Pioneiro do Projeto Antártico brasileiro, coordenador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia da Criosfera/UFRGS, o gaúcho Simões, 58 anos, é uma das maiores autoridades mundiais em estudos de testemunhos que a história deixa no gelo. Foi eleito por quatro anos como vice-presidente do Scientific Committee on Antarctic Research (Scar), parte do Conselho Internacional para Ciências (ICSU). A diplomacia científica consiste em intercâmbios e colaborações de pesquisadores entre nações para abordar os problemas comuns enfrentados pela humanidade do século 21 e construir parcerias internacionais construtivas.
– Há muitas maneiras pelas quais os cientistas podem contribuir para este processo. Creio que isso é importante sobre minha percepção do papel de um cientista internacional em um momento de rápidas mudanças e crises globais – afirma.
Foi nas pistas da Sogipa, clube pelo qual sagrou-se campeão estadual de 20 mil metros marcha atlética em 1981, que conheceu sua mulher, Ingrid Lorenz. Ela era campeã de 4x400m. Já são 43 anos de uma união da qual nasceram Felipe, biólogo, doutorando também em Cambridge, e Carolina, geógrafa, mestranda na UFRGS.
Uma das mais ousadas expedições de Simões foi ao Polo Sul geográfico, em 2008. Era a primeira incursão nacional ao interior do continente antártico. Essas e outras aventuras são contadas em bom papo, intercalado por dados científicos e entusiasmo com seu mais novo desafio, o projeto Ice Memory.
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Por que se especializar em gelo?
Eu estava me formando em geologia e surgia o Programa Antártico Brasileiro, em 1982. Sempre tive interesse pela atividade de campo, por explorar geograficamente novas áreas. Queria ter um treinamento mais amplo. Visualizei trabalhar com três públicos: a comunidade científica, na parte da exploração e pesquisa; o Itamaraty, e, cada vez mais, atuo na diplomacia da ciência; e a parte logística, operacional, execução de uma operação, que eu também apreciava. Naquele momento, estava tentando várias universidades. Pensava em estudar e aprender sobre a glaciologia e sobre a resposta do gelo às variações ambientais, entender o meio ambiente moderno, como ele responde. Fui aceito por Cambridge e vim justamente pela visão intermultidisciplinar da instituição, além, claro, do próprio nome. Naquele momento, fui aceito no Instituto de Pesquisas Polares Scott, fundado em homenagem ao Scott (Robert Falcon Scott, oficial da marinha real britânica que chegou, em 1912, ao Polo Sul) e aos outros quatro companheiros que morreram naquela missão. Vim para fazer o mestrado, acabei fazendo o doutorado direto e voltei para o Brasil com o intuito de montar o primeiro grupo de glaciologia.
Como equilibra a vida de professor em sala de aula em Porto Alegre, de autoridade no assunto e ainda as aventuras na Antártica? Sente-se um pouco Indiana Jones?
Me sinto, mas é mais porque o cientista polar é assim. Tem de ter gosto pela atividade de campo, ficar dois, três meses fora... o máximo que fiquei foram quatro meses. Há riscos. Perdi um colega ano passado na Antártica, um cientista de renome, Gordon Hamilton. Caiu com moto e tudo em uma fenda. A gente sente muito, ele tinha filhos adolescentes. Por outro lado, estive em lugares onde ninguém foi antes. Esse é um dos grandes atrativos. Eu jamais seria cientista só de laboratório. Minha atividade envolve planejamento, liderança, tem de ter muito definidas as metas naquele período curto que tens de conviver com limitações do ambiente. Muitos cientistas têm problemas com isso, ficar 10 dias acampado. Só indo da barraca-banheiro para a barraca-cozinha e para a barraca-dormitório, porque o vento está batendo a 80 km/h e estás segurando a barraca, tens de desenterrá-la todo dia. E tens de aceitar, cedo ou tarde vai melhorar e vais fazer o trabalho. Eu me considero privilegiado de ser pioneiro em uma área. Hoje, tenho 35 mestres e 14 doutores, desde que comecei na UFRGS, há 25 anos. No início do programa Antártico Brasileiro, quando iniciei aqui, em Cambridge, era só eu. O pessoal brincava que eu era o glaciólogo que nunca tinha visto neve.
Quais as sensações de estar no meio da Antártica, um local tão isolado e frio?
Tu entras em um ambiente basicamente de três cores: branco, céu azul ou cinzento. É a primeira percepção. Depois, os cheiros ou a falta de cheiros. Quando você está perto da Estação Antártica Comandante Ferraz, há muita vida selvagem, fica muito marcado o cheiro de diversos animais, de pinguins, ácido, agressivo. Mas, conforme tu vais te afastando, 20, 40 quilômetros para dentro do continente, entra-se em um grande deserto. É um lugar de paz, tanto interior quanto do ambiente, porque não tem vento, não tem nada de vida, e se não ligar motor, é silêncio total. Ainda mais se estiver no meio de uma nuvem, sem ver nada, um branco total. Tu não usas todos os sentidos nessa situação. Por outro lado, é um ambiente constantemente em mutação na atmosfera. Tu começas a ter miragens, montanhas que estão muito longe, dependendo do tipo de atmosfera, vão aparecer de cabeça pra baixo, tem o fenômeno de precipitação, sem nuvens, poeira de diamantes, microcristais que condensam diretamente na atmosfera.
Essas experiências o tornaram uma pessoa espiritualizada ou o senhor é o cientista típico, cético e ateu?
Sou agnóstico. Por outro lado, quando se está em um ambiente daqueles, a gente enfatiza que não somos nada. O ser humano é tão pequenininho diante dessa natureza, que a gente está em um ambiente privilegiado, neste planeta. Reconheces, cada vez mais, se és um cientista que conhece um pouco de astronomia, como a vida é difícil nesse universo. E a evolução dessa vida. E isso talvez seja um ponto espiritual. Vários colegas meus também têm essa visão trabalhando em um ambiente tão grande. Eu era aluno quando via o Cosmos, a Terra como um ponto pálido azul no meio do nada. É um pontinho. Dentro dele evoluímos, criamos cultura, sociedade e ficamos brigando por bobagem. Se isso é ser místico ou espiritual, depois da morte a gente vê.
O senhor já disse que é impossível ser cético em relação às mudanças provocadas pelo homem no ambiente. Qual sua opinião sobre o assunto?
Antes de tudo, eu sou um paleoclimatologista, uso a glaciologia para reconstruir a história do clima. E os testemunhos do gelo são a melhor técnica para reconstruir a história tanto do clima quanto da química da atmosfera. E não há dúvida nenhuma, nos últimos 30, 40 anos está ficando cada vez mais claro (as alterações provocadas pelo homem). A questão das mudanças do clima vai além das ciências naturais. Estamos trabalhando com conceitos de valores, religiosidade, percepções, relações interpessoais, e tudo isso faz com que pessoas mais conservadoras tenham dificuldade em aceitar que a é necessário bom senso para que a ação do homem não modifique a natureza descontroladamente. Isso tem criado muitos conflitos. Quem são esses negacionistas? Quem está no governo Trump? Ficou bem claro que antes de tudo é uma posição ideológica, mais do que científica. Você não vê nenhum cientista sério, que trabalhe com a questão do clima, sendo negacionista. Pode dizer que não tem, o tempo dirá... Em 10 anos, a gente vai ver as consequências.
Dizem que as calotas polares serão os primeiros pontos a desaparecer, diante do aquecimento global. O senhor já percebe isso?
Acabam generalizando quando dizem as calotas polares. A Antártica (no Polo Sul) e o Ártico (no Polo Norte) são diferentes. No Ártico, estamos tratando de um oceano congelado, é uma camadinha de dois a quatro metros de espessura, com exceção da Groenlândia. E esse gelo realmente está indo. Tende a desaparecer antes de 2040 no verão. A comunidade científica está extremamente preocupada. Na Antártica, a situação é mais complexa. É muito grande. É difícil para um brasileiro entender que é 1,6 vezes o território nacional. Tu não aquece isso do dia para a noite. É claro, os lugares mais quentes estão derretendo, isso perto da estação brasileira. Mas o centro e o interior, é claro, que não vão derreter.
A que resultados o senhor chegou a partir da expedição feita ao Polo Sul?
Alguns dados foram usados, outros estão saindo agora. Não tínhamos nem laboratório no Brasil, a gente conseguiu fazer as análises daquelas amostras, inclusive daquela travessia e, mais recentemente, dos testemunhos (registros em gelo), na Universidade do Maine. Não conseguíamos construir o prédio do centro polar na UFRGS devido à burocracia, levamos cinco anos para conseguir licença ambiental da prefeitura, daí o dinheiro seria perdido. Para não ser perdido, compramos equipamentos, mas não tenho prédio para os laboratórios. Tenho um monte de contêineres usados para depósitos de roupas. Uma vez por ano, envio uma equipe para a Universidade do Maine, eles passam um mês, dois meses, cortando testemunhos, fazendo as análises, que são muito demoradas. Já detectamos contaminação de urânio vindo das minas da Austrália, e arsênio, da mineração de cobre do Chile. Ou seja, mostram sinais da poluição global. Isso é importante do ponto de vista de monitoramento ambiental. O que a gente não conseguiu é ligar o registro da variação climática da Antártica com a variação climática no extremo sul do Brasil. Um dos meus colegas, Francisco Aquino, já conseguiu observar como ocorre a variabilidade dessas frentes frias que se formam ao redor da Antártica, no Oceano Austral. Hoje, está bem determinado onde iniciam essas frentes, que chegam ao Estado e, muitas vezes, avançam até a Amazônia. Queremos colocar isso nos modelos do clima do Brasil, coisas práticas. Isso ajuda a agricultura e a prevenção de desastres naturais.
O senhor está participando de uma nova pesquisa, Ice Memory, projeto da Unesco para salvar o registro ambiental de geleiras que estão derretendo. Onde são guardados esses registros?
Eles são recolhidos em gelo. Os (registros) que estão em Porto Alegre ficam em um frigorífico comercial, às vezes temos que dividir espaço com galinha (risos). Já aconteceu... Sempre estão no estado sólido até a hora da análise. Com Fukushima (acidente nuclear na sequência de um terremoto e um tsunami, em 2014), o instituto polar japonês ficou uma semana sem energia, e os testemunhos começaram a derreter. Eles conseguiram evitar, mas disseram que, caso levassem mais uma semana, iam perder tudo. Manter um testemunho desse gelo em estado sólido para sempre implica investimentos caros, e há vários problemas de segurança. Fico meio nervoso em ter em Porto Alegre... A gente põe em um frigorífico comercial porque espera que o dono não queira ter um prejuízo enorme, tendo toda a carne congelada e outros produtos perdidos. Mas o que é mais fácil? Mandar para a Antártica! Os locais onde vão ficar lá têm temperatura entre -40ºC e -60ºC em estações. A ideia é: joga uma parte para Antártica, quem sabe daqui a 30, 40, 50 anos alguém decide: "Ah, quero estudar uma amostra da época de uma erupção vulcânica, uma famosa... que ocorreu em 1815, que foi a maior, do vulcão Tambora, e ver como se espalhou no mundo." "Quero saber como as explosões termonucleares se espalharam pela Terra durante as décadas de 1940 e 1950." Uma das coisas que se discutiram nesse encontro é: será que vamos conseguir reconstruir a distribuição da peste negra no mundo a partir dos testemunhos de gelo, estudando bactérias transportadas para a Groenlândia ou outras geleiras? Está lá registrado. Porque estamos encontrando agora vírus e bactérias. E a gente encontra parte de líquens, parte de fungos. É algo espetacular.
O que se perdeu desde o incêndio na estação Comandante Ferraz (em fevereiro de 2012)? O senhor está otimista com o andamento das obras do novo complexo?
É essencial, do ponto de vista político e científico, termos essa estação. O Tratado da Antártica deixa claro que temos de ter uma posição permanente e ativa, e isso melhora o status do Brasil dentro do sistema antártico. Estamos tratando aqui não de defender um pedacinho da Antártica, mas o direito que o Brasil tem de decidir o futuro de 50 milhões de quilômetros quadrados. Já começou a construção (da nova estação), e, por enquanto, está bancada a inauguração para março de 2018. Até aí tudo bem. Vamos aos senões: só 25% da pesquisa antártica brasileira era feita em Ferraz. Hoje em dia, a pesquisa é feita em outras plataformas, principalmente no navio polar Almirante Maximiliano. O resto é feito em acampamentos ou em módulos no interior da Antártica. Então, cada vez vamos ter mais pesquisas fora da estação. E não adianta fazermos esse enorme investimento (na construção da nova estação), US$ 100 milhões, se não temos dinheiro nenhum para a ciência. Casa sem pesquisador não produz. Nesse momento, falha o governo. Estamos sem receber um tostão. Em 2016, liberaram R$ 700 mil para todo o Programa Antártico brasileiro. Somos mais de 200 doutores. Estamos desde 2013 demandando para o Ministério de Ciência, Tecnologia e Informação, e agora Comunicações também, R$ 20 milhões divididos em três anos pra financiar cerca de 20 projetos. Corremos o risco de ter uma ótima estação mas não termos pesquisa.
Pode-se pensar, no futuro, em uma disputa territorial pela Antártica, por conta de seus recursos minerais ou do ponto de vista estratégico, como vemos no Oriente Médio?
Não na nossa geração. Onde isso está acontecendo? No Ártico. É um assunto que estamos estudando: a mudança do cenário geopolítico no Ártico. A marinha americana e as forças armadas americanas já mudaram sua política para o Ártico devido às mudanças do clima. A Guerra Fria foi lutada embaixo do gelo, com submarinos nucleares. Hoje, a marinha americana já visualiza um efetivo maior de superfície no Ártico, devido à abertura (degelo). É claro que a Rússia também tem os mesmos propósitos. O que está por trás de tudo isso é a abertura do acesso mais facilitado ao Ártico. Isso tem implicações estratégico-militares, mas, mais importante, maior facilidade da exploração de óleo e gás na plataforma continental do Ártico, que deve conter 30% desses recursos. Em segundo lugar, a abertura de uma nova rota de transporte, que reduz em cerca de 10 mil quilômetros o caminho entre o Oriente e a Europa. E a terceira potência, a China, já está fazendo expedições para o Ártico, inclusive testando navios para transporte de minérios e outros materiais até a Europa.
Muita gente, quando criança, sonha em ser cientista. Mas a realidade da educação no Brasil aborta aos poucos esse sonho. Como é fazer ciência no Brasil hoje?
Nosso problema é a educação básica. Não interessa ao governo, ao ex-governo, ao atual governo... Nos últimos 30 anos, não houve investimento. Estamos vendo as consequências aí. Não adianta abrirmos universidades, se não tivermos valorização do professor, do ensino básico e do aluno. Não é só a questão financeira. É um processo mais amplo, incluindo até a escala de valores do brasileiro em relação à educação. Fazer ciência no Brasil é duro, é como viver em uma montanha-russa. Às vezes, você tem recursos, estávamos muito otimistas até 2012. A partir de 2013, devido às crises econômicas, a ciência já começou a sofrer severos cortes. E faltou dinheiro. Tu te forma, é doutor, estudou fora, voltou, fica às vezes quatro, cinco anos, e vai fazer o quê? Novamente, vamos ter uma fuga de cérebros. Como dizem: no final do mês, você tem de sobreviver. O Brasil ainda vive o mito do cientista abnegado. O cientista tem vários interesses, família, filhos, ele quer um mínimo de qualidade de vida, e, se você não incentiva, ou ele faz outra coisa ou ele migra e vai fazer ciência em um lugar onde possa fazer.