Os atrasos do Enem e do Vestibular parecem despertar tanta atenção quanto o tema da redação e as questões mais difíceis das provas. Mas o que será que nos atrai tanto nessas histórias de gente que se atirou embaixo da porta ou ficou chorando do lado de fora?
Confira o gabarito extraoficial
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Há dois anos, quando estava fazendo intercâmbio no Canadá, minha filha adolescente deixou a carteira no banco do ônibus que pegava todos os dias para ir à escola. Choro e nervosismo, porém, não duraram muito tempo. Naquele mesmo dia, voltando da escola, descobriu que a carteira havia sido encontrada e estava esperando por ela no setor de Achados e Perdidos da companhia de ônibus - até as 17h. O responsável pelos objetos ainda estava lá, preparando-se para encerrar o expediente, quando ela chegou, às 17h05min, diante do guichê. Barganhou, contou uma história triste, chorou, mas nada demoveu o funcionário público canadense: ela teria de voltar no outro dia. No horário. Minha filha saiu de lá sem a carteira e dividida entre dois sentimentos: a gratidão por estar em um país em que objetos perdidos voltavam intactos para os donos e a decepção por não ter conseguido comover o funcionário canadense com seu pequeno drama.
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Como é escolhido o tema da redação do Enem
Devolver objetos perdidos e obedecer horários são diferentes aspectos de uma mesma disposição ética. Respeito a regras, escritas ou não, e a diferentes tipos de acordos que nos ajudam a viver em sociedade são manifestações cotidianas de respeito à lei e de confiança na ordem social estabelecida. Confio, logo obedeço. No Brasil ou no Canadá, a maioria de nós prefere fazer a coisa certa e ter uma autoimagem positiva e honesta. Quando transgredimos, em geral buscamos justificações que nos convençam de que não fizemos nada errado - ou, se fizemos, foi por um ótimo motivo.
No Brasil, muitas dessas justificações apelam para componentes emocionais. Aqui a emoção funciona como uma moeda que sacamos a qualquer momento sabendo que seu valor de face irá impressionar o interlocutor e talvez atrair sua simpatia para o nosso lado. Não é de se estranhar. Em um país em que historicamente ninguém confia nas instituições, a cidadania é um conceito quase abstrato e o Estado nem sempre está do nosso lado, aprendemos muito cedo a contar uns com os outros - principalmente os que estão mais embaixo na pirâmide social. O favor, o jeitinho, a barganha emocional costumam operar onde a lei e as instituições falham. Muitos dependem desses expedientes para sobreviver - e outros para exercer seu poder.
As cenas de atraso do Enem, algumas cômicas, outras trágicas, despertam interesse menos pelo relapso ou pelo azar de quem não chegou na hora certa do que pela fantasia, compartilhada por boa parte dos brasileiros, de que, com jeitinho, agilidade, esperteza ou uma história comovente e sincera, o candidato atrasado seria capaz de burlar as regras e entrar depois do horário. Consciente ou inconscientemente, torcemos para que porteiros e fiscais se comovam com quem não conseguiu sair do trabalho a tempo, pegou um ônibus errado ou mora longe - e mesmo pelos estabanados alimentamos certa empatia.
Dizem que muita gente foi para a frente dos locais de prova para assistir ao espetáculo da desgraça alheia, que ganhou até apelido: o "show dos atrasados". Mas a verdadeira atração ali não eram os candidatos e suas desculpas, boas ou sofríveis, mas os porteiros e fiscais que obedeceram às regras.
Uma cena tão rara que há gente que considere isso um espetáculo.