A Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) abriu uma investigação após calouros do curso de Direito denunciarem um colega por uso indevido das cotas raciais.
Os estudantes alegam que, mesmo com a pele branca, o jovem usou o critério racial para conseguir a vaga.
A universidade confirma que o processo foi aberto no dia 14 de julho, após denúncia na ouvidoria. A apuração tramita em sigilo, e a instituição prefere não se manifestar sobre o caso antes do encerramento da apuração.
Apesar de não ter o nome divulgado pela universidade, o estudante citado no processo foi localizado pela reportagem. Ele justificou que tem familiares negros e que considera justo ganhar a vaga.
- Usei (a vaga por cotas) por afrodescendência mesmo. Eu tenho familiares que têm a pele negra.
Ele também disse que nunca sofreu preconceito:
- Esse negócio de preconceito é relativo. Na minha opinião, tu sofres preconceito se quiser.
O rapaz foi aprovado na turma que ingressa na universidade no segundo semestre, no começo de agosto. O jovem precisou entregar um questionário na UFRGS explicando por que se considera preto ou pardo - ele disse que justificou ser "afrodescendente". O documento adverte que, se um candidato prestar informações falsas, estará sujeito a ter sua matrícula suspensa a qualquer tempo.
A declaração do estudante foi entregue junto com toda a documentação necessária para comprovar os dados dos candidatos no Decordi, o setor da UFRGS responsável pelos alunos. O processo tramita nesse departamento, que deve analisar nos próximos dias os documentos entregues pelo aluno no começo deste ano.
Colega critica: "Ele está tirando a vaga de alguém"
Um grupo de calouros da UFRGS decidiu denunciar o colega após uma estudante descobrir, por acaso, que ele é cotista. Ela acessou o boletim de desempenho para ajudar o colega a verificar a ordem de matrícula.
- Eu fui a primeira pessoa a descobrir isso, não consegui não fazer nada. Sei que ele não é pardo, que os pais dele não são pardos. Ele está tirando a vaga de alguém - afirmou a jovem, que preferiu ter o nome preservado.
A reportagem teve acesso ao teor das denúncias. Em uma delas, uma estudante criticou o que considera falta de controle no acesso ao benefício. "Me revolta saber que uma instituição séria como a UFRGS deixou o candidato entrar por essa cota sem nenhum impedimento. Ora, serve de quê então essa cota se não há um mínimo de controle?", diz o trecho da denúncia na ouvidoria.
De acordo com o Ministério da Educação, cada instituição de ensino tem autonomia para decidir quais procedimentos vai adotar para confirmar as informações fornecidas nas inscrições.
ENTREVISTA
O professor de antropologia José Jorge Carvalho foi um dos responsáveis pela elaboração do sistema de cotas raciais na Universidade de Brasília (UnB), primeira instituição da rede federal a adotar a reserva de vagas, em 2003. Ele defende que as universidades divulguem quem são os cotistas e realizem entrevistas para evitar que "roubem oportunidades dos negros".
O senhor discorda da forma como é aplicada a Lei de Cotas nas universidades?
Antes da Lei de Cotas nós tínhamos a entrevista para os cotistas. Se aparecesse uma pessoa loira, branca, de olhos azuis, como iria encarar uma comissão para dizer que é negra? Depois da lei, ficou só a autodeclaração.
A entrevista evitaria fraudes?
A proposta que eu fiz é o que chamo de uma autodeclaração confrontada, mas isso não foi acatado. A ideia era de que todas as pessoas que se declaram negras fizessem a matrícula juntas, ao mesmo tempo. A universidade não precisa esconder quais são os cotistas. Eu gostaria de saber quem são as pessoas loiras que entram disfarçadamente pelo sistema de cotas e não se apresentam diante de ninguém e fazem um curso roubando a vaga dos negros. Isso seria confrontar, colocar todos juntos no dia da matrícula.
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Mas isso não chegou a ser adotado na UnB?
Não. As universidades não gostam de apresentar quem são os cotistas. Em vez de você usar a política de cotas como um direito, faz com que pareça que existe uma vergonha em ser cotista.
O problema é a autodeclaração?
A autodeclaração está na lei, mas agora com as cotas no serviço público, eu acho que as fraudes podem aumentar. Pelo menos a entrevista com uma banca deveria ser adotada.
Como avaliar quem é cotista?
O racismo é fenotípico, ele se dá pela cor da pele, do cabelo. Não tem nada a ver com a genética, mas vamos ter de voltar a uma discussão jurídica sobre esse assunto.
COMO FUNCIONA A LEI DE COTAS
- A Lei 12.711, de 2012, prevê que até 2016 todas as universidades e institutos federais terão 50% das vagas reservadas a alunos de escolas públicas. No último vestibular da UFRGS, foram 40% de cotistas.
- As vagas são subdivididas por renda familiar (maior ou menor a um salário mínimo e meio). Nos dois casos é levado em conta o critério racial (percentual de pretos, pardos e indígenas, de acordo com o IBGE).
- Segundo a lei, o critério de raça é autodeclaratório, como ocorre no censo demográfico. Não existe regulamentação, portanto, de qualquer tipo de filtro, prova ou verificação para o que constar no documento.
- Das 147 vagas em Direito Noturno na UFRGS, 30 foram destinadas às cotas raciais.
- A UFRGS exige apenas que os estudantes entreguem uma declaração justificando por que se enquadram nas cotas.
- O estudante investigado entrou como cotista racial, com renda familiar maior a 1,5 salário. Ele disse que se autodeclarou "afrodescendente". A média do estudante no vestibular foi de 536,37 pontos. A do último aprovado pelo sistema universal, sem cotas, foi 634,98.