Aluno do primeiro ano de uma escola pública do Paraná, um menino de sete anos afirmou, durante almoço familiar de domingo:
- Quando eu crescer eu quero ser gay, que nem meu professor.
Em um colégio particular de Porto Alegre, um estudante de 12 anos, do sétimo ano, perguntou à professora de ciências:
- Como funciona a mudança de sexo?
Frases como essas, reproduzidas por psicólogos e especialistas ouvidos pela reportagem, indicam que as questões de gênero estão, hoje, no dia a dia escolar de boa parte dos estudantes dos ensinos Fundamental e Médio. Ainda assim, pelo menos oito Estados e o Distrito Federal (DF) suprimiram expressões como "sexualidade", "orientação sexual" e "identidade de gênero" dos seus planos de educação, documentos que traçam metas educacionais para a próxima década e que deveriam ter sido votados pelas Assembleias Legislativas até o dia 26. A exclusão desses trechos é considerada um avanço por entidades religiosas, mas um retrocesso na visão de profissionais de educação.
No limite do prazo, 54% das prefeituras do RS ainda não haviam sancionado seus planos de educação
Até ontem, de acordo com dados do Ministério da Educação (MEC), com base em relatórios enviados pelas administrações estaduais, apenas 13 Estados e o DF haviam aprovado o plano. Desses, cinco mantiveram as referências de gênero: Amapá, Maranhão, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Rondônia. No Rio Grande do Sul, com as galerias do plenário da Assembleia lotadas e sob um clima tenso, os deputados aprovaram o texto sem menções ao tema. Embora a proposta estivesse na proposta original, emendas protocoladas pela base governista, e aprovadas, removeram os termos durante a sessão da terça-feira passada.
- A questão de gênero não tem necessidade de estar em um plano que prevê a educação para os próximos 10 anos -disse o deputado estadual e líder do governo, Alexandre Postal (PMDB).
A opinião do deputado não é consensual.
- Nos últimos 20 anos, o Brasil tem conseguido avançar muito em relação aos direitos sexuais. Mas, agora, estamos dando um passo para trás. Há grupos que não aceitam os diversos modelos de família atual, impondo que voltemos à época das cavernas - afirma a doutora em Educação Margarita Diaz, presidente da ONG Reprolatina, que incentiva a educação sexual no ensino em toda a América Latina.
Está em discussão se abordar assuntos como homossexualidade e transexualidade é ou não uma responsabilidade da escola. Para a psicóloga cristã Marisa Lobo, por exemplo, trazer esses temas para a sala de aula é um "abuso da
liberdade de ensinar".
- Existe um risco de erotizar e doutrinar sexualmente as crianças. O mais grave de tudo é criar os alunos em "gênero neutro", ignorando os aspectos biológicos que determinam que menino é menino e menina é menina. Não é competência do professor ser sexólogo - avalia.
No RS, diretriz prevê respeito aos direitos
Marisa repreende a chamada "ideologia de gênero", uma corrente que sugere que o gênero da criança é construído socialmente com o tempo, independentemente da anatomia sexual:
- Como assim eu nasci homem e não sou homem? Não tem essa de gênero neutro. Uma coisa é respeitar as diferenças e lutar contra o preconceito. Outra é incentivar isso, o que é um perigo, pois cria pessoas cheias de conflitos.
Até maio, nove em cada dez cidades ainda não tinham plano de educação
A Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) preconiza que as escolas tenham nos seus planos pedagógicos temáticas sobre sexualidade.
- Os conceitos de família mudaram. Há famílias com pai e mãe, famílias com mãe e mãe, famílias com pai e pai. Não se pode tapar o sol com a peneira. Os professores não podem ignorar que temos homofobia e machismo dentro das escolas. Devemos levar essas questões aos alunos durante toda a sua vida escolar, em diferentes disciplinas e sob uma abordagem específica para cada faixa etária - diz a coordenadora de Educação da Unesco no Brasil, Rebeca Otero.
O Plano Estadual de Educação do RS acabou sendo aprovado sem a palavra "gênero", mas com uma diretriz que prevê a "promoção dos princípios do respeito aos direitos humanos, à diversidade e à sustentabilidade socioambiental, à orientação sexual, às escolhas religiosas, ao combate ao racismo e todas as formas de preconceito". De acordo com o secretário de Educação Carlos Vieira da Cunha, o consenso final garante que as escolas sejam espaços plurais e democráticos, embora não tenham sido utilizadas as expressões do texto original:
- Lamento que um plano com tantos assuntos importantes tenha se limitado a esse único tema. A sessão durou oito horas e foi samba de uma nota só.
Mais de cem cidades de SC descumprem prazo do Plano Nacional de Educação
Tema ainda é controverso
O tema é tão polêmico que uma escola da Capital, que inicialmente havia concordado em falar sobre um projeto-piloto de discussão da sexualidade na adolescência, acabou desistindo da ideia, pois "a direção achou melhor não retratar o assunto".
Apesar da negativa, o presidente do Sindicato do Ensino Privado do Rio Grande do Sul, Bruno Eizerik, afirma que debater sexualidade e gênero é "reinventar a roda":
- A maioria das escolas já fala sobre isso, mesmo as religiosas. Os alunos começam a trazer perguntas sobre sexo ainda no Ensino Fundamental.
O Colégio João XXIII, de Porto Alegre, por exemplo, tem um programa sobre sexualidade há nove anos. Durante as palestras, os alunos têm dúvidas esclarecidas não só sobre gravidez e doenças, mas também sobre homossexualidade, masturbação e novos conceitos de família.
- Em uma escola heterogênea como a nossa, são temas recorrentes - relata a orientadora educacional, Denise Lopes.
A ausência de menções à sexualidade nos planos de educação não significa que as instituições deverão interromper seus projetos. A diferença é que, se aprovadas, incluir tais questões no conteúdo escolar seria obrigatório, já que os planos não são apenas sugestões: são leis.
- E aí os pais que fossem reclamar poderiam ser chamados de homofóbicos - afirma a psicóloga Marisa Lobo.
Para o secretário de Educação da Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais, Toni Reis, o Brasil enfrenta graves problemas de sexismo, homofobia e violência.
- Para superá-los, é preciso educar para o respeito às pessoas, indiscriminadamente - diz.
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Planos nacional, estaduais e municipais devem estar alinhados
O plano nacional, estaduais e municipais de educação devem estar alinhados, mas os dois últimos não precisam ter as mesmas metas quantitativas definidas para o país. Estados e municípios podem estabelecer suas próprias prioridades e elaborar novas metas que eventualmente não estejam na lei nacional. O importante, de acordo com o MEC, é ampliar ao máximo a oferta e a qualidade do ensino, ajudando o país a atingir as metas nacionais.
Em Porto Alegre, o Plano Municipal de Educação foi aprovado também sem incluir termos como "identidade de gênero" e "orientação sexual". 82% dos municípios gaúchos já sancionaram seus planos.