Enfrentar temperaturas de -30°C, acostumar-se com dias em que jamais escurece e passar tardes cavando poços no meio de uma paisagem gelada foi a rotina de um grupo de quatro gaúchos neste começo de ano.
No dia 5, eles iniciaram a primeira travessia do interior da Antártica capitaneada e integrada exclusivamente por brasileiros. Como parte de uma expedição científica por áreas inexploradas por humanos, percorreram ao longo de 11 dias um total de 1,4 mil quilômetros sobre o manto de gelo da parte ocidental do continente.
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O objetivo foi coletar amostras de neve e gelo, que permitem estudar variações climáticas e atmosféricas dos últimos 300 anos. Liderado pelo professor e diretor do Centro Polar e Climático da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Jefferson Simões, o grupo é formado pelo químico Ronaldo Tomar Bernardo, o doutorando em Geologia Luciano Marquetto, e o engenheiro químico Filipe Lindau.
O custo estimado da expedição é de cerca de R$ 500 mil, valor bancado pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação. No interior da Antártica, onde as condições climáticas são mais severas, apenas nove países realizam pesquisas. Na costa, são 32.
Do acampamento montado na geleira Union, onde realizam o preparo do material coletado, os participantes relataram por e-mail a ZH detalhes sobre o trabalho, a rotina e as dificuldades experimentados.
A rotina: em sincronia com o sol da meia-noite
Só se sabe que é "noite" no interior da Antártica com ajuda do relógio. Conforme explica Simões, nesta época do ano o sol está sempre acima do horizonte. É o conhecido sol da meia-noite, que resulta em semanas sem um minuto de escuridão. Para enfrentar a situação e ter boas noites de sono, os membros da expedição fecham bem as barracas e cronometram o momento de ir para a cama.
O grupo tem despertado por volta das 8h, quando prepara um café reforçado para enfrentar o dia. A partir daí e durante as próximas horas, o foco é no trabalho.
Quando não estão adentrando o continente em caminhonetes, a energia se volta para cavar poços no gelo. Para isso, retiram dos veículos os equipamentos e começam as perfurações, que chegam a 20 metros de profundidade. Ao longo da tarde, a rotina não se altera muito, sendo as únicas pausas dedicadas às as refeições. Tanto no almoço como no jantar, optam por alternar pratos prontos (rações) com congelados, porções grandes de carboidratos e algum tipo de carne. No final do dia, o grupo volta ao acampamento para descansar e recuperar as energias.
A pesquisa: em busca dos mistérios do gelo
A missão do grupo foi perfurar poços e recuperar "testemunhos de gelo", amostras de diferentes camadas de profundidade. Esses testemunhos ajudam a entender como o clima e a química da atmosfera variaram no passado e permitem, pela análise química das amostras de neve e gelo, estimar as variações ambientais naturais e aquelas induzidas pela atividade humana.
As camadas anuais de neve precipitada guardam dezenas de informações, como a temperatura do local, a distância que o vapor d'água viajou atá chegar no ponto de precipitação, sinais de erupções vulcânicas do passado, variações na atividade do sol, desertificação na escala planetária e velocidade dos ventos.
- A missão de nossa travessia é estudar a variação climática atual, dos últimos 300 anos, e como as condições climáticas da Antártica estão associadas àquelas da América do Sul nessa escala de tempo. Tentamos ver se já existem sinais de transporte de poluentes sul-americanos para o interior da Antártica - explica Simões.
O grupo também aproveitou a expedição para realizar medições, marcações e perfurações para a implantação do segundo módulo científico brasileiro no interior da Antártica, a Criosfera 2. A previsão é que o módulo utilizado para estudos climáticos seja instalado no próximo verão, em uma viagem de maior duração.
As dificuldades: 80 quilômetros de quebra-molas
Antes da viagem, os quatro pesquisadores gaúchos estavam procupados com fendas não identificadas por imagens de satélite que poderiam encontrar no caminho. Provocadas pela movimentação das geleiras, essas brechas, que podem alcançar dezenas de metros de profundidade, têm capacidade para engolir os veículos de transporte. Felizmente, nenhuma atrapalhou o trajeto dos pesquisadores. Outros obstáculos, no entanto, surgiram, como a enorme quantidade de "sastruguis perpendiculares à rota":
- Sastruguis são dunas de neve endurecida, formada pela ação do vento. Têm de 20 a 50 centímetros de altura, às vezes mais. Por causa disso, nossa viagem inicial foi como se tivéssemos atravessando um campo de quebra-molas ao longo de 80 km. É enfadonho e cansativo. Pobre da suspensão do veículo - relatou Jefferson.
Além disso, os ventos fortes também trouxeram algumas dificuldades à equipe. Conforme relatos dos pesquisadores, no dia 10 de janeiro, por exemplo, a ventania levou a sensação térmica aos -35ºC. Hipotermia e desidratação são riscos ainda presentes, que os cientistas sabem que poderão enfrentar.
O diário da expedição
Confira trechos do diário de bordo do pesquisador Jefferson Simões:
Sexta-feira, 9 de janeiro
"Por enquanto, o vento tem sido leve (10 a 15 nós), o que permite fazer nosso trabalho sem muito sofrimento, pois ventos mais fortes fazem que a sensação térmica rapidamente despenque para 30 graus negativos ou abaixo, o que torna sofrido qualquer trabalho em área desprotegida."
Sábado, 10 de janeiro
"Uma manhã voltada a finalizar a perfuração de gelo. Atingimos 18 metros de profundidade, o que deve representar cerca de 36 a 40 anos de precipitação. A temperatura manteve-se em 17 graus negativos, mas a sensação térmica caiu a 25 negativos devido ao vento."
Segunda-feira, 12 de janeiro
"Estamos no topo do platô do manto de gelo desta parte da Antártica - o nada branco do meio do nada. Olhando para todos os lados, a imensidão branca se perde no horizonte. Silêncio total, sem vida. A superfície é totalmente plana, o verdadeiro deserto polar, plano sem nenhum ponto de referência. É quase como estivéssemos em outro planeta."
Terça-feira, 13 de janeiro
"Estamos trabalhando dentro da trincheira com temperaturas entre 19 e 20 graus negativos, mas a sensação térmica cai facilmente a -30ºC na superfície desprotegida, o que é evidentemente muito mais doloroso e perigoso.Falando em frio, sempre estamos com as mãos geladas, pois para manejar as amostras de gelo temos que usar luvas finas cobertas por luvas plásticas (evitando-se assim qualquer contaminação das amostras)."
Quarta-feira, 14 de janeiro
"Nossa principal preocupação é a hidratação, assim mantemos sempre uma panela descongelando neve. Desidratação é um problema frequente na exploração polar."
Sexta-feira, 16 de janeiro
"A missão foi de total sucesso. Nos próximos três dias, temos de preparar o transporte dos testemunhos de gelo que seguirá para a Universidade do Maine (EUA) em câmara frigorífica e o material científico e de acampamento que embarcarão em um dos navios da Marinha do Brasil na cidade de Punta Arenas."