Apesar de divulgar uma nota na quinta-feira (9) afirmando que os livros não seriam retirados das bibliotecas, mas, sim, redistribuídos, caiu mal entre especialistas em Literatura e Biblioteconomia o ofício enviado na terça (7) pelo governo de Santa Catarina a escolas estaduais. Na circular, é determinado que nove obras sejam “armazenadas em local não acessível à comunidade escolar”. Na visão de pesquisadores e profissionais das áreas, a listagem de títulos a serem disponibilizados ou não é uma forma de censura que abre um precedente perigoso, e a definição do acervo precisa ser feita a partir de uma política de desenvolvimento de coleções, e não de listas.
O veto a livros não é novidade. Antes mesmo do surgimento da imprensa, ainda no século 15, já havia proibição de determinados títulos como prática do poder. No século 16, o Index Librorum Prohibitorum (em tradução livre, Índice dos Livros Proibidos) era uma lista de publicações consideradas heréticas, anticlericais ou lascivas e proibidas pela Igreja Católica. Com a alfabetização das mulheres e a inserção da literatura nas escolas, a restrição de circulação de obras, autores e temas piorou nos séculos 18 e 19, segundo Regina Zilberman, professora de Literatura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
— Não é uma notícia nova a proibição de circulação de obras, mas onde, atualmente, isso vem se exercendo com mais intensidade, é, efetivamente, nas escolas, sobretudo as estaduais. Tivemos um caso recente em Rondônia, por exemplo, e em outros momentos. É algo frequente e, infelizmente, não se aprende com a história que essa é uma prática fadada ao insucesso — pontua Regina, que considera que o banimento só chama mais a atenção pra as publicações.
Professor da Escola de Humanidades da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), Arthur Telló lembra que, durante a Segunda Guerra Mundial, nazistas fizeram grandes queimas de livros de pensadores judeus, como Sigmund Freud, Arthur Schnitzler e Karl Marx.
— Em quase toda ditadura ou poder repressor que se instala, se começa a perseguição pelas ideias, pelos livros e, mais tarde, às pessoas — resume Telló.
Para a professora da UFRGS, além de ser um ato “abominável”, proibir a circulação de títulos já publicados é uma prática que não dá certo, assim como a censura prévia, como aconteceu no Brasil durante a ditadura militar.
— Uma coisa que o Estado muitas vezes faz é não ensinar a ler. Hoje, com o analfabetismo praticamente erradicado, passa-se à segunda etapa: proibir o que as pessoas querem ler, especialmente os jovens, a partir da noção de que eles não terão maturidade para ler isto ou aquilo. A meu ver, é uma arrematada besteira: a maturidade das pessoas não é medida pelos livros que elas podem ler, e sim pelo interesse delas — defende a docente.
Ministério Público de Santa Catarina vai apurar caso de livros proibidos em escolas.
Reação dos bibliotecários
A categoria de profissionais da biblioteconomia reagiu com críticas ao ofício enviado pelo governo de SC. Em manifestação conjunta, o Conselho Regional de Biblioteconomia da 14ª região, o Conselho Federal de Biblioteconomia, a Associação Catarinense de Bibliotecários e os cursos de graduação em Biblioteconomia da Universidade Federal de Santa Catarina e da Universidade do Estado de Santa Catarina ressaltaram que é preciso adotar uma conduta de “concordância social” em relação à educação, e não de acordo com “interesses individuais, políticos, religiosos e tantos outros que já são garantidos constitucionalmente”.
Há uma fraqueza intelectual em não conseguir conviver com a diferença e a escola, que é um lugar de contato com a diferença. E essa é a riqueza da escola enquanto lugar.
ARTHUR TELLÓ
Professor da Escola de Humanidades da PUCRS
Já a Federação Brasileira de Associações de Bibliotecários, Cientistas da Informação e Instituições (Febab) foi mais enfática: em nota, repudiou o que considera um “ato de censura” por parte de um Estado no qual, nos últimos anos, muitos cargos de bibliotecários escolares foram abertos e ocupados, o que faz com que haja profissionais nesses espaços atuando “com o devido preparo técnico” e que demonstram que a biblioteca “atua muito além da centralidade em suas coleções”. Conforme a entidade, desde 2020 tem ocorrido uma “onda crescente” de atos de censura.
Qualquer biblioteca possui uma política de desenvolvimento de coleções que define quais livros estarão naquele acervo, de acordo com a presidente da Associação Rio-grandense de Bibliotecários (ARB), Cyntia Wessfll. Dentro de uma escola, sempre haverá a preocupação de que a obra seja apropriada para a faixa etária daqueles alunos, por exemplo.
— A gente não vai colocar um livro de terror para uma faixa etária de Educação Infantil e Anos Iniciais. Mas tirar It: A Coisa, de Stephen King, que é um dos principais autores de terror? Se uma criança de 10 anos vier pedir para levar esse livro, a gente pode pedir que o pai venha autorizar, mas um adolescente de 15 anos pode ler. Lembrando que uma biblioteca escola não atende só aos alunos, ela atende toda a sua comunidade — observa Cyntia.
Analisando a temática dos livros listados pelo governo de SC, a bibliotecária enxerga uma censura que mascara uma intolerância religiosa, com a determinação da retirada de circulação de obras como Exorcismo e Coração Satânico. A profissional salienta que um dos critérios usados nas bibliotecas é descartar da política de desenvolvimento de coleções obras que firam os direitos humanos, por não serem adequadas pedagogicamente, mas que esse sistema precisa ser pensado por trabalhadores da área da biblioteconomia, que são habilitados para essa atividade.
— Faria sentido, para mim, vir uma orientação de que não se tivesse livros no acervo que defendessem o nazismo, o abuso, o estupro, a pedofilia, porque isso fere os direitos humanos. Agora, censurar temáticas diferentes? Hoje foram esses, depois, podem questionar livros com personagens LGBTQIA+. O que vem depois? É isso que preocupa — conclui a presidente da ARB.
Formação humana
A professora Betina Schuler, da Escola de Humanidades da Universidade do Vale do Sinos (Unisinos), faz um resgate sobre os assuntos dos livros retirados de circulação: bullying, suicídio, sexualidade, suspense, terror, crítica social distópica e nazismo.
— A minha pergunta é: por que as crianças, os jovens e os adultos não podem ler sobre isso? Não estou dizendo que temos que dar um livro sobre sexualidade para crianças da Educação Infantil, é óbvio que não. Mas me assusta o desconhecimento histórico das pessoas que estão em cargos de gestão. Os contos de fada, por exemplo, vêm de histórias de terror da oralidade. Teríamos que tirar todos os clássicos contos de fada das escolas — salienta Betina.
Faria sentido, para mim, vir uma orientação de que não se tivesse livros no acervo que defendessem o nazismo, o abuso, o estupro, a pedofilia, porque isso fere os direitos humanos. Agora, censurar temáticas diferentes?
CYNTIA WESSFLL
Presidente da Associação Rio-grandense de Bibliotecários
A docente destaca que sentimentos como medo, angústia, sofrimento e morte são questões que, se não forem tratadas na escola por meio da literatura, dificilmente serão abordadas de outra forma.
— Franz Kafka, que é um dos meus autores preferidos, dizia assim: “a literatura faz a gente acessar coisas que dificilmente a gente acessaria de outras formas”. Se a escola é um lugar de formação humana, como a gente vai fazer censura da literatura, que é a forma de a gente acessar isso? — questiona a professora.
Betina pondera, ainda, que a rede estadual, na qual está ocorrendo o banimento dos títulos em Santa Catarina, atende, majoritariamente, crianças mais velhas, dos Anos Finais do Ensino Fundamental, e adolescentes, do Ensino Médio. Portanto, são alunos com uma capacidade de entendimento já mais desenvolvida em relação a questões e sentimentos mais complexos.
Para Arthur Telló, negar obras a crianças, como se isso fosse dar condições para elas se desenvolverem, causa exatamente o oposto:
— A gente tem que dar acesso às crianças a uma variedade de obras para elas poderem construir sua autonomia. Há um narcisismo de pais conservadores e desse tipo de governo, porque eles não querem um filho que encontre alteridade no professor da escola: querem um filho que seja um retrato deles mesmos. Há uma fraqueza intelectual em não conseguir conviver com a diferença e a escola, que é um lugar de contato com a diferença. E essa é a riqueza da escola enquanto lugar.
A docente da Unisinos pede que as famílias parem de achar que “o professor é inimigo”.
— Professor e professora é gente que estuda muito, que entende de leitura, de escrita, de literatura e, principalmente, de formação humana. Deem um voto de confiança, porque são profissionais que estudaram para estar ali. Ao invés de olhar como inimigos, vamos olhar os professores de literatura como uma potência para a formação das crianças na escola. Ainda com esse grande aliado, que é a literatura. Literatura mediada por professor é só potência — defende Betina.
Nota da Secretaria de Estado da Educação de Santa Catarina na íntegra:
A Secretaria de Estado da Educação (SED), por meio da Coordenadoria Regional de Educação de Florianópolis, reforça que não estão sendo retirados livros das bibliotecas das escolas estaduais da região. Apenas alguns dos títulos das bibliotecas das unidades escolares da região estão sendo redistribuídos, buscando melhor adequar as obras literárias às faixas etárias das diferentes modalidades oferecidas na rede estadual de educação. Obras específicas para o público adolescente/adulto tinham sido enviadas pela antiga gestão para escolas com alunos de uma faixa etária menor, como as que apenas têm estudantes do Ensino Fundamental.