A aposentada Irene Maria da Costa Lagranha, 66 anos, conta que sempre foi trabalhadora, mas se surpreendeu quando descobriu que em sua Carteira de Trabalho Digital consta um registro impossível: um emprego com data de admissão três anos antes de ela nascer. Segundo a administradora, a informação é referente ao período em que era funcionária na extinta Companhia Riograndense de Telecomunicações (CRT) e executava a mediação no balcão para cobrança de ligações interurbanas.
— Tinha duas anotações. Uma correta, de que eu trabalhei em 1977, e a outra de 1953, quando eu não tinha nascido. Eu só nasci em 1956, então é impossível eu ter trabalhado — enfatiza.
Irene explica que não teve problemas com o erro porque tinha como comprovar os dados corretos nos documentos físicos. Aposentada desde 2010, ela seguiu trabalhando por mais tempo e comenta que não teve interesse em tentar corrigir a informação por ser "bastante claro que não teria como ter atuado nessa data".
Outras pessoas no Estado também passaram pelo susto de encontrarem dados inusitados no documento digital. GZH recebeu depoimentos de ao menos três pessoas que tiveram a função presidente da República, mesmo em órgãos que não são federais. É o caso da enfermeira Roberta Tavares, 36 anos.
Ela encontrou a inconsistência quando pediu exoneração da Secretaria Estadual da Saúde (SES) há dois anos. Em vez de ter a informação de que trabalhou entre 2007 e 2020 como técnica em enfermagem no Hospital Psiquiátrico São Pedro, em Porto Alegre, o sistema indicou que Roberta atua na pasta no cargo de presidência da República, com início em 2012 e mantendo-se em atividade até hoje.
— Consta ainda em aberto, como se eu ainda exercesse essa função. E para eu assumir o cargo que hoje eu tenho, me gerou o transtorno de ir e vir em vários locais explicando que eu não sou a presidente do Brasil — afirma Roberta, que hoje é responsável técnica de um curso de enfermagem.
Segundo a profissional, sua remuneração como técnica em enfermagem, na época, era cerca R$ 1,7 mil, o que é 18 vezes menor se comparado ao salário atual do presidente do Brasil, que é de R$ 30,9 mil. Roberta relata que buscou o Centro Administrativo do Estado, mas ainda não conseguiu resolver a questão.
GZH entrou em contato com a SES, que era a empregadora na época, mas recebeu como retorno que à pasta "cabe falar sobre gestão estadual de saúde pública" e que "este caso é do cidadão que tem o documento errado e do órgão expedidor".
A professora Cristina Turra Pires, 36 anos, também encontrou a função "presidente da República" no período de 21 de agosto de 2008 a 26 de novembro de 2012. Na ocasião, ela estava vinculada à Secretaria Estadual de Educação (Seduc), como docente contratada.
— Descobri que eu tinha essa função durante esse ano, quando fiz um processo seletivo para uma empresa. Achei bastante curioso e engraçado. Achava que era a única, mas ouvi na rádio que outras pessoas tiveram o mesmo problema — conta Cristina.
GZH questionou o governo do Estado e aguarda retorno sobre o que pode ter ocasionado os erros e se ainda é possível corrigir.
O que fazer?
No site oficial, o Ministério do Trabalho explica que, em contratos de trabalho mais antigos, os erros são mais prováveis de ocorrer devido a possíveis divergências entre o registrado na Carteira de Trabalho de papel e nas bases de dados da época. A pasta ainda orienta que, caso seja identificado algum erro, não é necessário o comparecimento a uma unidade de atendimento, já que os sistemas que geram os dados da Carteira de Trabalho digital são atualizados constantemente e que algumas inconsistências são corrigidas automaticamente. Uma opção é desinstalar o aplicativo e baixar novamente, para verificar se a atualização mais recente já eliminou o dado incorreto.
Em resposta a GZH, o órgão encaminhou uma nota em que explica que os dados são lançados pelos empregadores, a quem o trabalhador deve buscar para pedir a correção. Se a pessoa não localizar o antigo empregador, poderá buscar uma solução por meio do INSS para vínculos a partir de 24 de setembro de 2019. Para vínculos com data anterior, vale o que consta na carteira de trabalho física. Confira o que diz a pasta:
"As anotações na Carteira de Trabalho Digital devem ser realizadas por meio da prestação de informações ao eSocial. Por sua vez, o eSocial deve ser alimentado com as informações relativas aos contratos de trabalho em vigor. O lançamento dessas informações na base do referido sistema é realizado pelo empregador e seus procuradores. Importante ressaltar que não há nenhuma funcionalidade que permita ao Ministério do Trabalho e Previdência efetuar tais lançamentos.
As informações são lançadas pelo empregador e a transmissão das informações são realizadas pelo eSocial ou por meio da Guia de Recolhimento do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço e Informações à Previdência Social – GFIP.
Nos casos em que for identificada a necessidade de ajustes, será necessário que a própria empresa realize a retificação da informação que foi lançada de forma equivocada. Nos casos em que o cidadão não localize mais a empresa, poderá solicitar ao INSS a alteração do CNIS, que automaticamente atualizará a CTPS Digital, mas isso não significa que houve anotação em Carteira de Trabalho para os vínculos anteriores a 24/09/2019, pois, conforme Portaria 1065/2019, as anotações eletrônicas para cumprirem a disposição do artigo 29 da CLT são apenas as ocorridas a partir de 24/09/2019 feitas via eSocial.
É importante destacar que os vínculos anteriores a 24/09/2019 somente aparecem nas anotações da CTPS digital, caso o empregador tenha efetuado a transmissão das informações por meio da GFIP, haja vista a Carteira de Trabalho Digital, apenas a título de informação ao empregado, reflete as informações históricas do CNIS, mesmo não sendo informações da própria Carteira de Trabalho Digital.
Para vínculos anteriores a 24/09/2019, o que vale são as anotações da Carteira de Trabalho e Previdência Social (Física). Dessa forma, em hipótese nenhuma deverá desfazer do documento físico, preservando as anotações, no caso em que o INSS possa solicitar no momento em que o cidadão for requerer algum benefício junto ao Instituto".