É dever das empresas acolher e dar encaminhamento a denúncias de assédio sexual no trabalho, como as que derrubaram o presidente da Caixa Econômica Federal, Pedro Guimarães. Isso porque é do empregador a responsabilidade de manter um ambiente seguro e saudável para seus funcionários, segundo especialistas em direito trabalhista ouvidas por GZH.
O primeiro passo para construir esse ambiente seguro é investir na educação dos funcionários, oferecendo uma série de atividades sobre igualdade de gênero, como campanhas e rodas de conversa. Outro ponto importante é criar um canal de ética que receba as denúncias de assédio sexual e moral, mas que seja sólido e dê encaminhamento às reclamações — no caso da Caixa, uma investigação apura se houve tentativa de abafamento das acusações envolvendo Guimarães.
Canal para denúncias
É por meio de um serviço preparado para ouvir as queixas e investigá-las que a empresa terá conhecimento da qualidade das relações que são travadas ali, diz a professora de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) Denise Fincato, que pesquisa relações de trabalho e também é advogada corporativa.
— O empregador deve ter vigilância sobre as relações que acontecem no trabalho, e essa vigilância pressupõe ter canais para receber as informações, onde se garanta a proteção do denunciante. A empresa tem que ter uma estrutura de investigação segura. Não dá para receber a denúncia identificando a vítima, nem mesmo o agressor. Tem que ser em sigilo, para preservar todos os envolvidos — observa.
Para que o canal de ética ganhe confiança na empresa, seus integrantes precisam ter tato e preparo para lidar com questões de gênero. Na maioria dos casos, as vítimas de assédio sexual são mulheres, que, por sua vez, sentem medo de serem apontadas como culpadas, observa a juíza do trabalho Mariana Piccoli Lerina, que coordena o Comitê de Equidade de Gênero, Raça e Diversidade do Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região (TRT-RS).
— Há uma dificuldade grande para as mulheres levarem as denúncias para frente, porque elas são responsabilizadas pelo assédio, são questionadas sobre sua conduta. Para integrar o canal de ética, a equipe precisa ter compreensão do que é machismo estrutural, que assédio sexual é violência de gênero. Isso dá robustez para que os integrantes recebam as denúncias e deem voz à vítima. E é necessário coragem, porque é um incômodo trabalhar com esses temas nas empresas — diz.
O mais indicado é que o canal de ética seja formado por quem ocupa cargos de gestões em setores como Recursos Humanos (RH), departamento jurídico e compliance — a parte que zela para que leis e normas sejam cumpridas. Mas nem toda instituição tem estrutura para uma equipe desse tamanho, observa a professora de Direito. Em muitos casos, a figura que recebe as denúncias acaba sendo o próprio dono da empresa, o que exigirá, ao menos, que tenha assessoramento jurídico.
A equipe do canal de ética precisa ter compreensão do que é machismo estrutural, que assédio sexual é violência de gênero. E coragem, porque é um incômodo trabalhar com esses temas nas empresas
JUÍZA MARIANA PICCOLI LERINA, DO TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO DA 4ª REGIÃO (TRT-RS)
Agora, se o assediador for o próprio empregador ou outra pessoa em cargo de poder, como Guimarães, cargo indicado pelo presidente Jair Bolsonaro para assumir a chefia da Caixa, fica mais difícil que uma denúncia de assédio seja destrinchada.
Por isso, é importante que as pessoas indicadas para esse serviço tenham independência para agir, diz a juíza:
— Quando o assediador é a autoridade máxima, as pessoas que trabalham nos canais de ética têm que ter independência funcional, para que não tenham seus cargos comprometidos. Nas instituições públicas, é mais tranquilo, porque os funcionários têm estabilidade, mas na iniciativa privada, é mais complexo.
Diante de qualquer constrangimento para dar solução a um caso de assédio no ambiente de trabalho, é possível acionar o serviço anônimo do Ministério Público do Trabalho (MPT), por meio desse link.
Além do canal para denúncias, também é fundamental que a empresa tome uma atitude se o crime for comprovado, desligando o funcionário por justa causa, se for uma instituição privada, ou exonerando-o, no caso do serviço público. Se a denúncia chegar ao judiciário, a empresa será responsabilizada em primeiro lugar, justamente porque é do empregador a missão de garantir que o ambiente de trabalho seja equilibrado.
— Há uma regra do Direito Civil que diz que o empregador é responsável pelos atos de seus empregados, e que é dever da empresa manter um ambiente de trabalho saudável e seguro. Por isso, quando há uma quebra nesse ambiente seguro, o empregador é o responsável — reforça a magistrada.
A empresa poderá pagar pelos danos causados à vítima mesmo que o assédio tenha sido praticado por um funcionário.
— Mesmo que o assédio tenha sido praticado por um funcionário, é a empresa que será chamada e vai, em um primeiro momento, pagar por danos morais. É ela que vai reparar o dano do assediado. Mas o assediador não passa impune. . Além de responder criminalmente pelo que fez, ele pode até ter que ressarcir a empresa — explica Denise.
Prevenção
Para evitar que se chegue a esse ponto, o caminho é um só: investir na conscientização de todos os colaboradores e na consolidação de um canal de ética cuja liberdade para atuar seja notória. Até porque qualquer caso de assédio provoca grande desgaste na reputação de uma empresa, tornando difícil recuperar a boa imagem diante da sociedade.
— Tem que trabalhar de forma antecipada porque o dano ali na frente é gigante. Gera um efeito cascata, com as pessoas dizendo: "Ah, não vou mais trabalhar lá porque é um lugar de assediador". Isso tem impacto na valoração da empresa no mercado de capitais, já que teremos uma empresa descumpridora de normas básicas de relacionamento. Foi o que aconteceu com o Carrefour no caso do homem negro que foi espancado pelos seguranças em Porto Alegre — alerta Fincato.