Atacar, enfraquecer e até proibir a educação sexual e de gênero no Brasil. Relatório divulgado nesta quinta-feira (12) pela organização não governamental (ONG) Human Rights Watch (HRW) destaca o grande número de investidas dos poderes legislativos municipais e estaduais, além da atuação de autoridades, contra escolas e professores de instituições públicas. A HRW tem sede nos Estados Unidos e trabalha em mais de 90 países, promovendo e defendendo os direitos humanos.
Intitulado “‘Tenho medo, esse era o objetivo deles’: esforços para proibir a educação sobre gênero e sexualidade no Brasil” compõe um amplo panorama da situação nacional, analisando 217 projetos de lei apresentados e leis aprovadas no período de 2014 a 2022. De acordo com a HRW, há um “esforço político para desacreditar e restringir a educação sobre gênero e sexualidade, reforçada pelo governo do presidente Jair Bolsonaro, que tem, pessoalmente, amplificado essa mensagem para fins políticos”.
Cristian González Cabrera, pesquisador do Programa de Direitos das Pessoas LGBT da HRW e principal autor do estudo, compilou relatos e informações referentes a 23 Estados. Os depoimentos de professores que vivem em oito deles embasam a maior parte do levantamento: Alagoas, Minas Gerais, Paraíba, Paraná, Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro, São Paulo e Santa Catarina.
Também participaram especialistas em educação, representantes de secretarias estaduais de educação e organizações da sociedade civil. A seleção dos entrevistados se deu com o auxílio de advogados de direitos humanos, organizações de educação e grupos LGBTQIA+. O período de coleta de dados se estendeu, essencialmente, de janeiro de 2020 a outubro de 2021.
A principal conclusão a partir da escuta dos docentes é de que há medo e hesitação para abordar conteúdos que tratem desses temas em sala de aula. Professores contaram sofrer assédio, enfrentar processos administrativos e até receber intimações para comparecer perante a polícia.
“Pare com a doutrinação dos alunos! Deixamos passar em 2019! Professores como vc deve [sic] morrer! Estamos de olho! Um aviso só!”, dizia o e-mail anônimo recebido por Alan Rodrigues, do Rio de Janeiro, depois de organizar, com seus estudantes, uma campanha contra a violência sexual.
Virginia Ferreira, professora em Vinhedo (SP), foi ameaçada devido à realização de um projeto sobre patriarcado, origens do feminismo e do racismo no contexto brasileiro, marcando a passagem do Dia Internacional da Mulher. Virou alvo de postagens do Movimento Brasil Livre (MBL) no Facebook, acusada de “doutrinação”.
— Algumas das ameaças feitas eram pedindo uma punição exemplar. Aqui, entendi que as ameaças eram sobre demissão. Em um dos posts, havia um comentário (dizendo) que eu merecia um soco na cara. Vi muita violência psicológica e moral, tentando desacreditar meu trabalho — contou Virginia à ONG, acrescentando ter pedido à Secretaria Municipal de Educação declarações públicas apoiando as aulas sobre os direitos das mulheres, o que não ocorreu.
Em coletiva de imprensa virtual promovida na manhã desta quinta pela HRW, Cabrera destacou o impacto danoso do conteúdo dos discursos de Bolsonaro.
— O governo e seus ministros têm propagado desinformação. Quando o presidente ainda estava no Congresso, já tinha obsessão por esse tema. Obviamente, essas palavras têm tido impacto muito maior desde 2019, quando ele virou presidente — observou o pesquisador. — O Brasil tem um nível preocupante de violência contra mulheres e pessoas LGBTQIA+, e essa informação (sobre gênero e sexualidade) é especialmente necessária. Bolsonaro demonstra pouco apreço às regras do estado democrático de direito — complementou.
Denise Carreira, coordenadora da Ação Educativa, organização da sociedade civil em defesa do direito à educação no país, presente na coletiva da HRW, alertou para o “pânico moral” gerado a partir da “manipulação do discurso da proteção da infância e da família”, turbinada no contexto eleitoral:
— Esses grupos se utilizam de estratégias de desinformação, distribuição de fake news, perseguição do professorado, interdição de debates e da visão crítica da história brasileira. Manipulam para gerar um ambiente de medo e insegurança. A grande conquista desses movimentos tem sido a autocensura. É tanto medo, tanta insegurança, que projetos e políticas públicas foram descontinuados. Profissionais de educação cortaram conteúdos. Nosso desafio, neste momento, é afirmar que um componente fundamental na educação é a igualdade de gênero, raça e sexualidade.
Professor da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Fernando Seffner falou, no relatório, sobre os efeitos dos comentários do presidente da República sobre os educadores.
— Suas declarações estimulam quem pensa como ele a intimidar professores vistos como inimigos. A repetição sem fim de acusações sem provas (cartilhas ensinando a mudar o sexo das crianças, por exemplo, sem nunca ter mostrado tal cartilha) cria um clima de possibilidade de intimidação — observou Seffner.
Os convidados da HRW na transmissão ao vivo destacaram o papel do Supremo Tribunal Federal (STF), considerado fundamental como órgão de contenção ao proferir “decisões históricas” e derrubar leis, ainda que a ofensiva parlamentar continue sendo muito ativa.
— Essa educação, protegida pela legislação brasileira, é importante e necessária para os estudantes — frisou Cabrera.
Seffner, no texto divulgado pela HRW, também mencionou a mais alta instância jurídica do país:
— Ações do STF indicam que, se você for processado, poderá ganhar a causa contra os movimentos de “ideologia de gênero”. Mas não chegam a eliminar o medo de abordagem dos temas.
A íntegra do relatório “‘Tenho medo, esse era o objetivo deles’: esforços para proibir a educação sobre gênero e sexualidade no Brasil”, com 77 páginas, pode ser conferida neste link.