Ela foi uma aluna com a qual muitos vão se identificar: estudou em escola pública, em salas de aula lotadas, em que o professor não conseguia dar atenção para todos ou mesmo corrigir o tema de casa de cada um. Era desmotivada e achava que não teria condições de prestar vestibular em uma universidade federal.
Guilhermina Abreu só foi enxergar oportunidades ao participar de um projeto social em uma atividade realizada pelo Sebrae no contraturno escolar. Percebeu que o horizonte da maioria dos estudantes brasileiros era menos vasto justamente pelas limitações do ensino público no país.
Ao lado de colegas, fundou a Embaixadores da Educação, em Belo Horizonte, ONG por trás do Crie o Impossível, destinado a encorajar estudantes de escolas públicas a não desistirem de um futuro promissor — a quarta edição do evento será transmitida para todo o Brasil na próxima sexta-feira (3), a partir do Beira-Rio, em Porto Alegre.
Aos 28 anos e hoje uma empreendedora social, Guilhermina entende que a transformação da educação depende do engajamento de toda a sociedade, inclusive para cobrar dos políticos que a pauta seja prioridade em Brasília.
O que motivou vocês a criarem a ONG Embaixadores da Educação?
Nós estudamos a vida toda em escola pública. Quando estávamos no terceiro ano do Ensino Médio, participamos de um projeto do Sebrae, que era uma escola de empreendedorismo no contraturno escolar. Chamava Núcleo de Empreendedorismo Juvenil e foi um projeto muito transformador nas nossas vidas. A partir de uma oportunidade, mil outras oportunidades se abriram. Era um grupo de ex-alunos de escolas públicas que queriam discutir como multiplicar essas oportunidades para outros alunos. Na época, era apenas um coletivo, não tínhamos a intenção de fundar uma ONG. Estávamos chateados com a educação brasileira. A gente achava que não tinha acessado oportunidades e queríamos garantir oportunidades para mais pessoas.
Além do Crie o Impossível, o que a ONG faz?
Nossa missão é dar oportunidades a alunos de escolas públicas e fazer deles transformadores sociais, além de empreendedores. A gente tem dois programas principais. Um é o evento Crie o Impossível, que tem o objetivo de ser o dia mais inspirador na vida do aluno, quando ele vai ouvir diversas pessoas. Depois, temos o Empower, que é um programa no qual os alunos são acompanhados pelo ano inteiro e têm que escolher problemas da comunidade ou da escola onde estudam e, a partir daí, criar projetos apresentando soluções. Enquanto (os estudantes) executam esse projeto, fazemos o acompanhamento. E os alunos que comprovam o impacto de seus projetos ganham bolsa integral de estudo.
Na escola particular, os professores tinham tempo para dar aula e corrigir as tarefas. Na escola pública, o professor tinha que dar aula de manhã, à tarde e à noite."
GUILHERMINA ABREU
Aponta diferenças entre o ensino público e o privado
Até os oito anos, você foi aluna de escola particular e, depois, mudou-se para uma escola pública. Que diferenças conseguiu perceber?
Na escola particular, os professores tinham tempo para dar aula e corrigir as tarefas. Na escola pública, o professor tinha que dar aula de manhã, à tarde e à noite, então ele chegava na sala muito exausto, porque precisava cumprir várias jornadas. Outra diferença que notei: na escola pública, minha sala tinha 40, 50 alunos. Na particular, tinha 20. Era muito cansativo para o professor de escola pública. Eles ficavam sem voz. Lembro de notar uma jornada muito exaustiva para o professor, turmas muito cheias. No meu primeiro dia de aula na escola pública, fiz a lição de casa. No dia seguinte, cheguei na sala e ninguém tinha feito. O professor estava corrigindo as questões no quadro. Depois fui entender que, para o professor, era impossível corrigir lições de casa de três turmas. Então, pensei: "Eu não preciso mais fazer o deve de casa". Da quarta série do Ensino Fundamental ao terceiro ano do Ensino Médio, nunca mais fiz dever de casa. Os professores corrigiam as lições de casa no quadro, mas não conseguiam corrigir individualmente. Eles não checavam tema por tema. Mas não posso culpá-los: era muita gente. A partir do momento em que nossas tarefas não eram checadas, a gente perdia o medo de ser punido. Na escola privada, corrigiam individualmente, mas o professor só tinha que dar aula de manhã e tinha tempo para corrigir as lições de casa. O professor de escola pública tinha que sair da aula e ir para outra. Que horas ele ia corrigir dever de casa? Então descobri que não precisava fazer dever de casa. Outra coisa: na escola pública, muitos dos meus colegas eram analfabetos funcionais. Sabiam ler, mas muito mal, e escreviam muito mal. Tinham dificuldade de interpretar. E isso me assustou. Na escola particular, aprendi a ler e a escrever muito bem na primeira série. Isso não é apenas uma diferença, é um abismo. E olha que minha escola pública era considerada boa. Então, imagina o que é uma ruim? E não dá para responsabilizar o professor ou o diretor, porque quando você tem 50 alunos na sala de aula, é muito difícil promover alfabetização de cada um. É um abismo, e é o que mostra o Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa). Os alunos não atingem o mínimo de aprendizado em matemática, isso em funções básicas: somar, multiplicar, subtrair.
Ainda que a gente eleja um presidente ou uma presidenta maravilhosa, que melhora a economia, gera empregos... ainda assim, a maioria dos nossos alunos não sabe interpretar texto
GUILHERMINA ABREU
Você disse que era uma aluna muito desanimada. O que te deixava para baixo?
Não fui uma referência de aluna. Eu dormia, em todas as aulas, da quinta série até o terceiro ano do Ensino Médio. Eu tinha dificuldade em prestar atenção. Cheguei no fim do Ensino Médio sem perspectivas. Não via na escola condição de me preparar para o vestibular em uma universidade federal. Pensava: "O que vou fazer? Como vou arrumar um emprego? Não tenho chance de passar na faculdade". A realidade é que o acesso às universidades federais, mesmo se você se esforçar, é difícil. Na minha época, ainda não tinham cotas para estudantes de escola pública. Quando você é pobre, você fica desesperado, porque você tem que se bancar, não tem pai nem mãe. A maioria dos meus colegas pensava igual. Ninguém ali botava fé que iria passar em uma universidade federal. Voltei a sonhar quando participei daquele projeto social.
Teus pais têm uma história bonita de superação. Os dois eram surdos e, mesmo assim, estudaram. O teu pai só foi para a escola aos 10 anos, conseguiu bolsa nos Estados Unidos e virou referência na aprendizagem de surdos. Imagino que eles te incentivavam a estudar.
Meus pais batalharam muito. O meu pai não estudou até os 10 anos. Aos 18 anos, ele foi estudar em uma universidade americana de surdos, volta para o Brasil e lidera a luta que ajudou a sistematizar a Língua Brasileira de Sinais (Libras). Eu nasci em um contexto em que eles não tinham dinheiro, mas eles sabiam a importância dos estudos. Estudei em uma escola particular porque minha mãe foi lá, chorou, pediu bolsa. Depois, ela implorou uma vaga para mim em uma escola pública considerada muito boa. Eles lutaram pela minha educação com as armas que eles tinham. Mas a verdade é que, para quem não tem dinheiro, as armas são muito poucas. Por isso, toda a sociedade tem que abraçar a escola pública. Só os pais, só o governo, não vão dar conta.
Muitos jovens não têm essa referência que você teve. Como estimular eles a se aprimorarem?
De fato, às vezes, faltam bons exemplos. O Crie o Impossível nasce nesse sentido: mostrar exemplos de diferentes pessoas, sejam empreendedores, cientistas, executivos, artistas que vieram da mesma realidade que eles. A Lisiane Lemos (gaúcha, executiva do Google, palestrante e engajada em mobilizações de combate ao racismo e sexismo), aqui de Pelotas, que foi uma speaker do Crie o Impossível em 2020, fala uma frase que resume isso: "A gente não sonha com o que a gente não vê". Como a gente espera que as pessoas sonhem com o ensino superior se elas não veem ninguém acessando o ensino superior?
Se não for uma missão do governo melhorar a educação pública, de quem mais será?
O governo está envolvido há anos e os resultados estão aí. Não é que o governo não tenha que se envolver, mas, sozinho, não vai dar conta, nem os pais, porque os pais estão na luta para tentar colocar comida em casa. Tem que ser um grande movimento da sociedade. Isso inclui os governos, as famílias, as empresas, as ONGs e os cidadãos. Todos têm que abraçar a escola pública. A gente discute os problemas do Brasil, a política, o presidente, mas a maioria dos estudantes da educação pública está em escolas que não entregam o mínimo de aprendizagem. Ainda que a gente eleja um presidente ou uma presidenta maravilhosa, que melhora a economia, gera empregos... Ainda assim, a maioria dos nossos alunos não sabe interpretar texto. Não adianta a economia decolar, se não sabemos interpretar texto. Não temos a base, que é a educação.
Como as pessoas podem contribuir para mudar a realidade da educação brasileira?
Tem uma escola pública perto de todo mundo. Qualquer pessoa pode se envolver com uma escola pública, ajudar. Todo mundo também conhece um estudante de escola pública. Também dá para ajudá-lo. Esses são os jeitos mais simples. Um jeito indireto é apoiando as organizações que apoiam as escolas públicas. Dá para cobrar os políticos, pedindo que priorizem a pauta da educação.
Muitas famílias, até as que não têm muito dinheiro, fazem um esforço para colocar o filho em uma escola particular. E isso acaba gerando um abandono da escola pública. Não seria interessante que as famílias insistissem na escola pública?
Seria, mas é difícil pedir para um pai colocar seu filho na escola pública, arriscando o aprendizado dele, em nome de um bem maior. Os pais querem o melhor para os seus filhos - se puderem se apertar financeiramente para colocar na particular, vão se apertar. Ainda assim, é uma minoria dos estudantes brasileiros que está em escolas particulares. A maioria está em escola pública.
Sempre que a gente fala em sucesso, parece que falamos do advogado, do médico, do cientista. O Crie o Impossível traz uma diversidade de palestrantes.
A Boca Rosa não vai falar nada de influência digital ou do BBB, mas como criou um negócio de maquiagem que fatura R$ 120 milhões por ano. O Tinga não vai falar sobre futebol, vai falar sobre empreender. A Ramana Borba vai falar sobre como teve que estudar muita dança para se tornar uma dançarina profissional. Não existe o sonho certo. Você não tem que ser o cientista, o programador ou o influenciador. Você tem que acreditar, correr atrás e se esforçar.
A lei de cotas garante metade das vagas nas instituições para estudantes de escolas públicas. Mas muita gente é contra, apelando para o conceito de meritocracia. O que você acha?
A meritocracia só será real quando as pessoas estiverem disputando nas mesmas condições. Se eu colocar uma pessoa para correr sem tênis, sem treinador, desnutrida, e botar outra pessoa para correr com um tênis bom, blusa boa, depois de ter se preparado com o melhor treinador do Brasil, além de nutrida, e essa pessoa ganhar e a gente achar que ela teve mais mérito do que a outra por isso, é ilógico. Não posso esperar que um aluno de uma escola pública tenha o mesmo resultado que um aluno de escola particular. Eles correm em condições completamente diferentes. A meritocracia só será real quando as pessoas saírem do mesmo ponto de partida e com as mesmas condições. Visitei Harvard (renomada universidade norte-americana). Sabe como se ingressa em Harvard? Tem três jeitos. Ou você é um gênio, ou você tem uma história de inspiração muito boa ou você tem um sobrenome importante de alguém que financiou uma biblioteca. Política afirmativa injusta é isso: usar o critério do sobrenome para decidir quem vai para as melhores universidades do mundo. Falar que um menino de escola pública não teve mérito porque ingressou em uma federal por cota está errado. Ele teve mais mérito que todo mundo. E mesmo com cota, ainda assim é muito difícil entrar em uma federal. Levando em consideração que a maioria dos estudantes está em escola pública, a quantidade de pessoas para competir por uma vaga na federal, mesmo pela cota, é enorme. Ninguém está abrindo a porteira e dizendo: "Entra aí que você é de escola pública". Quando você entende que alunos de escolas públicas se esforçam, mas sem os mesmos equipamentos e possibilidades de alunos de escolas particulares, o mérito mesmo é do aluno de escola pública.
Depois de assistir ao Crie o Impossível, o aluno é convidado a criar um projeto social dentro do Empower. Como o envolvimento com um problema da sociedade ajuda um estudante a se desenvolver?
As principais habilidades para o século 21, segundo o Fórum Econômico Mundial, que vão gerar empregabilidade, são competências empreendedoras. São habilidades como identificar problemas, criar soluções, executar, ser criativo. Em educação, também se estimula os estudantes a resolverem problemas. Na perspectiva dos Embaixadores da Educação, nada melhor do que ensinar um aluno a resolver um problema de verdade. E nada melhor do que engajar o aluno a ser protagonista da mudança na sua escola e na sua comunidade, para que ele consiga se ver como um ator importante de seu futuro. Se ele conseguir resolver um problema da sua escola, será que não consegue dar um passo maior em direção ao que deseja? Qualquer empresa vai querer contratar um aluno que consegue resolver um grande problema e liderar um projeto na sua escola.
Parece que a mensagem é a de que sucesso também é exercer a cidadania.
Exato. Hoje, no Brasil, há uma série de instituições que dão bolsas para os alunos e questionam: como você vai fazer para devolver o impacto dessa bolsa para a comunidade? É o que os americanos chamam de give back. A ideia é que o aluno veja a importância que pode exercer em seu meio. Não precisa virar empreendedor social, como a gente virou. Pode abrir negócio, ser jornalista, trabalhar dentro de empresa, mas será uma pessoa com outro nível de consciência. O olhar diante do mundo muda quando a gente enxerga o problema, debate o problema e se envolve para resolver o problema. Não acho que deputados, vereadores e prefeitos vão mudar o Brasil. E se cada aluno fizer a mudança na sua escola? Ou vamos esperar o MEC (Ministério da Educação), daqui a milhões de anos, mudar?