O ensino de tempo integral é realidade em muitos países. Em filmes norte-americanos, é comum assistir histórias que se passam em escolas, com crianças e adolescentes almoçando no local e tendo aulas de diferentes áreas. O mesmo acontece em lugares como Reino Unido, Canadá, Alemanha e França, que figuram no topo de rankings de qualidade educacional e têm carga horária de sete a 10 horas diárias no Ensino Médio. Já no Brasil, o tempo é de quatro horas/aula por dia, mas a meta prevista em lei é ampliar para sete em pelo menos 50% das instituições de ensino até 2024. A implementação do modelo, contudo, passa por problemas como falta de investimento e resistência interna das escolas.
Responsável pela maioria das escolas públicas de Ensino Médio, a rede estadual do Rio Grande do Sul oferece ensino de tempo integral em menos de duas em cada 100 instituições que atendem essa etapa: no total, são 17 colégios com a modalidade, dos 1.090 de todo o Estado. O número é ainda menor do que em 2019, quando eram 21 – desde lá, seis desistiram do formato, mas duas novas o adotaram.
Estudioso do tema, o professor Éder Silveira, da Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc), analisou os motivos que levaram quatro escolas de Canoas a não aderirem ao ensino de tempo integral e uma quinta aderir, mas, depois, desistir da implementação. Em seu estudo, o pesquisador identificou que as escolas se sentiam induzidas a aderir ao modelo, diante da promessa de grandes verbas para reformas em suas estruturas.
Entre os motivos para as escolas não aceitarem a ampliação da carga horária, Silveira pontua alguns: os professores entenderam o modelo proposto em apresentações às instituições de ensino, chamado Escola da Escolha, idealizado pelo Instituto de Corresponsabilidade pela Educação (ICE), como uma forma de privatização da escola pública, e não sentiram que a comunidade escolar participou do processo de indicação da instituição. Também temiam interferências na gestão administrativa e pedagógica por parte do ICE, ainda que não haja uma parceria formalmente estabelecida entre a entidade e a Secretaria Estadual da Educação (Seduc), e, principalmente, a evasão de alunos que já trabalhavam.
— Em vez de ser uma política que produz mais inclusão e melhorias de forma geral, acaba gerando exclusão, porque muitos alunos acabam tendo que sair dessas escolas de tempo integral, porque essa política não é para todos — destaca o professor, sugerindo que sejam criados incentivos, como bolsas de estudos, para os estudantes dessa modalidade.
Apesar do baixo número de escolas com tempo integral na sua rede, a própria secretária estadual de Educação, Raquel Teixeira, é publicamente defensora da modalidade. A gestora, que, enquanto secretária da pasta em Goiás, implementou um período letivo de 10 horas diárias e oferecia bolsas de R$ 100 aos estudantes, defende que a ampliação da jornada envolva disciplinas curriculares em todos os horários, e não o formato de oficinas no contraturno. Para ela, a falta do tempo integral traz desvantagem para o aluno brasileiro, em relação ao de outros países.
— É claro que, quando nossos alunos fazem um teste internacional como o Pisa (Programa Internacional de Avaliação de Estudantes), no qual tem alunos de 15 anos do mundo todo, eles entram em profunda desvantagem, porque têm menos tempo de contato com as disciplinas. Expandir as horas aumenta a oportunidade de expansão intelectual — defende Raquel.
O impasse, entretanto, é o alto custo dessas escolas, uma vez que o espaço precisa ser maior, pois as turmas passam a não ter mais divisão por turno e os estudantes de Ensino Médio fazem três refeições diárias na instituição. A falta de recursos estaduais com essa finalidade e a desaceleração do financiamento federal, que existia por meio da Política de Fomento à Implementação de Escolas de Ensino Médio em Tempo Integral, tornam o tempo integral um sonho distante no horizonte.
— Quando a reforma no Ensino Médio foi aprovada, a ideia era que todo o Ensino Médio funcionasse em tempo integral, mas, em 2019, com a mudança de governo, esse dinheiro foi retirado. Estados como São Paulo e Pernambuco estão ampliando com recursos estaduais, mas o Rio Grande do Sul está apenas começando a querer sair de uma crise fiscal tremenda — avalia a secretária.
Infraestrutura e autonomia para o tempo integral
O professor Éder Silveira defende que, para além de modelos pré-estabelecidos, seja oferecida infraestrutura e autonomia para que as escolas definam seus processos político-pedagógicos durante a implementação do tempo integral. Hoje, além das disciplinas regulares, as escolas de Ensino Médio com carga horária ampliada contam com quatro áreas de conhecimento a mais no seu currículo: Projeto de Vida, Projeto de Pesquisa, Cultura Juvenil e Estudo Orientado
Coordenadora do Grupo de Estudos em Políticas Públicas para o Ensino Médio (Geppem) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), a professora Patrícia Marchand relata que a implementação do tempo integral no Ensino Médio está atrelada à reforma prevista para se tornar realidade a partir do ano que vem em todo o Brasil. Nessa mudança, haverá ampliação da carga horária de Língua Portuguesa e Matemática, e a Língua Inglesa deverá ser componente obrigatório. A oferta das outras disciplinas dependerá dos itinerários formativos proporcionados pela escola e escolhidos pelos estudantes.
— A ampliação da carga horária não necessariamente leva a um melhor processo de ensino aprendizagem, o que requer melhor formação, materiais pedagógicos e infraestrutura adequada. No formato atualmente previsto, não estamos falando de uma proposta inovadora de integração de áreas de conhecimento — salienta a professora da UFRGS.
Patrícia e seu grupo defendem que a ampliação da carga horária ocorra de forma vinculada a um currículo integrado, que trabalhe diferentes aspectos da interdisciplinaridade e vise o aprofundamento da pesquisa e dos interesses dos alunos – o que o Geppem considera que não ocorre com a mudança proposta. Apesar das críticas, a docente elogia o trabalho desempenhado por algumas escolas que, hoje, possuem tempo integral:
— Temos muitos professores qualificados e gestores magníficos que conseguem, por seu esforço, ter trabalhos notáveis, mas infelizmente isso vai muito mais pelo esforço desses profissionais do que pelas condições oferecidas pelo poder público.
Investimento no protagonismo dos alunos
Das 17 escolas que contam com Ensino Médio em tempo integral na rede estadual gaúcha, nove se localizam na Região Metropolitana. Em Alvorada, a única instituição a contar com a modalidade é a Escola Estadual Salgado Filho, que iniciou a experiência em 2018. Em meio a desafios, como divulgar o colégio e organizar os horários dos estudantes para o dia inteiro, o diretor Leandro Gomes, que, antes, era contrário à mudança, hoje acredita que o formato é fundamental.
— Com o passar do tempo, eu percebi o quanto é importante essa modalidade de ensino. Para quem precisa trabalhar, há outras escolas regulares do mesmo nível, mas oferecer alimentação, oficinas de música, esportes, robótica, só a nossa oferece, e os alunos foram se aproximando da escola por isso — afirma o diretor.
Em 2019, quando Gomes assumiu a direção, a escola tinha 850 alunos, sendo 120 em tempo integral. Hoje, após um trabalho de divulgação da instituição e dos benefícios do tempo integral, são 1,3 mil no total, sendo 370 com a carga horária ampliada. A estratégia foi fazer parcerias com escolas municipais, para que os adolescentes de Alvorada fossem ao Salgado Filho conhecer o trabalho. Ao verem a infraestrutura, que conta com laboratórios de informática e ciências, sala de recursos, quadras reformadas e Wi-Fi e ar-condicionado em todas as salas, muitos escolhem o colégio, segundo o diretor.
— Acreditamos muito nas parcerias, seja com a iniciativa privada ou com o setor público. Somos vitrine do tempo integral, de certa forma, e não podemos errar, mas o nosso trabalho, com o tempo integral, foi muito aprimorado — assegura Gomes.
Muitos estudantes da periferia, de acordo com o diretor, são atraídos à escola pela garantia de três refeições diárias – café da manhã, almoço e lanche da tarde. Ele, porém, defende que o diferencial está na relação de confiança entre instituição e alunos, baseada, também, em proporcionar mais autonomia às turmas. Lá, bandas são criadas e times são formados por decisão dos próprios alunos, que podem usar o espaço da escola para treinar seus conhecimentos, com supervisão dos professores
— O protagonismo do aluno é fundamental para que esse trabalho dê certo. Não adianta ele ficar todo esse tempo na escola, se não participar da criação da sua aprendizagem — resume o gestor, que planeja ampliar o tempo integral também para o Ensino Fundamental.
Em Campo Bom, a Escola Estadual Fernando Ferrari também iniciou sua experiência com o tempo integral em 2018. Com a pandemia, a logística envolvida na modalidade se tornou mais desafiadora, conforme a diretora da instituição, Maristela Brentano. Com a necessidade de que os alunos não cheguem todos juntos, a oferta de três refeições por dia precisa ser escalonada, o que acaba “quebrando” os horários das aulas. A instituição tampouco possui um refeitório, e sim um espaço adaptado para as refeições.
— Com o que temos, conseguimos fazer funcionar, mas, mais do que nunca, precisamos estar de olho, lembrando as normas de distanciamento — relata Maristela.
Apesar dos percalços da pandemia, para a diretora, se há parceria com pais e alunos, o tempo integral funciona. Maristela, que viu o número de estudantes cair de 1,2 mil para 300, com a mudança, acredita que a modalidade não serve para todos os perfis de famílias, pois envolve trocas constantes entre todos na escola, mas passou a trabalhar com a ideia de valorizar a qualidade, mais do que a quantidade de estudantes.
— Para uma família manter o filho em tempo integral, a escola tem que ser muito bacana, e nos esforçamos para isso, porque estamos sempre disputando o adolescente com o mercado de trabalho. Acho que estamos sendo bem-sucedidos: temos conseguido oferecer o protagonismo do aluno — avalia a diretora.
Por meio da Consulta Popular, a escola recebeu uma verba de R$ 41 mil. Usou o dinheiro para organizar uma sala de robótica, um espaço para marcenaria, outro para eletrônica e outro para dança. A ideia é que esses lugares possibilitem uma diversidade maior de oferta de itinerários formativos, com a reforma no Ensino Médio, no ano que vem. A expectativa é que a instituição tenha temáticas como Expressão Cultural e Empreendedorismo entre as opções para os estudantes.