Fosse apenas pela tatuagem de estetoscópio ao lado de um eletrocardiograma ou pelo coração com veias e artérias estampado no braço direito, Juliana Azevedo dos Santos, 26 anos, passaria despercebida pelos corredores da Faculdade de Medicina da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).
Moradora da Ilha da Pintada, no bairro Arquipélago — um dos mais pobres de Porto Alegre —, a estudante do terceiro semestre chama a atenção por se esmerar para garantir o que parece ser o mais simples na rotina de um universitário: sair de casa e chegar à sala de aula. Juliana trabalha de garçonete aos sábados e domingos para custear parte das despesas do curso.
— Tudo da minha vida envolve a faculdade: alimentação, passagem e, mesmo com bolsa (de estudos), tem outros gastos. No início, achei que era impossível seguir, mas eu não cheguei aqui para desistir — afirma a jovem.
A mensalidade — superior a R$ 8 mil, segundo tabela no site da universidade — é bancada pelo Programa Universidade para Todos (Prouni), sistema que oferece bolsas parciais ou integrais em instituições privadas de Ensino Superior.
— Eu achava que Medicina era só para rico. Para quem não tem dinheiro e veio de escola pública, ganhar uma bolsa é imensurável. Algo que muda vidas, de verdade — define a estudante, que conquistou a vaga após cinco provas do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), cuja nota é utilizada pelo programa para selecionar os bolsistas.
Os custos com livros foram reduzidos após Juliana ganhar de ex-alunos uma caixa repleta de publicações.
Dificuldades
Na universidade, as aulas vão das 8h às 17h30min, cinco dias por semana. Após quase duas horas de viagem nos ônibus que a levam da Zona Leste às ilhas, a jovem inicia um turno extra de estudos em um canto improvisado no quarto da mãe, único dormitório do imóvel de alvenaria com reboco aparente, onde elas vivem. A aspirante a médica dorme em um sofá-cama na sala.
— Ela é meu orgulho. Durante a semana, chega de noite e fica nos livros até 1h, 2h. E às 5h30min já está de pé. Sábado e domingo, corre de um lado para o outro no bar. Nem insisto para a gente sair, sei do cansaço — conta o namorado, Dionata Zuge, 25 anos, estudante de Design de Produto na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
No quadro negro, afixado à parede rosa de pintura desgastada, uma agenda relembra os exames e os trabalhos entregues. Somente no último semestre, foram 38 provas, garante. A camiseta que estampa o nome da faculdade é vestuário exclusivo de Juliana na família. Nenhum dos tios, primos, pais ou avós alcançaram o Ensino Superior.
— Sempre imaginei que ela iria procurar algo grande. Desde que nasceu, tem essa coisa de ajudar as pessoas. Não vai ser médica apenas para ganhar dinheiro — vislumbra, orgulhosa, a mãe, Josiane Azevedo, 51 anos, também colega de trabalho da jovem no Armazém da Redenção, restaurante no bairro Bom Fim.
Com maços de polígrafos e livros do Ensino Médio guardados, a garçonete pretende trocar as bandejas com chope — e as raras gorjetas — por uma nova função.
— Fui muito bem na redação (960 de mil pontos possíveis) e tenho facilidade também em matemática. Já ajudo muita gente a montar cronograma e horários de estudo para o vestibular. Quem sabe junto isso com a necessidade de ganhar um dinheirinho — explica.
Considerada por Juliana uma de suas tutoras, a professora Nina Furtado destaca o esforço da aluna, "caso raro", segundo a psiquiatra.
— Um dia, paramos para conversar e ela me contou sua realidade. Disse estar preocupada porque juntou dinheiro das gorjetas e comprou um notebook, mas ele veio estragado. Eu nunca tinha visto uma garçonete cursando Medicina, então, conseguimos para ela um outro computador. Tenho certeza que, com toda essa bagagem, ela será uma médica muito dedicada — avalia.
Questionada se já pensa na formatura, é realista: afirma ainda haver muitos anos pela frente.
— É surreal me imaginar médica. No futuro eu quero, principalmente, estar realizada. E vou chegar lá. Ajudar os outros é o que sempre quis fazer — seu objetivo reafirma o que está eternizado em outra tatuagem, na parte interna do antebraço: "Save lives" (do inglês, salvar vidas).