A expectativa do ministro da Educação, Ricardo Vélez Rodríguez, era de que o ano letivo começasse com milhões de estudantes brasileiros cantando o Hino Nacional e escutando a leitura de uma carta que tinha como fecho o slogan eleitoral "Brasil acima de tudo, Deus acima de todos". A realidade para o ministro é que o ano de 2019 vai começar marcado por um equívoco. Em menos de 24 horas, depois de ser amplamente criticado, inclusive por aliados, por causa das recomendações enviadas a escolas de todo o país, Vélez Rodríguez teve de admitir que estava errado e voltar atrás. GaúchaZH ouviu juristas para comentar se o pedido está dentro da lei.
A questão veio à tona no final da tarde de segunda-feira (25), quando o Ministério da Educação (MEC) confirmou que havia mesmo enviado por e-mail, para as escolas públicas e privadas, dois documentos. O primeiro deles era uma breve carta assinada pelo ministro, na qual ele incitava a comunidade escolar a "saudar o Brasil dos novos tempos" e concluía com o slogan de campanha de Jair Bolsonaro.
O outro documento pedia que os diretores lessem a carta para alunos, professores e funcionários no primeiro dia de aula, enquanto todos estivessem solenemente "perfilados diante da bandeira do Brasil". O ministro também solicitava que a leitura e a execução do Hino Nacional que a acompanhasse fossem filmadas, para envio das imagens ao Ministério. Não explicava que uso daria a essas gravações.
Assim que a informação foi divulgada, críticas vieram de vários lados. Advogados, educadores e entidades variadas começaram a apontar uma gama de equívocos na iniciativa ministerial, incluindo improbidade administrativa, transgressão do princípio constitucional da impessoalidade na administração pública, proselitismo religioso, ingerência indevida na autonomia escolar, doutrinação ideológica nas escolas e ameaça ao direito de imagem das crianças.
— Foi um ato desastroso em todos os sentidos — resumiu o presidente da Ordem dos Advogados do Brasil no Estado (OAB-RS), Ricardo Breier.
Nem a deputada estadual Janaina Paschoal (PSL-SP), um dos nomes mais populares do partido de Bolsonaro, poupou o aliado: "Ministro, contrate urgentemente um assessor jurídico, especialista em ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente). Não se pode sair filmando as crianças (isso vale para os amantes de Face, Insta etc). Ademais, primeiro realize algo concreto e os elogios virão naturalmente", escreveu ela no Twitter.
Depois do recuo de Vélez, o Ministério Público Federal encaminhou ao ministro um pedido de esclarecimentos. Foi concedido um prazo de 24 horas para que Vélez apresente uma justificativa para seu ato, que "deve estar fundamentada nos preceitos constitucionais e legais a que estão submetidos os agentes públicos".
No documento enviado ao MEC, a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão do MPF cita algumas das legislações pertinentes ao caso, abrangendo direitos como a liberdade de consciência e de crença e a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas. O documento também cita o artigo 37 da Constituição Federal, segundo o qual a publicidade dos atos, programas, obras, serviços e campanhas dos órgãos públicos deverá ter caráter educativo, informativo ou de orientação social, dela não podendo constar nomes, símbolos ou imagens que caracterizem promoção pessoal de autoridades ou servidores públicos.
Entretanto, tendo o ministro da Educação reconhecido que cometeu um erro, quaisquer decisões no campo jurídico acabam prejudicadas. Conforme explica o presidente da OAB-RS, Ricardo Breier, as contestações ao posicionamento de Vélez Rodríguez devem ficar restritas, agora, ao campo político: nenhum eventual processo teria efeito após a retificação do ministro.
Ministro voltou atrás
Poucas vozes vieram em apoio à iniciativa governamental. Entre elas, estava a do presidente da Federação Nacional das Escolas Particulares (Fenep), Ademar Batista Pereira, que mesmo assim considerou a inclusão do slogan de campanha "uma derrapada".
— Eu entendo como uma ação positiva. Hoje quando veem um jogo de futebol, as pessoas observam quando o cara canta ou não canta o Hino direito e criticam quando alguém canta errado. Quando vai ser ajustado isso? Quando a escola fizer seu trabalho, naquele momento cívico. Se não aprender o Hino na escola, em casa é que não vai aprender — comentou.
Pereira era uma voz dissonante. Pouco antes das 11h desta terça-feira, depois de passar uma noite e uma manhã sendo criticado, Vélez Rodríguez comunicou que uma versão revisada da sua carta seria enviada às instituições de ensino, sem slogan de campanha e sem o suposto "Brasil dos novos tempos".
— Eu percebi o erro e tirei essa frase — comunicou o ministro, referindo-se ao mote da campanha presidencial de Bolsonaro.
As recomendações enviadas às escolas também foram revistas:
— Tirei a parte correspondente a filmar sem autorização dos pais.
Seis pontos polêmicos das orientações na primeira carta
1) Princípio da impessoalidade
Ricardo Breier, da OAB-RS, observa que a carta original de Vélez teria ferido o princípio da impessoalidade na administração pública nos dois trechos em que ela foi revista (a saudação ao "Brasil dos novos tempos" e a citação do "Brasil acima de tudo, Deus acima de Todos).
— O gestor público não pode defender a sua bandeira. A administração tem de ser impessoal, defender os interesses da nação, do município e do Estado, sem levantar quaisquer interesses partidários — afirmou Breier.
2) Autonomia das escolas
O ministro teria extrapolado suas atribuições, fazendo uma ingerência indevida na autonomia de redes e escolas. Essa posição foi externada pelo Conselho Nacional de Secretários Estaduais de Educação (para quem a ação feriu não apenas a autonomia dos gestores, mas também dos entes da Federação) e pelo Sindicato do Ensino Privado (Sinepe/RS).
3) Estado laico
O Brasil é um Estado laico e assegura aos seus cidadãos o direito à liberdade religiosa, sem favorecer qualquer tipo de crença. Ao citar Deus, Vélez teria ferido esses princípios.
— Respeitamos quem acredita, mas vivemos em um Estado laico. O governo não pode impor isso politicamente. É impróprio, porque perde a imparcialidade — afirma o presidente da OAB-RS, Ricardo Breier.
4) Doutrinação ideológica
Muita gente apontou que a carta do ministro estava em desacordo com um dos xodós de Jair Bolsonaro, o projeto de lei da Escola Sem Partido, que procura combater uma suposta doutrinação ideológica nas escolas.
Essa crítica foi expressa pelo próprio Movimento Escola Sem Partido, que veio a público para criticar a carta enviada por Vélez: "O convite para saudar o Brasil dos novos tempos e o slogan da campanha eleitoral lembram o canteiro de sálvias em forma de estrela no Jardim do Alvorada em 2002", publicou a organização. À época, o ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva foi criticado por plantar, no Palácio da Alvorada, em Brasília, flores vermelhas no formato da estrela do PT – a decisão foi criticada por opositores como aparelhamento do Estado.
5) Improbidade administrativa
Ronaldo Gatti, professor de Direito Administrativo da Unisinos, entende que o caso pode ser caracterizado como um ato de improbidade administrativa.
— Quando usa o slogan de campanha, ele está fazendo promoção de um candidato vencedor, o que vai contra o artigo 37, caput e parágrafo 1°, da Constituição Federal e a lei de improbidade. Neste caso, haveria afronta da publicidade e impessoalidade, justifica o docente.
A advogada constitucionalista Vera Chemim corrobora:
— A Constituição diz que não pode constar nome, símbolo ou imagem que venham caracterizar promoção pessoal de agentes públicos — afirma.
6) Direitos de imagem e privacidade
O advogado Marcos Catalan, professor da Unisinos, identifica na solicitação de gravar imagens das crianças uma "clara violação" de direitos previstos na Constituição, no ECA e no Código Civil. A legislação, segundo ele, exige que exista autorização de quem terá a imagem capturada. Em caso de crianças, essa autorização pode ser substituída pela de seus representantes legais, mas "apenas nas ocasiões em que se presuma o seu interesse". Em sua manifestação nesta terça-feira, Vélez destacou que percebeu este erro e tirou do texto a parte correspondente a filmar crianças sem autorização dos pais.
— Não só a ausência de manifestação dos representantes legais vicia o ato e torna as gravações ilegais, como mesmo que permissões possam ser eventual e pontualmente obtidas, no caso, não existe interesse do menor que possa ser considerado merecedor de promoção, afinal, além do explicitado interesse governamental, que motivo merecedor de proteção jurídica estaria contido na divulgação da imagem e (ou) da voz de crianças e adolescentes? — questiona.