Os dados do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), divulgados em setembro, apontam que entre os maiores desafios da Educação Básica está a manutenção dos desempenhos observados nos Anos Iniciais (1º ao 5º ano) nos Anos Finais (6º ao 9º) do Ensino Fundamental, mas algumas escolas estaduais têm conseguido bons resultados, porque vêm apostando fortemente na leitura, algo apontado por especialistas como primordial na evolução dos índices de aprendizagem.
Seria, então, o incentivo à leitura e ao raciocínio lógico o caminho para melhorar os índices dos Anos Finais? Poderia ser – não houvesse outros fatores a contar nessa etapa. O aluno do 6º ao 9º ano não é mais o mesmo daquele que iniciou o Ensino Fundamental. Não estamos mais diante da criança que vai ao banheiro em fila indiana com a professora. Esse estudante, agora, chega à sala de aula com dilemas da adolescência e com a internet como universo de informação e entretenimento. É preciso atraí-lo – e isso não deixa de ser, também, uma corrida contra o tempo.
A distorção idade-série (proporção de alunos com atraso escolar de dois anos ou mais) salta de 12% nos Anos Iniciais para 26% nos Anos Finais no Brasil e de 12% para 31% no Rio Grande do Sul, segundo dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep). O aluno mais velho e fora do ciclo adequado se torna ainda mais insensível aos apelos de uma escola que já não conversa com ele e que tem de disputá-lo com o mercado de trabalho. A coordenadora das avaliações de larga escala e interlocutora do Inep junto à Secretaria Estadual de Educação (Seduc), Salete Dossa Albuquerque, credita esses altos percentuais de distorção, em parte, à falta de estrutura e de condições da rede de ensino pública de atacar o índice de reprovação no Rio Grande do Sul (26% no Ensino Médio e 21% nos Anos Finais do Fundamental), que está entre os mais altos do país (as médias nacionais são, respectivamente, 18% e 13%). A própria evasão, reforça Salete, fica muitas vezes camuflada como repetência, porque o aluno deixa de frequentar a aula, e a escola, por questões de desordem de gestão, o registra como reprovado.
Salete acrescenta outros dois ingredientes à receita de infortúnios nos Anos Finais do Fundamental. Os professores gaúchos, aponta, em geral cultivam um entendimento de que avaliar é punir, e não simplesmente um diagnóstico. Em sua maioria, acredita, também não têm uma formação que dê conta de atender o aluno mais independente. E isso respinga na organização geral das escolas.
Dificuldade com os adolescentes
Gerente de Pesquisa e Desenvolvimento da Fundação Itaú Social, Patrícia Mota Guedes explica que a formação em Pedagogia, tanto de professores quanto dos gestores, consegue atender às demandas dos Anos Iniciais, mas isso não persiste na sequência do ensino.
– Nos Anos Finais, temos vários especialistas, cada um na sua área, e um gestor que terá de, a partir dali, criar uma liderança não mais baseada no domínio dos conteúdos, mas no apoio, na criação de espaços colaborativos e customizados para atender esse aluno que passa por uma fase de transição. A estratégia tem de mudar, e com a ajuda das famílias. Por que a escola é boa para envolver os pais das crianças e não sabe envolver os pais dos adolescentes? – indaga.
Salete acrescenta:
– A gente percebe o desencanto do aluno justamente no 9º ano. Ele não tem a escola que quer. Tem a escola que podemos oferecer.
Iniciação científica como modelo
Em São Marcos, município da Serra com 20 mil habitantes, a Escola Estadual de Ensino Fundamental Orestes Manfro dá o exemplo: conseguiu prolongar seu excelente desempenho dos Anos Iniciais para os Anos Finais, em que verificou o melhor resultado entre as instituições estaduais em 2017. São quase três pontos acima da média observada nas escolas estaduais gaúchas e dois a mais do que a meta projetada para a rede do Estado como um todo.
O primeiro passo foi colocar o estudante como protagonista das ações e tornar o estudo mais atrativo. Os docentes passaram por uma formação específica com um professor-pesquisador para que pudessem abordar os conteúdos de sua disciplina de maneira que o aluno fosse instigado a fazer descobertas, como ocorre nos projetos de iniciação científica no Ensino Superior. Uma vez por semana, o colégio se dedica a trabalhar nos projetos pedagógicos em curso. As turmas estão constantemente engajadas em feiras de ciências e tecnologia, e a participação nesses eventos rende prêmios.
Em setembro, a Orestes Manfro arrematou os quatro primeiros lugares na Mostra IFTec, evento de caráter científico-cultural no campus de Caxias do Sul do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul (IFRS).
– Os alunos criam os problemas e, a partir deles, desenvolvem seus projetos. No momento em que são desafiados, eles têm de estudar mais. Tudo é aprendizado, e eles gostam de descobrir – diz a coordenadora pedagógica Nádia Miotto.
O envolvimento das famílias é fundamental, segundo professores e direção. Mas, na Orestes Manfro, o Círculo de Pais e Mestres (CPM) também garante aquilo que Patrícia Guedes, da Fundação Itaú Social, chamou de "customização" da escola para os adolescentes. A direção convidou os pais dos quase 300 alunos a contribuírem, se quisessem, com valores entre R$ 10 e R$ 15. Pelo menos 70% das famílias se engajaram, e o dinheiro garantiu ao colégio, prestes a completar 60 anos de atividades, orgulhar-se de expor retroprojetores, lousas, sistemas de som e aparelhos de ar-condicionado modernos em todas as salas, biblioteca atualizada e laboratório de informática em um ambiente que não deve nada a nenhuma instituição privada. O colégio também se empenha no programa Nota Fiscal Gaúcha, de onde veio o dinheiro para a troca do forro das salas.
– Somos uma família. Os pais do CPM fazem campanha para que os outros colaborem. Isso porque eles enxergam o investimento na escola dos filhos. E os professores têm material para ensinar. Se um deles quer um joguinho para trabalhar matemática, a gente dá um jeito – afirma a diretora Daniela Polidoro.
A escola de São Marcos não espelha seu planejamento no da rede pública. Tem poucos professores contratados, a maioria está há anos ali, é concursada e não se divide em trabalhos em outra rede. No Rio Grande do Sul, um professor estadual ganha, em média, R$ 4 mil, precisando se desdobrar trabalhando simultaneamente em escolas municipais ou particulares. Para agravar esse quadro, a maioria deles – cerca de 70%, de acordo com dados da Seduc –, é chefe de família, respondendo pelo maior ganho financeiro em sua residência.
– Falta tempo na escola, tanto para o professor quanto para o aluno, para pensar no trabalho pedagógico. Isso poderia ocorrer, por exemplo, em uma reunião semanal, mas os professores muitas vezes dão aulas em três, quatro colégios diferentes. Então, a escola não consegue mobilizá-los para um alinhamento. Eles não se encontram – lamenta a consultora em educação Andrea Ramal.
Doutora em Educação pela PUC-Rio, Andrea também alerta para outro abismo entre a teoria e a prática. Ela lembra que a proposta da educação por ciclos, com competências definidas para cada ano escolar e sem o foco na reprovação punitiva, prevê que o aluno que apresentar dificuldades seja imediatamente contemplado com aulas de reforço, a tempo de alinhá-lo com o restante da turma.
Nesse sentido, ambas as escolas, de Vacaria e de São Marcos, são exceções: os gestores conseguem proporcionar essa ajuda aos alunos, com menor ou maior dificuldade, dependendo da disciplina. A realidade de tantas outras instituições da rede estadual é a falta de professores inclusive para fechar a carga horária regular – quanto mais para dar aulas de reforço a algum aluno. Trata-se de mais uma peculiaridade da dinâmica dos Anos Finais do Ensino Fundamental, no Rio Grande do Sul e no Brasil, que interfere diretamente nas ações de combate aos maus desempenhos, impedindo que se concretizem planos de melhora e, consequentemente, atinjam-se metas de qualidade.
VÍDEO: Conheça as três escolas retratadas nas reportagens sobre o Ideb e suas ferramentas para o bom ensino:
Adolescência: dificuldade extra
Gerente de Políticas Educacionais do Movimento Todos Pela Educação (MTE), Gabriel Corrêa ressalta que os Anos Finais do Ensino Fundamental não ficam sob o guarda-chuva de uma única esfera administrativa. Os Anos Iniciais, via de regra, estão sob responsabilidade dos municípios, enquanto o Ensino Médio fica com os Estados. Nesse fatiamento, os Anos Finais ficam sob as duas alçadas.
– Como a responsabilidade fica dividida, os Anos Finais perdem em prioridade nos dois âmbitos do poder público – aponta Corrêa.
Patrícia Guedes complementa:
– Na política federal, temos um histórico de olhares sobre a alfabetização, com, por exemplo, o Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (Pnaic). O Ensino Médio ganhou atenção com o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). Já os últimos anos do Ensino Fundamental ficaram esquecidos.
Quando há colaboração entre Estado e municípios, a escola tende a se sentir mais respaldada em suas iniciativas de aprimoramento. É o que acontece em Nova Petrópolis, onde a Escola Estadual 1º de Maio busca trabalhar a partir dessa parceria para superar as dificuldades. A instituição obteve destaque no Ideb: ganhou a melhor nota do Ensino Médio obtida pelas escolas estaduais gaúchas (sem contar as que têm processo de seleção).
Reta final da Educação Básica, o Ensino Médio é considerado o ponto crítico da educação no Brasil. O Rio Grande do Sul encontra nessa etapa seu principal desafio – ficou com desempenho abaixo da média nacional, mesmo diante de metas bastante benevolentes.
A rede estadual também não conseguiu mobilizar seus estudantes a participar das provas. Um dos motivos foi a greve dos professores, que ocorreu à época da aplicação dos testes do Saeb. Outro ponto é que muitas das instituições não cumpriram o critério de contar, na avaliação, com no mínimo 80% dos alunos descritos no Censo Escolar.
Parcerias pela qualidade do ensino
Pelo menos 320 escolas estaduais gaúchas ficaram sem o Ideb 2017. A Escola 1º de Maio, de Nova Petrópolis, que teve nota 5,9, tem se fortalecido com o apoio do município. Encravada em Fazenda Pirajá, bairro de classe média baixa, mas em expansão por conta de novos empreendimentos, a instituição tem implementado diversos projetos. Entre eles, leva estudantes a feiras de ciências e a olimpíadas de conhecimento, de onde já trouxe medalhas, uma das mais recentes a de ouro na Olimpíada de Matemática, conquistada pela estudante do 1º ano do Ensino Médio Júlia Carina Kich, 16 anos.
E não é apenas a prefeitura que se engaja. Com uma verba mensal disponível de menos de R$ 3 mil, destinada a custos permanentes e à manutenção, a 1º de Maio mira projetos sociais de empresas privadas para garantir parcerias, obter mais recursos e manter uma oferta de experiências que atraiam os adolescentes, como viagens de estudos e eventos em universidades. A escola já buscou em um fundo social de uma cooperativa de crédito os recursos para retomar o Clube de Alemão, iniciativa de ensino do idioma dos imigrantes da região. Os esforços sempre são conjuntos, característica na qual a instituição de Nova Petrópolis se assemelha muito às de Vacaria e São Marcos.
– Temos professores parceiros. Se nossa engrenagem não funcionasse, as coisas não aconteceriam –ressalta a vice-diretora e supervisora Elen Cristina Wedig Raimann.
No Ensino Médio, as adversidades são ainda maiores do que aquelas vistas nos Anos Finais do Fundamental. Além de o educador ter de superar deficiências da aprendizagem que vêm se arrastando ao longo do percurso escolar, o aluno dessa etapa, que já vinha se aproximando do mercado de trabalho, agora é incisivamente cortejado por este.
Os índices da Escola 1º de Maio nessa etapa do ensino são um sinônimo de resistência também por conta da tradição das famílias da Serra de levar seus filhos adolescentes ao trabalho. Anos atrás, duas meninas da escola ganharam bolsas de iniciação científica, mas uma delas teve de abrir mão do benefício porque já estava trabalhando em um programa de jovem aprendiz de fábricas locais.
– Chega uma determinada idade, e os pais já estimulam que o adolescente vá trabalhar. Porque precisa ajudar na casa. Eles acabam gostando de ganhar seu dinheiro e deixam os estudos de lado. Muitos vão para o noturno para poder trabalhar. Aí, você precisa de muito mais motivação, porque eles chegam na escola cansados –comenta a diretora Adriana May Marinho.
Em decorrência disso, muitos alunos desistem do Ensino Médio no meio do processo. Para Gabriel Corrêa, do MTE, essa dificuldade de manter o estudante é um reflexo da urgência de mudanças nesse nível escolar. Um caminho que tem se mostrado promissor, a exemplo de Pernambuco, terceira melhor rede pública nessa etapa (apesar de ter o 19º PIB per capita do país), é o investimento no Ensino Médio integral. No Estado nordestino, mais da metade das matrículas da rede pública é integral, com alunos em atividades escolares entre sete e nove horas diárias. Nesse sentido, a Reforma do Ensino Médio, sancionada no começo deste ano, poderia ser uma oportunidade para revigorar a formação.
— O sentido dessa reforma era sair de um currículo rígido para dar mais opções de escolha ao aluno, mas o que se debate agora é como implementá-la. Não adianta uma política pública se a aplicação é malfeita — pondera Corrêa.
Continue lendo sobre os resultados do Ideb:
Leitura é pilar das melhores escolas estaduais no Ideb 2017
Como pais e educadores devem olhar para os números do Ideb