Imagens: Mateus Bruxel e Tadeu Vilani / Edição: Marcelo Carôllo
Filha de um maranhense descendente de franceses e de uma índia caingangue do Rio Grande do Sul, Lucíola Belfort, 38 anos, tornou-se a primeira indígena a se formar na disputada Faculdade de Medicina da UFRGS. Um mês depois da formatura, ela fala sobre os desafios da profissão que escolheu e como pretende levar o conhecimento que adquiriu na universidade para o benefício das comunidades indígenas.
Segunda filha de uma família de cinco irmãs, Lucíola foi a única a nascer em uma Capital e em uma maternidade. A mãe, que trabalhava na Ilha do Marajó (PA) com índios caiapó, fez uma viagem arriscada para ganhá-la em São Luís, no Maranhão.
A realidade indígena, não só sob os aspectos do acesso aos serviços de saúde, sempre esteve no cotidiano da médica, que se formou enfermeira antes de ingressar na UFRGS e percorreu aldeias em que a figura do médico era a menos vista entre os povos.
Quando você passou, sabia do prestígio da Faculdade de Medicina da UFRGS?
Fui descobrir mesmo o que era a UFRGS depois de estar lá. Quando fiz minha primeira faculdade, não houve diferença no tratamento que davam para mim, por ser indígena. Eu dizia que era indígena. Não havia discriminação.
Houve isso na UFRGS?
Descobri isso no primeiro dia. Eu não imaginava que teria de enfrentar isso. Se eu não tivesse a idade que eu tinha (31 anos) quando entrei, não sei se teria ficado, é uma violência psicológica.
Mas que situações ocorriam?
O mais forte foi pelas redes sociais, na época, o Orkut, onde as pessoas postaram frases como "Tu és a pior das caucasianas, uma branca tentando ser índia", "mesmo sendo branca, tu não presta".
Partiam de quem as ofensas?
Tanto de veteranos quanto de professores, que falavam mal de mim na minha presença, sem saberem quem eu era. Eles achavam que eu tinha cara de índia, mas eu não tenho esse fenótipo.
Essa hostilidade chegou a desestimulá-la?
No começo, eu me sentia perseguida, tinha medo de um professor me reprovar, sumir com minha nota, mas isso nunca aconteceu. Eu tinha 31 anos na época, já havia enfrentado outras coisas desse tipo desde a infância. A gente vai sendo preparada aos poucos, não seria isso que me faria desistir da faculdade.
Depois do baque, como você se impôs neste ambiente?
A turma que entrou comigo foi preparada no período de pré-matrícula. Fizeram reunião, dizendo que iriam ter uma colega indígena. Fui bem-recepcionada por eles. Tive muitas dificuldade nas primeiras disciplinas. Os meus colegas tinham saído do Ensino Médio ou do cursinho, assimilavam rápido. Os professores diziam "isso vocês já viram no cursinho", "isso vocês já sabem", e eu me sentia a pior das alunas. Eu sentava para estudar, lia e relia. Lembro que outros indígenas e eu saíamos atrás até de livros do Ensino Médio para esclarecer dúvidas. Houve também pessoas que me ajudaram muito, residentes, professores.
Como você chegou à UFRGS?
O meu pai sempre quis Medicina, e ele teve de cancelar esse sonho. Na adolescência, eu procurava alguma universidade no Rio Grande do Sul que tivesse Medicina. Minha mãe já morava aqui. Na época, havia um convênio da Unijuí com o Ministério da Educação e a Funai, em que pagavam a universidade para indígenas que prestassem vestibular e passassem. Minha mãe trabalhava no setor de educação da Funai, em Chapecó (SC), e sabia que existiam dois cursos na área de saúde. Ela acabou me inscrevendo para Enfermagem. Fiquei desolada, porque eu queria Medicina. Outros indígenas e eu aproveitamos esse convênio em 1996, não havia outro. A gente enfrentou muitos problemas financeiros. Cursamos um semestre e, no final dele, já estávamos definindo qual teria de abandonar a faculdade.
Como vocês decidiram?
A faculdade ofereceu duas monitorias. Um primo e eu conseguimos, mas nosso dinheiro ajudava a manter nós todos. A maioria desistia. Eu estava a ponto de deixar a Enfermagem e procurar um cursinho, mas não tinha como me manter. Aí, trabalhei em enfermagem por dois anos e, depois, recebi proposta para trabalhar com saúde indígena no Mato Grosso. A gente ficava 30 dias direto na aldeia Karajá-Tapirapé, no Xingu, onde fiquei por seis anos. Nesse tempo, o profissional que a gente menos tinha contato era o médico. Trabalhei com vacinação, pré-natal e com os primeiros casos de HIV que apareceram nas aldeias de lá.
Foi aí que ganhou força o desejo de fazer Medicina?
Eu já pensava, mas não tinha oportunidades. Fui para o Tocantins, onde ocorreria, em 2007, o primeiro vestibular de Medicina e com cotas indígenas na Universidade Federal do Tocantins. Fiquei suplente, não fui chamada e resolvi voltar para o Rio Grande do Sul. Quase no final do ano, soube de uma seleção em Viamão para trabalhar com comunidades guaranis. Nesse meio tempo, minha mãe ligou e perguntou se eu sabia do processo seletivo da UFRGS e disse que um dos cursos era Medicina. Nem acreditei.
Você é a primeira indígena formada na Medicina da UFRGS. De alguma forma, sente-se refém desse rótulo?
Até agora, ninguém me reconheceu nos lugares em que trabalhei, apesar de ter saído em vários jornais. Não saio falando da minha vida. Você tem de ter sabedoria. Encontrei um colega, que ficou feliz por me ver trabalhando. Outros que não eram a favor agora devem pensar: "Ela é médica tanto quanto eu". Quero trabalhar com saúde indígena perto de Porto Alegre, porque ainda quero fazer alguns cursos.
UFSM planeja moradia para estudantes indígenas.
Você se sente no compromisso de trabalhar com índios por ter sido aluna cotista?
Cresci conhecendo a causa indígena. Quando entrei na Unijuí, quem pagava era a Funai, mas isso nunca foi cobrado. Você se forma e tem livre escolha. Trabalhei com saúde indígena em todos os momentos em que pude, por mais que meu currículo ficasse preso a isso. Agora, formada, penso: "Quantos índios médicos trabalham com índios?". Bem, já são poucos os que se formam. Eu jamais faria oncologia, por exemplo, porque não tenho como usar algo tão específico em uma área indígena. Se, nesse meio tempo, eu tiver de trabalhar em um posto não indígena para me sustentar, para aprender e lá adiante utilizar o aprendizado em algum programa de saúde indígena, ok. Esse é o meu foco. Se tiver de ir para a ONU para trabalhar com saúde indígena, tudo bem. Não vejo nada como barreira. Não me vejo no hospital.
As pessoas com as quais trabalha e os pacientes sabem que você é indígena?
Não sei como a equipe vai me recepcionar quando eu voltar à cidade onde faço plantões. Sei que alguém ficou sabendo que eu sou médica indígena. Penso como será o olhar deles. Já fui discriminada como menina, como criança, como enfermeira. Uma vez, um paciente disse que não queria ser atendido por enfermeira índia. Se algum paciente não quiser que eu o atenda, paciência. Só não quero ser vista de outra forma. Há momentos em que eu fico mais resguardada. Não tenho nada a esconder, mas tomo cuidado.
Como a aldeia recebeu você depois da formatura?
O tempo não muda, não passa, as pessoas são as mesmas por lá. Os índios me viram como uma índia, como qualquer outra mulher. Toda vez que vou lá, a gente faz um brechó beneficente. Não interessa se eu sou médica, subo morro com sacola. Ali, não consigo me ver como médica, e eles me enxergam como a Lucíola que sempre morou ali. Isso me faz bem. Não quero aquilo de "doutora Lucíola".O tratamento que o médico recebe da sociedade faz com que ele se sinta superpoderoso. Isso é ruim. Claro que quero ter conforto, mas a questão material não está em primeiro lugar. Se estivesse, não escolheria saúde indígena.
Diploma ecoa na aldeia de Lucíola.
A faculdade prepara os estudantes para enfrentar esse "endeusamento" do médico?
A faculdade não trabalha isso. Eu entrei como primeira cotista do curso em 2008. Todo mundo era perfeito, lindo, com roupas e bolsas maravilhosas. A faculdade parecia um desfile de moda. Isso foi mudando, foi mesclando. O Brasil foi para dentro da faculdade e mudou o perfil do aluno. Na Medicina, você estuda muito, é exaustivo. No final, você realmente se torna merecedor do título, mas o que fazer com ele depende de cada um. Sou grata pela oportunidade e saberei dar o retorno.