Um silêncio incômodo percorre as oficinas desabitadas do Estaleiro Rio Grande, um complexo de 700 mil metros quadrados às margens da Lagoa dos Patos, em Rio Grande, no sul do Estado. Desde o ocaso do polo naval, em 2016, resta pouco da movimentação frenética de quando 12 mil trabalhadores labutavam 24 horas por dia montando estruturas petrolíferas. Agora há apenas o rosnar contido de um guindaste e o passo letárgico dos pouco mais de 200 funcionários dedicados a impedir que o maquinário sucumba à ferrugem.
Todavia, a presença de uma plataforma de 44 mil toneladas, 337 metros de comprimento e 70 de altura está prestes a modificar a rotina do local.
Desta vez, metalúrgicos treinados para construir aparatos bilionários que extraem petróleo do fundo do mar farão um serviço reverso: transformar o colosso de aço em sucata para a indústria siderúrgica.
A nova operação do estaleiro devolveu um sopro de otimismo a um dos mais antigos municípios gaúchos. De 2005 a 2016, o polo naval transformou Rio Grande num eldorado. A economia local crescia 20% ao ano, fazendo o Produto Interno Bruto quadruplicar.
O tombo começou em 2014, a partir da Operação Lava-Jato.
A sucessão de escândalos envolvendo a Petrobras fez escassear os contratos e a regularidade dos pagamentos. O estaleiro da QGI, construído pela construtora Queiroz Galvão e a Iesa Óleo e Gás, foi o primeiro a fechar as portas. O Estaleiro Rio Grande, pertencente à Ecovix, demitiu 3,2 mil trabalhadores num único dia e entrou em recuperação judicial. O Estaleiro EBR, na cidade vizinha de São José do Norte, foi o único a continuar operando.
— Parecia que tinha caído uma bomba atômica — resume o diretor operacional do Estaleiro Rio Grande, Ricardo Ávila.
Com um passivo de R$ 8 bilhões em dívidas, desde então a empresa busca diversificar as atividades. Após dois anos praticamente paralisado, o estaleiro passou a cortar navios para transformar em sucata, fazer reparos navais e aproveitou a estrutura de cais para operações portuárias.
A chegada da plataforma P-32, em dezembro, abriu um novo foco de atuação. Primeira unidade da Petrobras a passar por um processo de desmontagem sustentável, a plataforma foi adquirida pela Gerdau no ano passado e será desmanchada para que os painéis de aço sejam reciclados na usina da siderúrgica em Charqueadas, na Região Carbonífera. O trabalho vai durar um ano e gerar 200 empregos diretos. Por ora, mergulhadores operam cordas com diamantes no corte do enrijecedor, uma peça de 4,67 metros acoplada no fundo do navio.
A Gerdau já arrematou outra plataforma, a P-33, cuja chegada a Rio Grande está prevista para o segundo semestre. As duas unidades serão desconstruídas lado a lado no dique, com a abertura de mais 200 vagas.
Ao todo, o programa de desmantelamento da Petrobras está orçado em US$ 9,6 bilhões, com o desmanche de 26 plataformas. Ávila diz que a iniciativa é uma oportunidade diante da estagnação do setor, mas ainda insuficiente para significar retomada do polo local.
— É um mercado muito pequeno para a indústria brasileira — diz o executivo da firma que faturava US$ 50 milhões mensais no auge das operações e hoje fatura R$ 1 milhão.
Em Rio Grande, não há ilusão de que os estaleiros voltem a induzir a prosperidade da década passada. Contudo, empresários, trabalhadores e autoridades nutrem a expectativa de que a Petrobras retome os incentivos à produção de plataformas em território nacional. Em visita ao município em maio de 2023, o presidente da estatal, Jean Paul Prates, firmou compromisso de que irá recuperar os estaleiros da região.
Em dezembro, o Conselho Nacional de Política Energética elevou a exigência de conteúdo local de 18% para 30% na exploração e de 25% para 30% na produção de petróleo em blocos marítimos. Embora os percentuais ainda estejam distantes dos índices de até 85% que turbinaram a economia rio-grandina na década passada, há esperança de novos investimentos.
— Não acredito no retorno do cenário anterior, mas temos expectativa de retomada, afinal não há no Brasil estrutura como essa, mão de obra treinada, posição geográfica, condição de calado e maior dique do Hemisfério Sul — sustenta o prefeito de Rio Grande, Fábio Branco.
Após o ocaso do polo naval, em 2016, a exigência de conteúdo local foi apontada como principal causa da derrocada do setor. Os incentivos governamentais teriam encarecido a produção nacional e endividado a Petrobras, que financiou os estaleiros do país em detrimento da alta competitividade dos similares asiáticos.
Reitor da Fundação Universidade Federal do Rio Grande e primeiro presidente do Arranjo Produtivo Local Marítimo, Danilo Giroldo, concorda que é possível corrigir equívocos e alcançar percentual mais equilibrado de conteúdo local. Contudo, ele rejeita a impressão cristalizada no país de que a política fracassou:
— Não existe indústria naval sem subsídio estatal. É assim que se mantém a indústria americana, canadense, porque emprega muita gente e tem alto valor agregado. Aqui ficou uma ideia geral de que a indústria não era competitiva e não tinha capacidade. Isso não se coaduna com a realidade.
Hoje, 30% do petróleo produzido no Brasil vem de plataformas fabricadas em Rio Grande.
No passado, cadeia produtiva distribuiu riqueza
O empresário Vinícius Ivanoff tinha três vans usadas para transporte escolar quando os primeiros estaleiros se instalaram em Rio Grande, a partir de 2005. Cinco anos depois, ele mantinha 16 ônibus circulando dia e noite pela cidade, além de 24 apartamentos transformados em hospedaria para abrigar a multidão de operários do polo naval.
— Ganhei bastante dinheiro. Eram 16 ônibus faturando R$ 8 mil por mês cada, mais 24 apartamentos faturando R$ 7,2 mil. Daí um dia tudo se acabou. A última fatura nem me pagaram — conta Ivanoff.
Com 24 mil trabalhadores atuando somente nos três estaleiros da região, Rio Grande viveu um período econômico jamais visto na região. Se no século 18 o apogeu do ciclo do charque havia gerado riqueza sobretudo à burguesia representada pelos fazendeiros, desta vez a renda foi melhor distribuída.
O impacto foi imediato.
A frota de veículos dobrou, 215 hospedarias se espalharam pela cidade e a cada dia surgiam novos restaurantes. Somente no Estaleiro Rio Grande, 270 ônibus transportavam os funcionários todos os dias. A arrecadação municipal triplicou, saltando de R$ 486 milhões, em 2005, para R$ 1,74 bilhão, em 2012.
Havia pleno emprego, expresso na profusão de operários de macacões coloridos circulando pelo centro. Nas lojas, os atendentes tinham sotaque nordestino, porque os rio-grandinos foram trabalhar nos estaleiros, e as vagas de vendedor foram ocupadas por parentes dos operários de fora.
A renda per capita dobrou e o número de beneficiários no Bolsa Família caiu à metade. A média salarial, antes de cerca de R$ 1 mil, passou para mais de R$ 3 mil.
— Todo mundo aqui virou metalúrgico, trocou de carro, melhorou de vida. Nós ficamos felizes, voltamos a estudar, botamos os filhos na engenharia — lembra Benito Gonçalves, presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de Rio Grande.
Do outro lado da Lagoa dos Patos, a situação não foi diferente. Alavancado pela presença do Estaleiro EBR, a arrecadação do município vizinho de São José do Norte cresceu 50%, e o número de empresas dobrou. Sozinho, o estaleiro mantém um volume de compras superior a todo o da cidade.
Atualmente, há cerca de 2,8 mil operários trabalhando na construção de módulos para a P-79. O horizonte, porém, é de incertezas. A previsão é de que a obra se encerre no segundo semestre e, por enquanto, não há novos contratos.
— Nossa economia, antes baseada na cebola, no peixe e na madeira, foi transformada com a chegada do polo. Havia um êxodo juvenil e isso mudou, hoje as pessoas têm perspectiva de crescimento ficando aqui. Temos fé que o estaleiro continue operando para que não haja retrocesso — diz a prefeita Fabiany Roig.