Por André Cauduro D’Angelo
Docente na PUCRS, mestre e bacharel em Administração
Nos anos 1980, dois economistas brasileiros tentaram entender os mecanismos que tornavam resistente a inflação que assolava o país desde a década anterior. André Lara Resende e Pérsio Arida, depois de muito estudar o assunto, concluíram que o mal seguia uma lógica curiosa: temerosos de que o poder de compra se esfumaçasse dali adiante, formadores de preço antecipavam-se incorporando aumentos preventivos, mesmo na ausência de fatos concretos que os justificassem. Tratava-se de uma inflação inercial, portanto, dado que se retroalimentava alheia a componentes externos.
A teoria “Larida”, como ficou conhecida, me veio à mente quando se começou a puxar o novelo do caso Americanas e os tais R$ 20 bilhões de dívidas bancárias omitidos de seus balanços nos últimos anos. Não pela varejista em si, mas pelo seu trio de “acionistas de referência”, Jorge Paulo Lemann, Marcel Telles e Carlos Alberto Sicupira. Principais capitalistas brasileiros das últimas duas décadas, os sócios da 3G Investimentos desfrutavam de uma fama à altura de suas fortunas pessoais, as maiores do país: a de transformarem empresas deficitárias em ótimos negócios com relativa rapidez graças a um bem-azeitado método de gestão. Notoriedade que ganhou ares anedóticos com o livro Sonho grande: Como Jorge Paulo Lemann, Marcel Telles e Beto Sicupira Revolucionaram o Capitalismo Brasileiro e Conquistaram o Mundo (Sextante, 2015), da jornalista Cristiane Corrêa, que descreve a trajetória empresarial dos três e cujo título faz referência às suas pretensões oligopolistas e globalizantes, tidas como “inspiradoras” por um sem-número de Teletubbies de LinkedIn.
Ao que parece, a reputação de Lemann e cia. tinha contornos inerciais, igualmente – fomentava certezas de sucesso em investidores e analistas a despeito das pontas soltas que fossem deixando pelo caminho, tão escandalosas quanto premonitórias. Hoje, a imprensa lembra de casos semelhantes aos das Americanas em empresas controladas pelo trio com cínica naturalidade: a América Latina Logística (ALL) teve seus últimos balanços republicados depois de vendida, em razão de “inconsistências contábeis” encontradas pelo comprador, e a Kraft Heinz escondeu US$ 15 bilhões devidos a fornecedores. Nada disso foi suficiente para investigações mais aprofundadas, fosse da mídia, fosse das instâncias do “mercado” e de seus orgulhosos mecanismos de governança e compliance.
Acabou tudo ignorado em nome desta e de outras reputações inerciais, incluindo a de altos executivos que aderiam ao 3G e de multinacionais de auditoria, redundando na revelação do problema: dos eufemismos à “fraude” passaram-se dias.
O Americanasgate reforça os perigos da gestão voltada à maximização do valor para o acionista e do pagamento de bônus para executivos atrelados ao preço dos papéis, erroneamente tratados como foco no resultado e meritocracia, respectivamente. Joga luz sobre a contradição inerente a companhias de capital aberto, cobradas por resultados trimestrais enquanto rendem juras de amor à suposta intenção de perenizar empresas. Desmascara a hipocrisia do chamado “mercado”, sempre disposto a rugir reivindicações para agentes públicos – teto de gastos, responsabilidade fiscal –, mas incapaz de flagrar um escândalo sob suas barbas. E, finalmente, mostra que o teatro explica muito melhor o mundinho dos negócios do que qualquer manual de administração: assim como a vida corporativa às vezes se assemelha a uma comédia, em outras não passa de uma farsa travestida de epopeia.
Há alguma nota positiva no episódio? Com alguma boa vontade, sim. É possível enxergá-lo como uma breve reabilitação de todos aqueles empreendedores e profissionais que cultivam a parcimônia e a falta de urgência em vencer, optando pelo realismo das ambições diminutas – pois, está provado agora, quem sonha grande erra grande também.