Com um universo de 5,7 mil farmácias e uma nova unidade adicionada a essa conta a cada cinco dias, em média, o Rio Grande do Sul se firma como uma das localidades com maior concentração de lojas de medicamentos do planeta. Esse fenômeno segue uma tendência nacional de alta procura por esse tipo de estabelecimento, mas fatores como maior proporção de idosos, acesso relativamente mais fácil a serviços de diagnóstico e impacto de doenças sazonais deixam os gaúchos ainda acima da média brasileira de drogarias por habitantes.
Essa alta proporção de farmácias em relação ao tamanho da população — quase 80% além do padrão dos países da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) — é acompanhada pela consolidação de um novo perfil do setor, marcado por uma onda de investimentos de grandes redes de varejo em estabelecimentos maiores e melhor localizados, com oferta crescente de produtos e serviços, além de uma disparada nas vendas feitas pela internet. Especialistas apontam que esse quadro reflete uma demanda de mercado, mas exige cuidados para evitar riscos como o da automedicação.
Basta circular por qualquer avenida das principais cidades gaúchas para constatar o acirramento da disputa entre as principais marcas. No bairro Menino Deus, em Porto Alegre, onde havia casas, padarias ou restaurantes, agora se vê um cenário cada vez mais comum: amplas edificações de esquina, com espaço para estacionamento, onde além de remédios se encontra uma quantidade crescente de produtos de beleza e conveniência ou se pode fazer testagens para uma série de doenças e tomar vacinas.
— Acho até estranho tanta farmácia. Mas, se tem, é porque há comprador, né? Pessoalmente, acho bom porque a gente consegue ter mais opção de preço — afirma a empresária e moradora da Capital Onorina Tessaro, 51 anos.
Nos últimos cinco anos, mesmo em um mercado já saturado, a quantidade de estabelecimentos cresceu 6% no Rio Grande do Sul de acordo com registros do Conselho Regional de Farmácia (CRF/RS). Isso cria situações como a da Avenida Getúlio Vargas, na Capital, onde se contam 14 estabelecimentos conforme levantamento realizado por GZH. No trecho entre as vias Ipiranga e José de Alencar, há em média uma loja de remédios a cada cem metros.
O estranhamento de quem passa pelas calçadas é confirmado por estatísticas internacionais: o Estado fica acima dos padrões mais comuns de concentração desse tipo de negócio. Os gaúchos contam com 50 farmácias ou drogarias para cada grupo de cem mil habitantes, pouco acima da cifra nacional de 42 estabelecimentos e muito além das taxas vistas nos países da OCDE, a organização que reúne algumas das principais economias do mundo.
O levantamento Saúde em Resumo 2021: Farmacêuticos e Farmácias, produzido pela entidade com uma seleção de 27 países associados, indica que somente a Grécia (88) conta com uma proporção mais elevada do que o Rio Grande do Sul. A média geral dos filiados ao organismo internacional é de 28 por cem mil (consulte a relação completa no infográfico a seguir).
Existem diferentes explicações para esse quadro. Há países que contam em maior grau com farmácias hospitalares (que têm funcionamento mais restrito e não entram na estatística do varejo) para dispensar medicamentos à população, e outros que permitem ao próprio médico repassar medicações ao paciente, como na Holanda. Já na Dinamarca, que tem o menor índice do levantamento, o mercado é bem mais concentrado: há poucos estabelecimentos, mas muito amplos e vinculados a marcas fortes.
Mais idosos
O Brasil tem uma estrutura de distribuição de remédios mais alicerçada nas farmácias e drogarias de varejo tradicional e passa por um processo de envelhecimento da população. Esse fenômeno é particularmente intenso em solo gaúcho, onde o número de pessoas acima de 60 anos disparou na última década (veja a evolução no próximo infográfico) e passou a representar quase um quinto da população.
Como países europeus têm um percentual ainda mais elevado de velhos, mas uma densidade menor de estabelecimentos na comparação com gaúchos ou brasileiros, outras razões ajudam a explicar a multiplicação de drogarias nas ruas. Algumas delas nacionais, outras próprias do Rio Grande do Sul.
O inverno rigoroso e as variações bruscas de temperatura em outras épocas do ano que caracterizam o clima no sul do país favorecem doenças sazonais, a exemplo de problemas respiratórios, e as corridas às prateleiras de remédios.
Os gaúchos também têm acesso facilitado a serviços de saúde em relação a outras áreas socialmente mais vulneráveis do país, o que gera maior volume de exames, de diagnósticos e, por consequência, de indicações de tratamento.
— Não vejo o aumento no número de farmácias como um problema, já que nosso sistema de saúde está baseado na complementariedade entre serviços públicos e privados. Há um aumento evidente da demanda por medicamentos pelo envelhecimento da população, mas também pela ampliação do acesso a serviços de diagnósticos e, como consequência, da procura por recursos terapêuticos. É verdade ainda que vivemos em uma sociedade hipermedicalizada. A expectativa de qualquer pessoa que vá a uma consulta com algum sintoma é sair de lá com uma prescrição — avalia o professor titular da Faculdade de Farmácia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Paulo Mayorga.
O aumento na quantidade de novas farmácias é reflexo da busca crescente por mais oferta e qualidade em serviços e produtos. Acompanhando o envelhecimento da população, as farmácias se consolidam como estabelecimentos de saúde e bem estar, com a oferta de serviços farmacêuticos.
LETÍCIA RAUPP
Presidente do Conselho Regional de Farmácia do RS
Mayorga lembra que precarização das condições de vida, má situação nutricional e outros fatores que fragilizam a saúde também podem justificar, no cenário nacional, a demanda por pílulas, xaropes e assemelhados. Um relatório do Sindicato da Indústria de Produtos Farmacêuticos (Sindusfarma) aponta que a quantidade de medicamentos vendida pelo setor dobrou em uma década em todo o país, saltando de 2,3 bilhões de caixas em 2011 para 4,9 bilhões no ano passado.
— O aumento na quantidade de novas farmácias é reflexo da busca crescente por mais oferta e qualidade em serviços e produtos. Acompanhando o envelhecimento da população, as farmácias se consolidam como estabelecimentos de saúde e bem estar, com a oferta de serviços farmacêuticos — sustenta a presidente do Conselho Regional de Farmácia do Rio Grande do Sul (CRF/RS), Letícia Raupp.
Redes investem milhões no Estado
A abertura de novas farmácias em pontos melhor localizados, com espaço maior, produtos e serviços mais variados é a face visível de investimentos milionários em andamento feitos por algumas das principais redes presentes no Rio Grande do Sul. Isso inclui abertura acelerada de novos pontos, mas também construção ou ampliação de gigantescos centros de distribuição.
As três principais redes gaúchas (Panvel, São João e Farmácias Associadas) e a líder nacional (Raia Drogasil) adotaram fórmulas semelhantes para garantir a saúde nos negócios.
O Grupo Panvel está aplicando cerca de R$ 25 milhões para duplicar a área de seu centro de distribuição localizado em Eldorado do Sul. A ampliação é necessária para dar suporte aos planos de expansão ao longo dos próximos anos.
— A Panvel tem um projeto de crescimento que prevê a abertura de 60 novos pontos por ano — afirma o diretor executivo de Operações do grupo, Roberto Coimbra.
Apenas nos 12 meses anteriores, segundo o relatório de resultados do terceiro trimestre deste ano, a empresa lançou 68 novos estabelecimentos.
Já a rede São João vai investir R$ 200 milhões para erguer um novo centro logístico em Gravataí, nas proximidades da freeway. A direção da empresa preferiu não comentar seus planos.
O Grupo RaiaDrogasil conta com 1,1 mil unidades da marca Droga Raia e 1,5 mil sob o nome Drogasil em todo o país — das quais 50 foram abertas no Rio Grande do Sul ao longo dos últimos dois anos. A empresa tem planos de lançar mais 260 lojas ao ano em diferentes regiões do Brasil.
A corrida pelo mercado farmacêutico está levando a uma consolidação das principais redes em detrimento dos estabelecimentos independentes, geralmente menores, pior localizados e com menos poder de barganha na negociação com os fornecedores. Um relatório do Sindusfarma aponta queda de 0,4 ponto percentual na participação de mercado dos independentes no último ano, contra um cenário de crescimento das grandes redes e franqueados.
Gerente regional da RaiaDrogasil, Wendel Fernando Guedes detalha o novo modelo buscado pelas maiores empresas nesse novo cenário:
Antes o portfólio era focado em medicamentos, cuidados e perfumaria. Hoje, ampliamos as opções não só de produtos, mas também de serviços, alinhados à jornada de saúde integral das pessoas com produtos de beleza, alimentação saudável e testes genéticos, testes rápidos, vacinas, entre outros.
WENDEL FERNANDO GUEDES
Gerente regional da RaiaDrogasil
— Antes o portfólio era focado em medicamentos, cuidados e perfumaria. Hoje, ampliamos as opções não só de produtos, mas também de serviços, alinhados à jornada de saúde integral das pessoas com produtos de beleza, alimentação saudável e testes genéticos, testes rápidos, vacinas, entre outros. Estamos trabalhando para transformar nossas farmácias em lugares de cuidado e de prevenção a doenças.
A Farmácias Associadas funciona de forma um pouco diferente das grandes redes, já que são empresas independentes que se associam em busca de vantagens como negociação facilitada com a indústria e apoio de gestão e marketing. Mas também mantém um ritmo acelerado de crescimento e a implantação de "clínicas" destinadas a atender os clientes de forma mais ampla por meio de exames rápidos, aplicação de injeções e aconselhamento sobre uso de fármacos, entre outras ações.
— Tínhamos perto de mil farmácias no começo do ano no Rio Grande do Sul e em outros três Estados, e estamos chegando a 1,2 mil. O plano para o ano que vem é atingir 1.350 — revela o presidente da Farmácias Associadas, Ben Hur Jesus de Oliveira.
A disputa entre as gigantes do setor leva empresas emergentes como a Maxxi Econômica a seguir pelo mesmo caminho. Surgida em Canoas nos anos 1950, soma 150 estabelecimentos e tem como meta abrir uma dezena ao ano buscando o mesmo modelo de negócio das concorrentes: em vez de simples lojas de remédios, criar "hubs de saúde" com grande variedade de produtos e serviços ligados à saúde.
— Esse é um dos novos caminhos que estamos seguindo. Dentro das farmácias, já se pode fazer teste de covid, glicose, dengue, aferir pressão, receber injeção, até exame de bioimpedância, por exemplo — afirma o diretor de Expansão da Maxxi, Diones Marin.
Venda de medicamentos pela internet triplica, mas cai acesso via SUS no país
Além de investir em novos modelos de lojas físicas, o setor de farmácias busca ganhar terreno também no mundo virtual. A proporção de venda de remédios feita por meio da internet, em razão dos apelos de distanciamento e isolamento social dos últimos anos, triplicou em comparação ao período anterior à pandemia.
Esse é um dos novos caminhos que estamos seguindo. Dentro das farmácias, já se pode fazer teste de covid, glicose, dengue, aferir pressão, receber injeção, até exame de bioimpedância, por exemplo.
DIONES MARIN
Diretor de Expansão da Maxxi
Um levantamento da consultoria IQVIA compilado pelo Sindicato da Indústria Farmacêutica (Sindusfarma) aponta que a proporção de vendas online saltou de apenas 2,5% do mercado de medicamentos no varejo no período pré-covid, ainda em 2019, para 7,9% em maio deste ano — crescimento de três vezes, indicando uma mudança significativa no comportamento do consumidor.
Redes no Rio Grande do Sul se mobilizam para reforçar sua presença nesse novo nicho. O Grupo Panvel, que já tinha tradição de comercialização a distância por meio de um canal de atendimento por telefone, alcança um índice de 16% de negociação de remédios online, segundo o diretor de Operações Roberto Coimbra. Outras companhias com resultados menos expressivos projetam ampliar presença no universo digital no futuro próximo. A Maxxi Econômica, por exemplo, que apresenta uma taxa de 2%, tem planos de investimento em e-commerce destinados a quadruplicar essa cifra em até cinco anos.
Esse fenômeno ocorre em meio a um cenário em que o acesso a medicamentos por meio de políticas públicas vem caindo, e os gastos com saúde drenam uma boa parte dos orçamentos familiares. Um estudo feito por pesquisadores de um pool de instituições, como Universidade Federal de Pelotas (UFPel), de Santa Catarina (UFSC) e Fundação Getúlio Vargas (FGV), mostrou que a proporção de brasileiros que não conseguiram medicação gratuita via SUS cresceu 7,8 pontos percentuais e chegou a 44% entre 2013 e 2019.
Entre as razões apontadas para isso está a queda de financiamento público para políticas de saúde como o programa Farmácia Popular, por exemplo, que garante remédios sem custo e vem perdendo recursos nos últimos anos. Para o ano que vem, chegou a ser previsto um novo corte de quase 60% na proposta orçamentária encaminhada ao Congresso.
De outra parte, em abril deste ano, foi autorizado um novo reajuste de até 10,89% no preço dos remédios no país. O Sindusfarma, porém, sustenta que o aumento não é "automático ou imediato". Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apontam para um aumento médio de 13% no preço de "produtos farmacêuticos" em geral em 2022 até o momento, o que inclui outros artigos vendidos nesses estabelecimentos.