Enquanto as perdas provocadas pela estiagem nas lavouras não são consolidadas, o reflexo da escassez hídrica que atinge o Estado já é sentido na economia. Aumento de preço nos hortifrutigranjeiros e laticínios, retração do consumo no Interior e preocupação com a falta de alguns gêneros frequentam o radar dos setores que sofrem antes os efeitos multiplicadores da agropecuária.
Até o momento, pelo menos 200 prefeitos decretaram situação de emergência. Conforme o IBGE, em 2019, para 268 cidades — mais da metade (54,3%) dos municípios do Rio Grande do Sul — o setor primário respondia por 30% das respectivas economias. Isso sem incluir segmentos correlatos da indústria e dos serviços. Para 68 deles, o percentual é maior: supera os 50%.
A dependência não para por aí. O que acontece no agronegócio reverbera mais forte no Estado, explica o economista-chefe da CDL Porto Alegre, Oscar Frank. Na comparação entre as fatias da agropecuária nos produtos internos brutos (PIB), por exemplo, a participação no Rio Grande do Sul fica entre 8,5% e 9%. No Brasil, abaixo de 5%.
Quando considerados os setores correlatos, a representação sobe: 27% no PIB brasileiro, e no Estado alcança 40%. Segundo Frank, para Porto Alegre e Região Metropolitana, onde a influência é menor, as consequências também existem:
— Se há problema nas principais culturas do campo, freia-se a migração e a geração de renda nas cidades. A roda gira mais lenta para todos. Faltam produtos, preços aumentam e a atividade reduz.
A situação deve ser acompanhada de perto para traçar um cenário mais realista em 2022 no Estado.
Frank acrescenta que não é possível validar o tamanho da estiagem atual. Por outro lado, diz, existm reelatos "preocupantes" no que se refere ao milho e à soja.
Sem números apurados, a economista-chefe da Fecomércio-RS, Patrícia Palermo, lembra que, para o comércio de muitos municípios, as perdas com estiagem, em 2020, foram piores do que as ocasionadas pelas restrições de circulação impostas durante a pandemia. Segundo ela, quebras de safra diminuem a produção em escala. Com isso, comprometem-se a renda, as contratações, os investimentos e o apetite do consumidor por outros tipos de bens e serviços.
— Historicamente, estiagens são problemáticas para a atividade no Interior. Tanto que, por aqui, costuma-se dizer que temos dois governadores: um eleito e o outro é São Pedro — afirma Patrícia.
Presidente da Associação dos Produtores da Ceasa de Porto Alegre, Evandro Finkler antevê a falta de produtos e alta para os preços. Somente entre os dias 11 e 18 de janeiro, em 18 das 35 categorias que integram o levantamento semanal, os valores já foram elevados (confira as maiores altas na tabela abaixo). Ou seja, o aumento já chegou para mais da metade (51,4%) dos itens.
Na Capital, a Ceasa é abastecida por 232 municípios. Recebe produtos de outras 570 cidades de 21 Estados. Em 2020, movimentou R$ 1,7 bilhão, com 634 mil toneladas vendidas — 69,5% produzidas no Rio Grande do Sul.
No cenário de baixa oferta em produtos como tomate, cenoura e beterraba, a saída, diz o dirigente, seria recorrer a Minas Gerais, onde, porém, há problema com enchentes. Em outros itens, relata, será difícil segurar a alta, pois as margens estão espremidas pelo custo dos insumos.
Já na Serra, em Caxias do Sul, os agricultores da Ceasa apontam risco de escassez de produtos como pimentão, alface, tomate e temperos. Além disso, a disponibilidade é reduzida em brócolis, espiga de milho e couve-flor.
Alguns (agricultores) já pararam de trazer mercadoria, porque afetou mais quem não tem condições de trabalhar com armazenamento de água
ALCEU THOMÉ
Gerente da Ceasa em Caxias
— Alguns (agricultores) já pararam de trazer mercadoria, porque afetou mais quem não tem condições de trabalhar com armazenamento de água — explica o gerente da Ceasa em Caxias, Alceu Thomé.
O agricultor Alencar Deon, de Mato Perso, em Flores da Cunha, vende produtos na Ceasa desde 2007 e diz nunca ter visto situação como esta. Costumeiramente, nesta época, teria à disposição brócolis e couve-flor, além de outros vegetais, mas conta que agora só tem previsão de ter essas variedades à disposição novamente no meio do ano, quando prevê que os repositórios de água serão suficientes para o cultivo.
— O movimento do comprador é o mesmo, mas, às vezes, eles não encontram produto suficiente. Por exemplo, hoje (última quinta-feira), brócolis e couve-flor faltaram. Cenoura e beterraba também a gente vê que falta — explica.
Como a previsão é de que fevereiro seja de escassez de chuva, a perspectiva também não é boa para os agricultores e, consequentemente, para os consumidores.
— Se continuar essa estiagem, vai faltar mercadoria, porque a coisa não está fácil. O sol é muito forte. Tu molha, mas, mesmo assim, de tão forte que é o sol, chega a torrar a mercadoria. Ele queima o tomate no pé — exemplifica o agricultor Maicon André Saccaro, de Lajeado Grande, em São Francisco de Paula, onde produz brócolis, couve-flor, cenoura e tomate.
Pressão sobre os derivados de leite
Na produção de leite, atividade presente em 451 das 497 cidades gaúchas, a elevação de custos e a redução da oferta devem encarecer os laticínios. Levantamento da Emater contabiliza que 1,6 milhão de litros deixam de ser captados, por dia, no Estado, em razão da estiagem. Significa R$ 200 milhões em dinheiro que deixarão de circular pelos municípios do Estado, estima o presidente do Sindilat-RS, Darlan Palharini.
O cenário, afirma, ganha complexidade nas propriedades menores — aquelas com captação diária de 300 litros a mil litros de leite. Esse tipo de área responde por quase 60% da produção.
Nas maiores, acima de 2 mil litros, a reserva de alimentação, armazenada para o inverno, tem sido usada, agora, para compensar perdas, o que amplia as incertezas.
Com a quebra na safra de milho, estimativas apontam que a saca (60 quilos) do grão, comercializada, hoje, acima de R$ 95, supere com folga os R$ 100. Isso demandaria, segundo Palharini, medidas emergenciais.
Entre os exemplos, o dirigente cita a necessidade de disponibilizar acesso ao "milho balcão" aos produtores. Essa modalidade, com preços fixados pelo governo federal, ajudaria a garantir a silagem (ração) para o gado leiteiro, bem como a continuidade da cadeia produtiva.
Outra situação diz respeito à entressafra no Sul. No período, derivados de Minas Gerais e Goiás costumam ganhar escala no mercado. O problema é que por lá, em razão de condições opostas às daqui, o excesso de chuva prejudica o setor, diminui a oferta e pressiona ainda mais a alta nos preços.
"Sabemos que a safra será muito ruim ou péssima"
O economista-chefe da Farsul, Antônio da Luz, diz que é cedo para falar no tamanho das perdas. A entidade reúne dados e pretende divulgar números mais precisos sobre estiagem neste mês. A situação, explica, é mais clara para o milho, entretanto, bastante incerta na soja. Nessa cultura, comenta Luz, existem áreas plantadas, com prejuízo, e as que não foram semeadas geram insegurança quanto à qualidade dos grãos.
Sabemos que a safra será muito ruim ou péssima, mas é preciso esperar para avaliar
ANTÔNIO DA LUZ
Economista-chefe da Farsul
— Não se sabe o que vai acontecer na soja, só que precisamos de chuva para salvá-la. Algumas coisas, sim, nós sabemos. Sabemos, por exemplo, que não teremos uma safra ótima, boa ou ruim. Sabemos que a safra será muito ruim ou péssima, mas é preciso esperar para avaliar — antecipa.
Com base em cálculos, a partir da matriz insumo/produto, o economista afirma que é possível mensurar que para cada R$ 1 gerado da porteira para dentro, outros R$ 3,20 estão nos setores que atuam fora das propriedades. Ou seja, os danos para as cidades são três vezes maiores do que os verificados nas lavouras.
Em São Borja, na Fronteira Oeste do Estado, um dos locais mais castigados por altas temperaturas e falta de chuva, os reflexos são visíveis no consumo. Presidente da Associação Comercial do município, Neronei Cargnin relata retração e preocupação entre os varejistas.
Para ele, na esteira da seca, há risco de não cumprimento dos contratos recentes de arrendamento de soja, em áreas antes utilizadas pela pecuária e arroz. Caso se confirme, o efeito imediato seria menos dinheiro em circulação na cidade.
Mais tarde, avalia o dirigente, surgiriam dificuldades para retomar culturas anteriores. Isso, principalmente, na criação de gado, pois é necessário secar todo o campo de pasto nativo para preparar o plantio de novos grãos para a agricultura.
*Colaborou Flavia Noal