Em março de 2020, os maiores fabricantes de vinho do Brasil se reuniram em Bento Gonçalves para discutir uma situação preocupante. Eles recém tinham colhido 500 milhões de quilos da melhor uva já produzida no país, mas não sabiam como dar vazão à chamada “safra das safras”. Com o mercado estagnado havia três anos, os estoques permaneciam cheios e mais 354 milhões de litros estavam prestes a ser engarrafados.
A reunião terminou sem qualquer horizonte. Na semana seguinte, o temor ganhou contornos de pânico com o surgimento da pandemia de covid-19 e a súbita paralisação da economia mundial. O prenúncio era de retração nas vendas e, sem capacidade de armazenamento, muitos produtores já cogitavam arrancar da terra parte dos vinhedos.
Para surpresa geral, em maio as encomendas começaram a aumentar, saltaram em junho e se mantiveram em alta no restante do ano. Ao cabo de 2020, as vendas haviam crescido 56% nos vinhos finos e 19% nos vinhos de mesa. Como as importações também avançaram 28%, o diagnóstico foi óbvio: os brasileiros estavam tomando mais vinho.
A pandemia arrefeceu, mas o consumo não. Somente nos seis primeiros meses de 2021, já se vendeu praticamente a mesma quantidade de vinho fino comercializada em todo 2019 e 41% a mais do que no mesmo período do ano passado.
Coroando o bom momento, a safra deste ano deve ser a maior da história, com uma colheita estimada em 800 milhões de quilos de uvas. De quebra, pela primeira vez em 26 anos os vinhos finos superaram os espumantes em premiações internacionais, ao conquistar 166 medalhas nas competições realizadas em 2020. Numa combinação perfeita, o setor concilia elevação do prestígio, da qualidade, da produção e do consumo.
— O vinho vive realmente um auge — resume o presidente da União Brasileira de Vitivinicultura (Uvibra), Deunir Argenta.
A revolução silenciosa que movimenta os parreirais não surgiu por acaso. É bem verdade que quase não houve avanços durante 250 anos, da primeira videira plantada por jesuítas espanhóis em território gaúcho, em 1626, na redução cristã de São Nicolau, à chegada dos imigrantes italianos à Serra, em 1875. Todavia, em 1900 o Rio Grande do Sul já enviava 180 mil litros para os demais Estados e via surgir em Porto Alegre a primeira estação experimental vitícola, com a reprodução de mudas viníferas, como merlot, malbec, cabernet franc e vernacia.
Da produção artesanal, restrita aos porões das casas de família, surgia não só o vinho que abastecia os armazéns do país, mas também novas tecnologias que décadas depois ainda impulsionam a economia da região. Foi para transportar o líquido aos mercados consumidores que se introduziu as rodas raiadas e os barris, dando origem à pujante indústria moveleira local. Das ferraduras presas às mulas que tracionavam as carroças, nasceu um grandioso complexo metalmecânico.
— Foi assim que essa região se industrializou. A arte de construção do barril foi um desafio, outro foi como transportá-lo. Toda a diversidade industrial que hoje a Serra tem saiu da sabedoria que o vinhateiro precisa ter para produzir uva e elaborar vinho – explica o economista Rinaldo Dal Pizzol, sócio da vinícola Dal Pizzol e autor do monumental Memórias do Vinho Gaúcho, tríptico historiográfico que disseca em 750 páginas a trajetória da vitivinicultura na região.
Esse conhecimento ancestral foi sendo transmitido de geração em geração, mas a venda era a granel e a qualidade do vinho, questionável. Pouco se via uvas viníferas e o cultivo das espécies híbridas era em latada, sistema horizontal em que as folhas cobrem quase todas as frutas, dificultando a exposição ao sol e, consequentemente, a geração de açúcar. Foi a partir dos anos 1960, com a fundação da primeira escola de enologia, que a produção se sofisticou. O impulso fundamental viria no final dos anos 1980, com a adesão ao Mercosul e o fim do protecionismo ao vinho nacional.
Uma das pioneiras na região a cultivar uvas viníferas, a Miolo foi fundada em 1989 nos mesmos 24 hectares adquiridos um século antes pelo patriarca da família, Giuseppe Miolo. Hoje é a maior produtora de vinhos finos do país, com 10 milhões de garrafas e R$ 185 milhões anuais de faturamento. Dos atuais mil hectares de vinhedos, brotam 40 variedades de uvas, matéria-prima aos 120 rótulos da empresa.
— A gente apostava nas viníferas como diferencial, mas houve uma crise e as empresas passaram a comprar uvas mais baratas. Decidimos fabricar o próprio vinho, achando que era mais fácil de vender do que uva. Grande engano. Levamos quase quatro anos para vender as primeiras 8 mil garrafas — lembra Adriano Miolo, diretor-superintendente do grupo.
Até os anos 1980, boa parte dos vinhos produzidos na região era destinada à fabricação de conhaque. Campeões nacionais de venda à época, os conhaques Presidente e Dreher eram fabricados em Bento Gonçalves por duas vinícolas pioneiras na cidade, a Salton e a Dreher. Sozinha, esta última chegou a produzir 70 milhões de litros vinho ao ano e responder por 25% do PIB local.
Para aprimorar a produção, a empresa construiu um centro tecnológico numa propriedade de 50 hectares em Pinto Bandeira, na qual testava a adaptação de novas variedades de uvas. Mas a Dreher acabou vendida em 1973 e teve a sede transferida para Sorocaba (SP), onde aderiu ao uso de cana-de açúcar e gengibre como matéria-prima para o conhaque, barateando os custos e tornando ociosos os parreirais da serra gaúcha.
Genro do fundador e diretor-industrial do grupo, Ayrton Giovannini retornou ao RS e recomprou os 50 hectares em Pinto Bandeira, decidido a fazer do local uma vinícola. Na mesma época, circulava pela região um chileno com fama de maluco chamado Mario Geisse. Juntos, Geisse e Giovannini iriam estabelecer a reputação da localidade na produção de espumantes, reconhecidos no mundo inteiro pela qualidade comparável à da região de Champagne, na França.
Apelidado no Chile de “farejador de terroirs”, Geisse veio ao Brasil para instalar a unidade nacional da Möet & Chandon. Revirando terra de picareta em mãos morro acima na busca das melhores condições para cultivo de chardonay e pinot noir, Geisse deparou em Pinto Bandeira com um solo da era cretácea, formado por rochas de basalto de origem vulcânica em decomposição. Tal condição, encontrada numa altitude de 800 metros, o dobro do Vale dos Vinhedos em Bento Gonçalves, é perfeita para garantir uma fruta madura com elevado índice de acidez e baixo de açúcar, fundamental à produção de espumante de alto nível.
Após a descoberta, a temporada de Geisse na Serra, planejada para durar três anos, se tornou perene. Ele montou a unidade da Möet & Chandon, fundou a própria empresa, a Cave Geisse Vinhos de Terroir, e ainda ajudaria a criar mais de 20 vinícolas entre Chile, Uruguai, Argentina e Brasil. Chamado de “el loco chileno” pelos produtores locais, transformou 55% da propriedade em área de proteção permanente e implantou um sistema de cultivo ecoeficiente que colhia 8 mil quilos de uva por hectare ante os 40 mil dos vizinhos.
O trunfo do champenoise
Com produção anual de 450 mil garrafas e venda exclusiva para lojas especializadas e restaurantes, a Geisse é hoje a mais prestigiada produtora brasileira de espumantes, única a ter exemplares indicados em bíblias do setor, como o Atlas do Vinho e o livro 1001 Vinhos para Beber Antes de Morrer. Colecionando premiações e elogios de respeitados sommeliers mundiais, as encomendas são quatro vezes maiores do que a capacidade de produção, mas a filosofia da empresa é manter o mesmo tamanho, elevando apenas o grau de excelência em cada taça.
— No mundo do vinho, é o tempo que dá o tempero do valor agregado. A região de Champagne tem 500 anos produzindo, superando guerras e crises econômicas. Aqui temos 42 anos seguindo com conceitos básicos de qualidade. Isso no mundo do vinho não é nada, é um neném engatinhando. O melhor ainda está por vir — pontua Daniel Geisse, filho de Mario e diretor de marketing da vinícola.
Lindeira à propriedade de Mario, a Don Giovanni segue fielmente os mesmos preceitos de qualidade e exclusividade. A exemplo dos vizinhos, a empresa fundada por Ayrton Giovannini adota técnicas de biodinâmica na manutenção dos parreirais, pulverizando as folhas com chá de urtiga para afastar as formigas e plantando girassóis para atrair os pássaros que costumavam se alimentar das uvas maduras.
O grande trunfo das duas vinícolas é o champenoise, o método tradicional de fabricação do novo mundo, pelo qual o espumante passa por uma segunda fermentação dentro da garrafa para que as leveduras produzam gás carbônico. Praticamente artesanal e muito mais lenta, a produção envolve o manejo individual de cada garrafa, que precisa sofrer um giro manual de 90º todos os dias por cerca de dois meses.
É com essa metodologia e com a obediência a demais critérios técnicos de geolocalização e cultivo que Pinto Bandeira está prestes a obter a segunda Denominação de Origem (DO) da serra gaúcha. O pedido está tramitando no Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI) e pode sair ainda este ano, conferindo uma rara certificação de qualidade ao setor. Atualmente, apenas o Vale dos Vinhedos possui DO para vinhos no país. Para Pinto Bandeira, a concessão da DO exige fabricação pelo método champenoise, com uvas chardonay e pinot noir numa área de 80 quilômetros quadrados e altitude acima de 550 metros.
— Antigamente se falava: vamos plantar cabernet sauvignon porque é a mais consumida no mundo. Hoje a gente olha para o terroir, para as condições específicas que fazem da bebida uma coisa única. Dá mais trabalho, leva mais tempo, mas o consumidor percebe como o produto está fantástico — afirma Daniel Panizzi, um farmacêutico que trocou os corredores esterilizados do Hospital Moinhos de Vento pela condução dos vinhedos da Don Giovanni.