— Nunca se vendeu tanto vinho no Brasil quanto nesses últimos dois anos. Prova disso é que neste primeiro semestre de 2021 vendemos a mesma quantidade de todo 2019 — afirma o presidente da União Brasileira de Vitivinicultura, Deunir Argenta.
Para o presidente da Associação Brasileira de Enologia, André Gasperin, o apreço pela qualidade em toda a cadeia produtiva ajuda a explicar o aumento no consumo de vinhos e dos espumantes — este último registrou avanço de 48% nas vendas no primeiro semestre de 2021.
Aos 40 anos e à frente da vinícola Dom Affonso, de Caxias do Sul, Gasperin conta que a chegada de uma nova geração às propriedades provocou um choque de culturas, mas resultou em mais pesquisa, tecnologia e lucratividade.
Uma das mudanças mais controversas foi a troca do secular cultivo em latada pelo método das espaldeiras, em que as videiras ficam alinhadas verticalmente. A técnica permite maior insolação da fruta, diminuindo a quantidade de água e gerando mais açúcar.
A produtividade por hectare diminui — em alguns casos, pode chegar a 25% da latada —, mas garante maior graduação alcóolica e, por fim, maior remuneração ao produtor. Na safra de 2020, por exemplo, cada viticultor recebeu em média 30% de ágio por quilo graças à qualidade das frutas.
— As novas gerações vieram com a mentalidade de fazer vinhos competitivos, diferentes. Elas buscam o terroir, a tipicidade do vinho brasileiro sem querer imitar os de outros países. Quando veio a pandemia e o consumidor deu uma chance ao vinho brasileiro, encontrou um produto muito bom e com preço justo. Ele provou, gostou e voltou a comprar — explica Gasperin.
Em alguns casos, esse retorno tem encontrado gôndolas vazias. A demanda foi tamanha nos últimos meses que muitas vinícolas não estão conseguindo atender as encomendas. Na semana passada, enquanto comemorava ter alcançado nos sete primeiros meses de 2021 um faturamento duas vezes superior ao do ano passado, a Luiz Argenta suspendeu todos os pedidos de novos clientes.
Com 55 hectares de vinhedos próprios em Flores da Cunha, a empresa já está comprando uvas de terceiros e até dezembro deve atingir a marca de 400 mil garrafas, meta estabelecida para 2025. O número de funcionários triplicou e já há dificuldade de encontrar mão de obra qualificada no município. A Miolo, que em junho do ano passado esteve na iminência de arrancar 150 hectares de videiras, agora planeja semear até cem novos hectares em suas quatro unidades.
— Numa perspectiva de futuro, já se prevê falta de uvas destinadas a vinhos finos — comenta o presidente do Conselho de Planejamento e Gestão da Aplicação de Recursos Financeiros para Desenvolvimento da Vitivinicultura do Estado (Conseviti-RS), Luciano Rebellatto.
Falta de garrafas é um gargalo
É para atender esse crescimento do mercado que se projeta investimentos da ordem de R$ 1 bilhão na Serra. A parte mais significativa do aporte, R$ 900 milhões, pretende solucionar um dos gargalos do setor: a escassez de garrafas. Um consórcio de investidores está estudando a demanda e já prospecta locais para a instalação do parque industrial, com capacidade de produzir 1 milhão de vasilhames ao dia. Na Aurora, uma das maiores cooperativas da região, com 70 milhões de litros anuais, a perda de receita causada pela falta de insumos em 2021 é de R$ 50 milhões.
— Estamos há três meses sem produzir Keep Cooler porque não tem garrafa. Também nos falta vasilhames para duas outras marcas, Marcus James e Saint Germain. Tem vinho, tem uva, tem espumante, tem tudo, só não tem garrafa. Já cancelamos vários pedidos — desabafa o superintendente da Aurora, Hermínio Ficagna.
Fundada em 1931, fruto das angústias compartilhadas pelos viticultores ao final da missa de cada domingo, a Aurora começou com 16 produtores somando as colheitas. Hoje, 1,1 mil associados dão suporte à companhia, cujo portfólio de 213 itens é exportado para 35 países. O faturamento saltou de R$ 200 milhões em 2014 para R$ 700 milhões em 2020. Para o centenário, a meta é alcançar a cifra de R$ 1 bilhão.
Nesse planejamento, a empresa descobriu que metade das famílias associadas não tinha sucessão no campo. Criou-se então um programa de treinamento para os jovens e novos métodos de trabalho para os mais velhos. As antigas caixas de 20 quilos, usadas no transporte da uva da videira à indústria, foram substituídas por bins de 400 quilos, diminuindo o esforço físico dos produtores e o número de consultas médicas a cada fim de safra.
Outro fator que ajudou a manter o jovem no campo foi a ascensão do enoturismo. O segmento representa uma parcela crescente na receita das propriedades e também experimentou um boom quando a pandemia registrou um primeiro recuo, em setembro do ano passado. À época, a Miolo chegou a registrar dois quilômetros de congestionamento na entrada da vinícola. Na Don Giovanni, a média mensal de turistas saltou de 800 para 3,3 mil, antecipando um investimento de R$ 1,5 milhão na construção de um novo restaurante.
O fenômeno se repete mesmo em circuitos menos badalados. Situada no distrito Faria Lemos (de Bento Gonçalves), no lado oposto ao Vale dos Vinhedos, a Cristofoli Vinhos de Família driblou um eventual desfavorecimento geográfico com criatividade. As experiências oferecidas nos dois hectares da propriedade garantem metade do faturamento anual, chegando a 80% no verão. O principal programa, o Edredon nos Parreirais, no qual um casal saboreia uma garrafa de espumante e uma tábua de frios debaixo das videiras, praticamente não tem mais vagas em setembro.
A 37 quilômetros dali, no distrito de São Roque, em Farroupilha, a Vinhos Slomp não mantém qualquer estrutura turística, mas quase todo dia alguém bate à porta querendo apreciar a principal atração do parreiral. Em meio a um terreno em declive ao lado da casa, uma videira retorcida exibe invejável saúde aos 140 anos de idade.
Plantado pelo patriarca da família tão logo chegou da Itália, em 1881, o pé de uvas isabel segue gerando matéria-prima para o vinho, o suco e a grapa produzida nas 25 pipas de madeira da propriedade. Ao lado do filho Marco, Ivan Slomp resume o espírito que move as 15 mil famílias envolvidas na vitivinicultura gaúcha, um setor responsável por movimentar cifras bilionárias enquanto serve as mais inebriantes taças:
— Teve gente até da Itália querendo comprar essa parreira, mas não vendo. Se é bonita lá, imagina aqui. Ela sustentou quatro gerações da minha família. Minha maior alegria é acompanhar essa planta, ver brotar, depois colher, podar, amarrar. É uma dádiva, a coisa mais linda da vida.