Presente em 72 municípios gaúchos, o braço de distribuição da Companhia Estadual de Energia Elétrica (CEEE-D) caminha para a privatização mergulhado em uma dívida bilionária. O buraco nos cofres é estimado em cerca de R$ 7 bilhões e, segundo analistas, está relacionado a fatores que ficaram visíveis em diferentes períodos da trajetória da estatal. Problemas de gestão, desembolsos com ações judiciais e despesas com funcionários do tempo em que a CEEE era uma autarquia ajudam a explicar o desequilíbrio (mais detalhes no histórico abaixo).
Apesar das dificuldades, a distribuidora tende a atrair interessados no leilão de privatização, agendado para 3 de fevereiro de 2021. Um dos pontos que sustentam a projeção é o potencial do mercado da companhia, bastante concentrado na Região Metropolitana, indicam analistas. Na visão deles, o desembarque de investidores pode resultar em aumento de aportes na empresa e, consequentemente, ganhos de eficiência.
A CEEE-D distribui energia para cerca de 4 milhões de pessoas, em 1,7 milhão de unidades consumidoras, na Grande Porto Alegre e nas regiões Sul, Campanha e Litoral. A Região Metropolitana responde por 57% do consumo e 59% do faturamento. Ou seja, a operação mais concentrada, em tese, favoreceria a busca por eficiência.
— Sem dúvida, no setor de distribuição de energia, a concentração facilita. Há mais funcionalidade para o investidor. Hipoteticamente, em uma região de consumo muito disperso, é necessário levar uma linha de distribuição bem maior — pontua Claudio Sales, presidente do Instituto Acende Brasil.
Nos últimos anos, a concessão da CEEE-D esteve ameaçada pela penúria financeira e pelas dificuldades para alcançar indicadores de qualidade estipulados pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), que regula o setor. A maior parte da dívida da companhia é de ICMS, cujo ritmo de crescimento vem se intensificando. A previsão é de que o atraso no repasse do tributo chegue a R$ 4,4 bilhões até abril de 2021, quando o comprador deve assumir a estatal.
Para buscar a venda, a CEEE-D teve de receber aporte de capital do governo do Estado de cerca de R$ 3,3 bilhões. A maior parte, em torno de R$ 2,8 bilhões, vem do perdão parcial da dívida de ICMS. Assim, o novo acionista pagaria, de forma parcelada, o restante do imposto devido (R$ 1,6 bilhão). A operação, segundo o governo, é necessária para garantir o preço mínimo simbólico de R$ 50 mil no leilão de fevereiro.
— Do ponto de vista econômico e financeiro, a companhia tem dificuldade para fazer os ajustes necessários — diz o secretário estadual do Meio Ambiente e Infraestrutura, Artur Lemos Júnior. — Temos de encarar o problema de frente, e não tapar o sol com a peneira —acrescenta.
Para André Trein, que acompanha o setor e é sócio da Bateleur, empresa especializada em fusões e aquisições, a privatização ocorre em um momento de "confluência de fatores":
— O Estado está em condição fiscal apertada, e a CEEE-D tem grande endividamento. O governo abre mão de um pedaço do ICMS para recuperar outro.
Críticas no meio sindical
No meio sindical, a operação é alvo de críticas. Presidente da Central Única dos Trabalhadores no Estado (CUT-RS), Amarildo Cenci lamenta a venda de uma estatal em setor de grande peso na economia:
— Entendemos que, em um país com pobreza como o Brasil, alguns ativos têm de ser controlados pelo Estado.
Consultor independente na área de energia, Ronaldo Lague ressalta que as dificuldades financeiras da CEEE-D se intensificaram ao longo das décadas – o Grupo CEEE nasceu a partir da Comissão Estadual de Energia Elétrica, criada em 1943.
Ex-funcionário da companhia, Lague entende que o Estado "até pode vender" o braço de distribuição, mas reprova a privatização da CEEE-GT. Em situação mais confortável, o braço de geração e transmissão de energia deve ir a leilão depois da CEEE-D.
O histórico da CEEE
1943 – É criada a Comissão Estadual de Energia Elétrica (CEEE), então subordinada à Secretaria de Estado dos Negócios das Obras Públicas
1952 – A CEEE é transformada em autarquia – tipo de instituição pública que reúne poder sobre setor específico
1961 – Lei estadual, no governo Leonel Brizola, transforma a autarquia em sociedade por ações, denominada Companhia Estadual de Energia Elétrica (CEEE). À época, a lei estipulou que os servidores da antiga autarquia passariam a ser empregados da CEEE. Ex-autárquicos tiveram preservados direitos como o de ganhar, na inatividade, igual valor pago ao pessoal da ativa – a CEEE teria de completar o valor do benefício
1963 – A companhia vira sociedade de economia mista (ações da estatal são compartilhadas entre Estado e mercado, mas o poder público é o maior detentor dos papéis com direito a voto)
1981 – O custo com ex-autárquicos deixa de ser reconhecido na tarifa de luz pelo órgão regulador do setor. Os gastos, então, passam a gerar grande impacto no caixa da empresa ao longo dos anos
1997 – Leilão no governo Antônio Britto privatiza dois terços da companhia, dando origem à RGE e à AES Sul, hoje unificadas. À época, foram arrecadados R$ 3,14 bilhões. Operação reforçou o caixa do Piratini, com possíveis vantagens no atendimento ao consumidor, mas encolheu a capacidade de geração de receitas da CEEE, que também herdou o passivo do grupo
2006 – É criada a holding CEEE-Participações. Na prática, funciona como controladora da CEEE-D, que faz a distribuição de energia, e da CEEE-GT, que atua na geração e na transmissão de eletricidade
2015 – A concessão da companhia é renovada por 30 anos, com cláusulas de desempenho financeiro e de qualidade de serviço. Dificuldades de caixa ameaçam futuro da CEEE-D
2019 – Assembleia Legislativa autoriza a privatização
2020 – Edital da venda é publicado
2021 – Leilão da CEEE-D é agendado para fevereiro