Sem quem os afugente, patos passeiam donos de si pelas calçadas do Lago Negro. O movimento genuíno das aves contrasta com o das réplicas boiando inertes na água verde de um dos mais procurados espaços públicos de Gramado. No centro, a rua coberta esvaziada parece até maior do que seus 100 metros de extensão que ligam a Avenida Borges de Medeiros à Rua Garibaldi. A Catedral de Pedra, na vizinha Canela, ganha ar melancólico quando fotografada de longe sem aquele amontoado de câmeras viradas para a construção em estilo inglês. Imersos na rotina, moradores sequer espiam sua imponência.
As duas principais cidades turísticas da Serra, escassas de visitantes, congelaram economicamente por conta de um potencial visitante indesejável. O coronavírus ainda não infectou nenhum morador, mas exigiu medidas de distanciamento social de impactos econômicos sensíveis, sobretudo para quem vive à espera de hóspedes.
O turismo representa 85% da economia local e o cálculo da prefeitura de Gramado é de que o setor tenha deixado de faturar, somente na Páscoa, R$ 100 milhões. A expectativa de 350 mil visitantes naquele fim de semana, projetada antes da crise, se resumiu a 1.200 carros. Os símbolos pascais nas ruas quase desertas ajudam a elevar a autoestima das duas comunidades, mas não aliviam a frustração de quem vê nas prateleiras 40% da produção de chocolate gramadense sem comprador.
Lojas e restaurantes, depois de quase 30 dias fechados, estão liberados para reiniciar as atividades, mas alguns empresários preferem manter a placa de fechado na porta: “Abrir para quem, se não tem turista?” questionam aqueles cuja atividade é voltada especialmente aos visitantes de outras cidades, estados ou países. O entendimento desses é que, enquanto a rede hoteleira e os parques estiverem impossibilitados de operar — o que deve se permanecer ao menos até 30 de abril— manter as portas chaveadas trará menos prejuízos.
Os setores empresarial, sindical e público mostram-se sincronizados no discurso. Conforme o presidente do Sindicato Patronal da Hotelaria, Restaurantes, Bares, Parques, Museus e Similares da Região das Hortênsias (Sindtur Serra Gaúcha), Mauro Salles, uma enquete feita com associados mostrou que a categoria quer paciência.
— Não é o momento de abrir. E não falo isso só pela saúde, mas pela baixa procura. As pessoas não estão propensas a viajar — avalia, respaldado pela opinião da categoria.
Carro-chefe da economia na região, o setor emprega cerca de 4 a 5 mil trabalhadores nas duas cidades. O sindicalista avalia que houve menos demissões do que se esperava por conta de acordos coletivos que permitiram aos empregados capacitarem-se pela internet enquanto são apoiados financeiramente pelo Fundo de Amparo ao Trabalhador por até três meses. Teve empresário dando férias ou suspendendo contratos de trabalho para evitar demissões.
— Várias empresas aproveitam para rever seus quadros, mas ninguém quer perder empregados com qualificação. Repor, depois, é muito difícil — diz Salles.
Ainda assim, 235 rescisões foram homologadas entre 6 e 17 de abril no Sindicato dos Trabalhadores do Comércio Hoteleiro e Similares de Gramado (Sindihoteleiro), segundo o vice-presidente, Rodrigo Callais. E o número, acredita ele, está subestimado, já que rescisões de contratos inferiores a seis meses não precisam ser assinadas no sindicato.
— Sabemos que as empresas demitem primeiro quem está em contrato de experiência, até pelo custo rescisório ser menor. Esse número (235) já é alto e até o fim do mês tende a chegar a 20% da categoria demitida — lamenta.
Em Canela, assegura o presidente do Sindicato dos Empregados no Comércio Hoteleiro e Similares da cidade, Enedir Barreto, ainda não houve demissões em massa, mas diz que está por um fio de acontecer:
— A situação é critica. Aqui, 95% das empresas são pequenas e não vão sobreviver se não houver uma solução imediata. A gente vê o lado da empresa. O hotel ficar fechado é triste, por isso é preciso pensar em soluções estratégicas.
E as saídas para reaquecer a economia de Canela e Gramado estão na ponta da língua dos empresários e dos dois secretários de Turismo. Ideia é remodelar todo o setor turístico e direcionar promoções a visitantes gaúchos e catarinense. Uma reserva no hotel pode vir com um jantar incluso ou com um passeio gratuito em algum dos parques. Todos os eventos do segundo semestre, entre eles o Natal Luz, o Sonho de Natal e o Festival de Cinema de Gramado, serão repensados para oferecer novas experiências ao público.
Canela elaborou um plano estratégico a ser executado a curto, médio e longo prazos para a restruturação do turismo e que inclui desde capacitação dos trabalhadores e do empresariado até avaliação dos ponto fracos do município. Entre as fraquezas, o comitê que capitaneou o estudo identificou que a marca Canela pode ser fortalecida. Estuda, então, vender antecipadamente vouchers pré-pagos de produtos e serviços em preços promocionais para gerar fluxo de caixa imediato e prazo de resgate de, pelo menos, seis a 12 meses. Outra ação prospectada é a flexibilização da política de cancelamento e remarcação, com as opções expostas de maneira claras ao cliente. Prefeitura quer, também, realizar um mês inteiro com preços excepcionais, em estilo black friday, para incentivar o retorno dos turistas próximos. Sugestão é que o black month seja em julho.
—Vamos sair muito mais forte de disso, vocês vão ver — diz o secretário de Turismo de Canela, Ângelo Sanches.
— Essa crise trará mudanças que deixarão Gramado ainda mais fortalecida. Vamos voltar mais fortes, oferecendo experiências inesquecíveis. Por isso é muito importante que os gaúchos prestigiem essa retomada, que olhem para as belezas do nosso Estado. Precisamos dessa solidariedade — complementa o secretário de Turismo de Gramado, Rafael Carniel de Almeida.
A prefeitura gramadense esta revendo roteiros rurais, elaborando novos programas para mostrar ao turista “o lado desconhecido da cidade”.
“Quem está todo esse tempo em casa, vai precisar reforçar o romance”
Sem receber hóspedes desde 20 de março, o dono do hotel pousada Blumenberg, em Canela, vai fazendo malabarismo para manter os funcionários empregados e aproveita o tempo ocioso para projetar a retomada das atividades a pleno, ainda sem data certa para acontecer. Não fosse o coronavírus, o estabelecimento a poucos metros da Igreja Matriz de Nossa Senhora de Lourdes, a Catedral de Pedra, estaria com 50% dos 32 quartos ocupados nesta época.
— Só em abril que começa o movimento mais intenso do ano. É um mês de ocupação muito boa, por causa dos feriados e da Páscoa. Fevereiro é fraco, e março tem uma retomada muito lenta ainda — explica o sócio-proprietário Ditmar Bellmann.
Enquanto espera pela calmaria da pandemia e pela agitação turística na cidade, revê práticas de higienização no hotel e nos leitos, novos métodos de checkin — talvez por fichas — para não haver acúmulo de pessoas na recepção, outras formas de apresentar o café da manhã e o reposicionamento das mesas, para assegurar o distanciamento. Os funcionários também passarão a trabalhar mais protegidos, com novos equipamentos de proteção individual, como máscaras.
E para atrair a clientela, promete mais do que desconto. Alinhado com a prefeitura e o sindicato da categoria, sugere criar novos produtos e formas de consumo apresentando, por exemplo, diárias que incluam passeio nos parques ou um programa mais intimista.
— Pode ser um jantar romântico, a luz de velas. Para quem está todo esse tempo em casa, vai precisar dar uma saída, fazer um passeio diferente, reforçar o romance. São formas de atrair o cliente oferecendo outros benefícios — comenta.
Dos 12 funcionários que tinha, um foi demitido. Os demais estão em férias, trabalhando com jornada reduzida ou fazendo cursos de qualificação para auxiliarem Ditmar a alavancar o negócio.
— Temos a preocupação muito grande em manter a renda dos funcionários, mesmo com a nossa receita sendo zero. Por sorte, os bancos estão oferecendo crédito para capital de giro com carência grande, para começar a pagar em 2021 e com juro baixo. Assim, a gente consegue evitar algumas rescisões, que também custam caro para nós. Estamos utilizando todos os recursos disponíveis — conclui.
“Quando os clientes voltarem, apresentaremos novidades”
Quase 30 dias de portas fechadas deram cara nova ao Empório Canela, restaurante comandado por dois sócios, entre eles, Fernanda Chies. O período de quarentena desvelou habilidades manuais nunca antes postas à prova. Não, ao menos, naquele ambiente de trabalho: um restaurante que vende livros, vinhos e cervejas. Em vez de utensílios de cozinha, teclados e mouses, as mãos seguraram, no período mais crítico de distanciamento social, objetos de construção que permitiram redecorar o espaço, pintar paredes, a fachada, trocar móveis de lugar e fazer pequenos reparos.
— Chorar não iria mudar a realidade. Então, falei para o pessoal: 'vamos ocupar o tempo que a gente tem e que a gente sempre reclamou que não tinha para cuidar de algumas coisas'. Quando os clientes voltarem, apresentaremos novidades, um Empório diferente. Para eles verem que também estamos cuidando da nossa casa.
Os funcionários se uniram em mutirão para repaginar o estabelecimento localizado na principal via de Canela, a Rua Felisberto Soares. Foram 12 dias nessa toada, até que a necessidade financeira obrigou o restaurante a se render à telentrega. O delivery, apesar de cogitado algumas vezes, nunca havia sido colocado em prática para não ferir a premissa do estabelecimento: oferecer refeição rodeada por vinhos, com livros ao alcance dos olhos e em ambiente coloridamente descontraído. Enquanto cozinhou pratos exclusivamente para consumo em casa, o restaurante faturou cerca de 20% da receita normal para o período, mas a experiência a convenceu de que é possível concilia a telentrega com a oferta local. O recurso emergencial tornou-se definitivo.
O restaurante reabriu em na quarta-feira (15) sem demitir nenhum dos 20 colaboradores. Foi inevitável, porém, renegociar com fornecedores e suspender serviços terceirizados. Além de um espaço remodelado, o Empório tenta fazer caixa vendendo praticamente tudo a preço de custo, conta Fernanda.
— Estávamos dispostos, desde o início, a mexer no que podíamos, menos na equipe. Se cada empresa conseguir manter os seus funcionários, o efeito na economia ficará menor ali na frente. Ver a receita cair chocou a gente, claro. Foi bem aterrorizante, ainda mais que abril tinha tudo para ser um mês excepcional. Mas, logo, paramos de analisar cenários. Ficar remoendo não levaria a lugar nenhum. Estamos, agora, pensando para frente. Os clientes estão bem compadecidos conosco. Consomem não só por necessidade, mas em forma de apoio — finaliza.
“Teremos que oferecer segurança alimentar e sanitária para os clientes”
Mesmo autorizado a recomeçar as operações, o empresário Josiano Schmitt segue com o Malbec restaurante chaveado. Por estar voltado ao turismo, não vê sentido em movimentar sua estrutura enquanto hotéis e parques não reiniciarem. O jeito é esperar. Pelas suas projeções, o trade turístico vai começar a se levantar novamente em junho, mês em que ele pretende voltar a servir a linha de pratos que incluem carnes preparadas na parrilla.
— Nosso foco aqui não é quando abrir, mas como abrir. A forma vai mudar e, para manter o padrão de qualidade que queremos e que a gastronomia de Gramado precisa, teremos de mudar processos — observa.
Servir carne e guarnições simultaneamente, talvez seja uma das readequações necessárias. A solução, diz Schmitt, passa por perguntar antes ao cliente se ele quer algum acompanhamento para evitar desperdícios.
—'Vocês gostariam de arroz?' Se o cliente não quiser, nem colocamos na mesa, porque, se ele não tocar, vai fora igual — exemplifica, antes de prosseguir. — A eficiência vai ter de ser muito maior. E veja como será ingrato. Vamos ter de fazer promoções para incentivar o consumo no período em que o custo de produção será maior.
Para superar os meses que vem pela frente, entende que a gastronomia terá de estar atenta a alguns aspectos. Um deles é a segurança:
— Clientes vão querer consumir algo com a certeza de que não vão ficar doentes. Então, a retomada terá de ser em parceria com o poder público, com um plano consensual, gradativo e organizado. Teremos que oferecer segurança alimentar e sanitária para os clientes.
O empresário projeta perda de no mínimos 30% no faturamento anual do empreendimento. Teve de demitir 20% dos funcionários, a maioria recém contratados para o período de Páscoa. Os que permaneceram estão em férias ou com os contratos suspensos. Apesar dos rombo financeiro que o distanciamento impôs, não reclama das medidas:
— Foi duro fechar? Foi. Mas acho que Gramado parou na hora certa e vai se recuperar. Fizemos uma aliança com os funcionários para recrutá-los novamente depois.
Diante da rua coberta às moscas, no centro de Gramado, o gerente da loja Carmim Wagner Rodrigues abria as portas ao público pela primeira vez na sexta-feira desde 21 de março. Acompanhado de dois funcionários, organizou o espaço e ficou tratando de assuntos burocráticos mais ao fundo. Na entrada, os colaboradores mascarados esperavam a clientela. Nos dias em que estiveram legalmente impedidos de atender no espaço físico, a equipe se aproximou dos clientes pelas redes sociais.
Por celular, mantiveram atendendo, mostrando fotos dos produtos e concretizando vendas. Uma vez por semana, Wagner ia à loja separar os produtos e despachá-los pelo correio. A mobilização virtual fez com que nenhum dos seis funcionários fosse demitido e possibilitou, inclusive, que um deles fosse efetivado apesar de estar no contrato de experiência. O prejuízo nesse período? Nem analisou ainda:
— Não paramos para ver isso. Deu uma dor na Páscoa, porque fez um dia lindo. Estava frio, mas tinha sol. As ruas estavam cheia e a loja fechada — lamenta.
A partir de agora, o foco é no aperfeiçoamento da interação e do acolhimento de quem cruza porta adentro :
— Nosso diferencial competitivo sempre foi o atendimento. Estamos muito mais voltados a esse olhar humanitário, de ser melhores ouvintes. O que queremos é melhorar cada vez mais nosso atendimento, porque preço e qualidade da marca estão consolidados — finaliza.