Prevista para o dia 19, a venda de ações do Banrisul, que pode render ao menos R$ 2,2 bilhões ao Estado, reacendeu o debate sobre o destino do dinheiro. Afinal, usar a receita extra para abater dívidas antigas de custeio — como planeja o governador Eduardo Leite — é diferente de drenar a verba para cobrir gastos da máquina pública? Para economistas e ex-secretários da Fazenda questionados por GaúchaZH, na prática, não há distinção.
Na campanha eleitoral, Leite disse que jamais usaria valores obtidos com a venda de patrimônio público para cobrir débitos do tipo.
Ao tomar posse, o novo inquilino do Palácio Piratini deparou com uma série de pendências financeiras, entre elas o 13º salário de 2018 e atrasos de R$ 1 bilhão na Saúde. A situação crítica e a pressão para cumprir a promessa que fez de regularizar a folha levaram o governador a reformular o discurso.
Leite passou, então, a reconhecer a premência de utilizar parte das receitas extras — em especial, das privatizações — para reduzir o passivo herdado. Na avaliação dele, a mudança não representa quebra de compromisso.
— Passivo é passado. Custeio é presente. O custeio do passado, como virou passivo, vai ser pago – explicou o governador, em almoço com jornalistas, em julho.
Secretário da Fazenda no governo Yeda Crusius (PSDB) e amigo de Leite, Aod Cunha discorda, embora compreenda a decisão e faça a ressalva de que “não há alternativa”. Segundo ele, “tudo é custeio”, não importando se a conta é atual ou pretérita.
Para o economista Marcelo Portugal, Leite usa “jogo de palavras”:
— Do ponto de vista lógico, ele está fazendo o mesmo que (José Ivo) Sartori fez.
Cláudio Moreno, professor de Português, não tem tanta certeza.
— Não adianta ir atrás de uma semântica rigorosa. As palavras não têm contornos nítidos e
geométricos como um cristal de rocha. Quem concluir uma coisa ou outra sobre o que diz Leite está interpretando — pondera.
O que afirmam economistas e ex-secretários da Fazenda
Afinal, usar recursos extraordinários para abater passivos antigos de custeio é o mesmo que usar o dinheiro para custear a máquina pública ou não?
Aod Cunha, economista e secretário estadual da Fazenda no governo de Yeda Crusius (PSDB)
“A única discussão relevante é se uma receita extraordinária irá financiar uma despesa ordinária (seja de pessoal ou de custeio, deste governo ou de outro) ou se será usada para investimentos. Não me parece que o governo vai poder se dar ao luxo de optar pela segunda opção. Irá usar os recursos para quitar gastos não pagos com pessoal e custeio. Sempre fui e sou contra usar recursos extraordinários para pagar gasto corrente, incluindo custeio, mas não há alternativa. Para mim, é indiferente se é custeio herdado ou custeio da atual gestão. Tudo é custeio.”
Marcelo Portugal, professor de Economia da UFRGS
“É lógico que é custeio. Leite está fazendo um jogo de palavras. No fundo, está voltando atrás no que disse na campanha, porque prometeu o que não poderia cumprir. É fato que tudo que você deixa de pagar gera dívida e que dívida é um tipo de passivo. Do ponto de vista semântico, até pode fazer sentido, mas, do ponto de vista lógico, ele está fazendo o mesmo que (José Ivo) Sartori fez, só que está empacotando de um jeito diferente. É uma argumentação semântica para encobrir um fato real.
Giovani Feltes, deputado federal e secretário estadual da Fazenda no governo de José Ivo Sartori (MDB)
“A narrativa usada pelo governador Eduardo Leite busca contemplar a necessidade de cumprir a promessa de campanha de voltar a pagar a folha em dia no primeiro ano de gestão. Ele usa a retórica, sem dúvida, ao adotar o discurso de que utilizará os recursos extraordinários para pagar outras despesas, mas, na prática, vai acabar pagando custeio. Leite adaptou o discurso à realidade, o que evidencia as graves dificuldades do Estado. Na minha avaliação, essa é a comprovação de que o gringo (José Ivo Sartori) estava certo. Não há alternativa.”
Ely José de Mattos, professor de Economia da PUCRS
“Contabilmente, trata-se de despesas de exercício anterior, mas continuam com sua natureza de custeio. O governador deve estar se referindo ao fato de que são despesas não honradas pelo governo anterior e que sua promessa estaria restrita a sua gestão. Esta lógica tem alguma sustentação apenas se as rubricas passadas, pagas com recursos da venda de patrimônio, não estiverem sendo geradas novamente. Se isso acontecer, será apenas uma rolagem, e o argumento cai por terra. De uma forma ou de outra, não há alternativas viáveis no curto prazo.”
Fábio Pesavento, professor de Economia da ESPM-Porto Alegre
“Infelizmente, temos um desencontro estrutural entre receita e despesa no Estado. Por esse motivo, o uso de qualquer receita extraordinária, como a decorrente da venda de ações do Banrisul, deve ser discutida com transparência, não com retórica. Sabemos que, na prática,
os recursos serão empregados para cobrir custeio e não para aplicação em investimentos. Mais uma vez a população vai pagar com a falta de serviços básicos. Em algum momento, o ajuste fiscal deverá olhar para o lado da despesa e não mais para a receita.”
Darcy Carvalho dos Santos, economista, auditor aposentado da Secretaria Estadual da Fazenda e especialista em finanças públicas
“Na prática, entendo que é o mesmo que aplicar em custeio, embora Leite esteja correto, em certa medida, usando a retórica para justificar uma situação da qual não tem como sair. A única diferença é que ele vai pagar despesa de custeio que não foi gerada por ele (como o 13º salário de 2018, por exemplo, que foi parcelado). Uma vez não paga, essa despesa vira um passivo, decorrente de custeio. Considero um erro dar essa destinação ao dinheiro, mas, se fosse governador, provavelmente faria o mesmo, porque não há saída frente à crise.”
Frases do governador durante a campanha
"O atual governo (de José Ivo Sartori) está vendendo, e vendeu ações do Banrisul, por exemplo, para colocar no custeio da máquina. Sou contra isso."
Em entrevista à Rádio Gaúcha em 10/9/2018
"Não admito que (recursos de privatização) possam ir integralmente para o custeio da máquina, como o atual governo tem feito, que vendeu ações do Banrisul, por exemplo, e usou o recurso integralmente para o custeio. A venda de ativos tem que ser para a troca de ativos. Usar a venda do patrimônio para colocar no custeio? Na minha visão é criminoso, porque queima o futuro do Estado."
Entrevista ao Jornal do Comércio, em 23/10/2018